A fera domada

Cláudio Assis está mais doce. O autor de alguns dos filmes mais virulentos do cinema brasileiro desde a Retomada, como “Amarelo Manga”, “Baixio das Bestas” e “Febre do Rato”, decidiu enveredar por um caminho mais leve e solar em “Big Jato”, seu quarto longa-metragem. Neste filme de formação, um adolescente, Xico, vive a sua adolescência na pequena Peixe de Pedra, no interior de Pernambuco, dividido entre a dureza da vida real – acompanhando o pai nas andanças de seu caminhão limpa-fossa – e a vocação para a poesia – na figura do tio radialista.

Desta vez, não há a brutal violência contra a mulher de “Baixio das Bestas”, e o poeta não morre ao final como em “Febre do Rato”. “Dizem que eu mudei. É bom mudar depois de velho”, brincou na pré-estreia carioca do filme. “Nunca quis fazer um tipo de filme só. E sempre pensei em fazer um filme de tom mais infantil. Eu tinha um projeto nessa linha com o Paulo Lins [autor de “Cidade de Deus”], mas no fim a oportunidade veio com o Xico Sá”. Porém, continua vivo o interesse de Claudão, como os amigos lhe chamam, pelo lugar da arte e da poesia num mundo cada vez mais regido pelo dinheiro e pela aspereza das relações. “O filme fala da formação do caráter de um poeta, o Xico. Que na verdade é a formação de todos nós como humanos”, resume.

“Big Jato” é inspirado no livro de Sá, jornalista nascido no Crato, interior do Ceará, hoje famoso por seus comentários sobre futebol e a participação em programas como “Papo de Segunda” (GNT) e “Amor & Sexo” (Globo). Eles se conheceram em Recife, no final dos anos 70. Cláudio estudava comunicação social, Xico cursava jornalismo e trabalhava como atendente na Livros Sete, onde Claudão ia comprar (e roubar) livros. As origens semelhantes (Xico, do Crato, Cláudio, de Caruaru) ajudaram a cimentar uma amizade que já dura mais de 30 anos. “A gente veio de lugares em que é preciso lutar muito para sobreviver – eu, do agreste, ele, do sertão. Temos uma inquietude, estamos sempre querendo conquistar coisas novas. Sempre duvidando de tudo e querendo saber mais alguma coisa que ainda não se sabe.”

Matheus, um ator duplo

A primeira ideia de Claudão para “Big Jato” era no mínimo maluca: ter quatro atores se revezando nos papéis do Velho e do tio Nelson. Além de Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos, Julio Andrade e João Miguel viveriam os papéis. Mas os três últimos estavam com a agenda complicada, comprometidos com papéis na TV. Foi quando o diretor pensou que Matheus daria conta perfeitamente dos dois papéis – e ainda reforçaria a ideia dos irmãos como duas faces de sua mesma moeda: o conservador apegado ao trabalho e o libertário amante da música e da poesia. Um ecletismo já demonstrado nos filmes anteriores, do açougueiro gay de “Amarelo Manga” ao monstro estuprador de “Baixio das Bestas”. Por que Matheus é o elo que une todos os seus longas? “Rapaz… o bicho é bom. É meu amigo, topa tudo o que eu quero fazer. Não tem medo de se entregar aos personagens. É o tipo de ator que é tão bom que acaba carregando junto os outros atores em cena”, resume Claudão. Em “Big Jato”, Matheus “carrega” em cena Francisco, filho de Cláudio, que vive Xico na infância, e o estreante Rafael Nicácio, que vive o poeta na adolescência. Como a mãe de Xico, a forte presença de Marcélia Cartaxo (“A Hora da Estrela”).

Matheus Nachtergaele, ator predileto de Cláudio Assis, incorpora um papel duplo em “Big Jato”, de um pai conservador e de um tio libertário

Livro e filme foram escritos em paralelo – houve até uma viagem pelo sertão em que diretor, jornalista, roteiristas e uma parte da equipe fizeram juntos para reacessar as memórias de infância de Xico.

