O Brasil visto da cozinha

Antes de rodar seu primeiro longa, “Durval Discos” (2002), Anna Muylaert já tinha um projeto em mente: a história de uma empregada em São Paulo e sua filha distante, que deixou em sua cidade natal para trabalhar na casa da patroa em São Paulo. O título: “A Porta da Cozinha”. Foram várias versões da história: numa delas, Val, a empregada, era mãe de santo na comunidade onde morava. Mas o tema delicado das relações sociais era tão complexo que a diretora foi deixando o projeto em prol de outros de estrutura um pouco mais simples, como “É Proibido Fumar” e “Chamada a Cobrar”.

Deixar não é a palavra. Maturado ao longo de anos de reflexões e críticas ouvidas, “Que Horas Ela Volta?”, que estreou em agosto, é o resultado da própria evolução de Anna em seu ponto de vista da relação patroa-empregada doméstica, no Brasil. Numa das primeiras versões, Jéssica, a filha criada pela avó, em Pernambuco, vinha a São Paulo visitar a mãe com o sonho de ser cabeleireira. E nem isso conseguia, tornando-se babá. “Era uma menina frágil, inculta, fácil de ser abusada”, conta a diretora. Num dos editais em que inscreveu o filme, Anna ouviu a crítica de uma das avaliadoras: “Você é uma diretora de classe média falando sobre a vida dos pobres. Se sua mãe fosse doméstica e você fosse filmar a vida dela, daria um final diferente para ela, não?”.

Crítica aceita, Anna operou talvez a maior mudança do projeto: fez de Jéssica uma jovem inteligente, que vem a São Paulo prestar vestibular para arquitetura. Criou-se, então, o grande conflito do filme: ao contrário de Val, Jéssica não aceita nenhum tipo de subserviência aos patrões da mãe. Quer dormir no quarto de hóspede, comer o mesmo sorvete do filho da patroa da mãe, frequentar a piscina como todos. Uma metáfora delicada da ascensão de uma classe C, que agora tem diploma universitário, acesso à informação e aos bens culturais e de consumo. “Eu comecei a ver o patrão no olho do empregado, e não mais o empregado no olho do patrão”, resume ela.

Esse novo capítulo do conflito de classes no Brasil, que já vinha ganhando fortes representantes, como “O Som ao Redor” e “Casa Grande”, tem despertado um interesse gigantesco no exterior antes de estrear no Brasil – um interesse que não se via desde “Cidade de Deus”. “Que Horas Ela Volta?” começou o ano ganhando um prêmio de melhor atriz no Festival de Sundance para suas duas protagonistas, Regina Casé (Val) e Camila Márdila (Jéssica). Um mês depois, mais dois prêmios, um do júri e outro do público, no Festival de Berlim. Até julho, o filme já havia sido vendido para 22 países, incluindo França, Itália, Espanha, Austrália, Coreia do Sul e Taiwan. Na França, onde estreou no início de julho, o longa ocupou um grande circuito de 120 salas e superou a marca dos 150 mil espectadores, ultrapassando o público de “Cidade de Deus”, no país. E, agora, foi o filme brasileiro escolhido para concorrer a uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro. “Há um interesse enorme lá fora. Eles acham a realidade do filme estranha, porque lá tem uma diarista uma ou duas vezes por semana. Perguntam se o Brasil está mudando, se aquilo que o filme mostra é uma utopia”, conta Anna.

O peso de um personagem cativante

“Que Horas Ela Volta?” não teria a sua força se não fosse Regina Casé, uma atriz que começou em filmes de Arnaldo Jabor (“Tudo Bem”) e Cacá Diegues (“Chuvas de Verão”) e depois construiu uma carreira de comediante e apresentadora na Globo. É o seu grande retorno ao cinema, 15 anos depois de seu outro grande trabalho: a lavradora Darlene, que administra três maridos, em “Eu Tu Eles” (2000), de Andrucha Waddington. Ao ver esse filme, ainda com seu projeto como uma vaga ideia na cabeça, Anna decidiu que Regina seria a sua atriz. “A Val é aquela mesma personagem do ‘Eu Tu Eles’ se tivesse ido morar em São Paulo”, define.

Val (Regina Casé) e Fabinho (Michel Joelsas) retratam o papel da empregada doméstica no arranjo familiar. © Aline Arruda

“Eu conheço a Val da cozinha, da sala e do quarto de empregada”, resume Regina, lembrando que o avô era lavrador em Caruaru, e a avó de seu marido, o diretor Estevão Ciavatta, era empregada doméstica.

Com Val, Regina celebra, em primeiro lugar, o retorno de uma grande personagem popular ao centro de uma narrativa no cinema. “Se você pensa no Cinema Novo, os personagens eram do povo. Depois, a dramaturgia migrou para a classe média e alta. O mais grave disso é que não tem atores do povo trabalhando. É só ver o ‘Cidade de Deus’, como todo aquele elenco foi absorvido pelo mercado, tamanha era a carência. Chega a dar dor no coração pensar que houve uma geração perdida antes disso. Mas tenho um orgulho enorme de ver todo mundo brilhando agora”.

Um quase documentário

Para viver Val, Regina passou por uma grande transformação, física e de postura, encolhendo o pescoço e treinando o jeito humilde da empregada. “No filme, estou horrível, uso um uniforme tamanho 52. Os estrangeiros veem o filme e acham que eu sou empregada mesmo, acreditam que aquilo é quase um documentário. Na França, quando entrei depois de uma sessão para debater o filme, toda arrumada e maquiada, as pessoas tomaram um choque”, relembra, rindo.

Há dois anos, durante as filmagens numa casa do bairro do Morumbi, em São Paulo, a realidade de Regina refletia a história de Val. Ela e Estevão tinham acabado de adotar um menino, Roque. Sua babá, Vânia, ficava com o menino num quartinho da casa enquanto Regina passava o texto e filmava. “Sem ela, não haveria filme”, agradeceu. A atriz chegou apenas uma semana antes das filmagens, mas Anna propôs alguns exercícios para construir a relação de Val com as pessoas da sua vida. Com Camila Márdila, Regina falou por telefone algumas vezes antes de conhecê-la pessoalmente, para construir a distância entre mãe e filha. Com Edna, a atriz que faz a cozinheira, assou um bolo e fez outras comidas para se integrar à cozinha.

Com a questão viva ao longo do filme – e com a aprovação da PEC das Domésticas, que garante uma série de direitos trabalhistas às empregadas –, Anna, há algum tempo, pensa em mudar a configuração da sua casa. Mãe solteira de dois filhos, ela hoje mantém uma mensalista de segunda a sexta em casa. “Mas hoje acho estranho alguém em casa todo dia. Os filhos já estão um pouco maiores, dá pra mudar”.

Por reavaliar os pontos de vista sobre a situação, e talvez num efeito inevitável de espelhamento, a personagem mais difícil de construir foi Bárbara, a patroa vivida por Karine Telles. Bárbara não podia ser nem muito rígida nem muito fraca, nem mesquinha como nas novelas nem insensível às transformações das relações dentro de sua casa – um ser humano complexo e contraditório, como todo bom personagem deve ser. As hesitações e dúvidas de Bárbara são fundamentais para a evolução suave de um conflito que não é da ordem do dramático, mas do prosaico e cotidiano.

Sociedade na contemporaneidade

Para defender Val e sua história, Anna recusou alguns dos títulos internacionais propostos para o filme, como “Almost Family” (“Quase Família”) ou “The Proper Housemaid” (“A Empregada Adequada”). Na maior parte dos países, o filme leva o nome “The Second Mother” (“A Segunda Mãe”), que ilustra bem a relação entre Val e Fabinho (Michel Joelsas), o filho de Bárbara, e dá uma boa ideia das relações afetivas – e sim, familiares – entre patrões e empregados, laços de difícil compreensão pelos americanos ou europeus.

Retomando a pergunta dos europeus que assistem ao filme: para a diretora, a trajetória de Jéssica, aluna inteligente, aplicada e mais consciente das relações de classe, é uma realidade ou uma utopia no Brasil hoje? “A educação ainda é muito ruim, né? O ensino público tem um déficit gigantesco em relação ao particular. Outro dia, li que uma boa parte dos alunos de pedagogia no país são filhos de empregadas domésticas e tiveram um ensino muito fraco na infância, nunca leram”, diz. “Pessoas como a Jéssica ou o Lula são raras, autodidatas”.

 

Por Thiago Stivaletti

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