Os machistas

“Big Jato” estreou nos cinemas quase um ano depois de uma grande polêmica envolvendo Cláudio. Num debate sobre o filme “Que Horas Ela Volta?”, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, ele e o diretor Lírio Ferreira (de “Sangue Azul”) teriam perturbado o debate, interrompendo a fala das pessoas e da diretora Anna Muylaert. Relatos de pessoas presentes ao debate se espalharam como pólvora no Facebook. Um mês depois, Cláudio estreava “Big Jato” no Festival de Brasília. Mal conseguiu falar ao apresentar elenco e equipe no palco, tomando vaias da plateia e gritos de “machista!” das mulheres na plateia.

O episódio no Recife foi o pontapé inicial de um amplo debate sobre a voz ainda restrita das mulheres no cinema brasileiro – uma questão defendida por Muylaert em inúmeras entrevistas.

A opinião pública se voltou contra Cláudio e Lírio, e o episódio encerrou a relação de Cláudio com Anna: eram amigos, chegaram a namorar por um breve período, e mais do que tudo eram parceiros de criação – ela assinou a primeira versão do próximo longa dele. Cláudio relembra tudo com raiva e mágoa e acredita que apanhou muito mais do que devia. “Aquele dia eu estava emocionado, porque sabia do sofrimento que foi para ela fazer aquele filme. É horrível como o jornalismo hoje se pauta em Facebook. Todos os meus filmes denunciam a violência contra a mulher. A gente era parceiro, que papo é esse? A Anna se aproveitou do episódio, os produtores dela, todo mundo.” No fundo, o caso do debate no Recife expôs a grande contradição do cinema de Cláudio Assis. O próprio diretor admite nas entrevistas que é machista (“todo mundo no Brasil é, de alguma forma”) e não foge à sua condição na maneira de ver o mundo e construir a sua mise-en-scène. Ao mesmo tempo, filmes como “Baixio das Bestas” fazem uma denúncia sem precedentes no cinema nacional da violência contra as mulheres, especialmente no chamado “Brasil profundo”.

Denúncia e contradição

Uma cena ao final de “Baixio” resume bem essa contradição: o próprio Cláudio aparece em cena como um homem que comenta com escárnio sobre a protagonista, Auxiliadora (Mariah Teixeira), que, após ser exibida nua pelo avô a outros homens em troca de dinheiro e estuprada, vira prostituta de beira de estrada. Nele, convivem o machista renitente e o grande cineasta – e a cena dá conta disso.

Atualmente, está com projetos fora do cinema. Um deles é a direção geral, para o Canal Arte 1, de “Se Cria Assim”, série em quatro episódios sobre a trajetória dos artistas Paulo Bruscky, Rodrigo Braga, Bruno Vilela e Marcelo Silveira. Os programas são dirigidos por ele, Walter Carvalho e Beto Brant. Ele também colabora com Deborah Colker na criação do espetáculo de dança “Cão sem Plumas”, inspirado no poema de João Cabral de Melo Neto.

Mas Claudão faz mistério sobre a história de seu próximo longa, “Piedade”, cujo roteiro foi escrito por Muylaert, Hilton Lacerda e Anna Carolina Francisco. Só gosta de dizer uma coisa: “é um filme em que ninguém tem piedade de ninguém”. Na cidade fictícia que dá nome ao filme, com uma praia na qual rondam os tubarões, Matheus e Irandhir Santos viverão “dois amigos, quase namorados”. “Tem a ver com a história da minha vida. A luta da terra com o mar e os tubarões. Mas também é uma história de pessoas que se amam. Terá um tom mais leve. Estou ficando criança”, resume. Se ficar criança é se tornar mais doce, que seja bem-vinda essa nova fase do cinema de Cláudio Assis.

 

Por Thiago Stivaletti

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