Em uma tarde arrastada em Bucareste

Cristi Puiu (“A Morte do Senhor Lazarescu” e “Aurora”) é o cineasta dos processos e da duração, do tempo que passa e pesa sobre os personagens, de um certo descompasso que marca a vida na Romênia e seus muitos fantasmas. Seus filmes caminham ao sabor de percursos e dramas individuais, vividos por pessoas comuns em situações inusitadas, absolutamente conectadas ao país em que vivem. Talvez seja o mais talentoso de toda a safra recente do cinema romeno que invadiu os principais festivais do mundo nos últimos anos. Puiu faz um cinema mundano, sem firulas, baseado em um realismo seco, em uma câmera sempre na mão, flutuante e direta – um projeto, é preciso dizer, já amplamente explorado no cinema contemporâneo. É também um cinema com um senso de urgência bem particular, sempre intimamente embalado em questões políticas, sociais e éticas que marcam as últimas e conturbadas décadas de seu país.

Não é diferente em “Sieranevada”. O filme começa com um carro mal estacionado no meio da rua, seguido por uma pequena discussão entre um homem de meia idade chamado Lary (Mimi Branescu) e sua esposa Laura (Catalina Moga), enquanto dirigem para o que mais tarde compreenderemos se tratar de uma comemoração em homenagem ao pai dele, recentemente falecido. Estes são apenas dois dos muitos indivíduos que eventualmente cruzam o apartamento da matriarca Nusa Mirica (Dana Dogaru). Ela convocou uma série de familiares e amigos para um jantar-ritual que permitirá que a alma de seu marido siga para o céu sem maiores problemas. As relações entre os diversos personagens são estabelecidas lentamente: irmãos, irmãs, primos, tias e tios, sogros, crianças de várias idades, e uma indesejada e embriagada amiga croata de vinte e poucos anos. Todos famintos e à espera de um padre (Valer Dellakeza).

Puiu e o diretor de fotografia Barbu Balasoiu movem-se livremente de cômodo em cômodo, de conversa em conversa. O apartamento é o principal catalisador do filme. Embora seja relativamente apertado e sem graça, Puiu o filma como uma espécie curiosa de parque de diversões, como um palco de eventos-atrações e personagens constantemente em movimento. Eles entram e saem dos cômodos, em uma sinfonia de entradas e saídas, um balé de portas que se abrem e fecham, ininterruptamente. “Sieranevada” é um longa eminentemente teatral em sua mise-en-scène, interessado em alcançar uma certa exasperação pelo cotidiano. Só assim, parece nos dizer este filme, conseguiremos chegar perto dos personagens. A câmera viva, a exploração atenta e detalhista do tempo em cada situação exposta, e o estupendo trabalho com os atores, a combinação metódica destas estratégias, faz com que cada cena de “Sieranevada” seja capaz de nos aproximar e nos distanciar da humanidade à nossa frente.

A câmera de Puiu parece indecisa, curiosa, porém discreta e dissimulada. Seus personagens vão se formando aos poucos, como se emergissem do tempo, da repetição, da espera. Puiu não nos deixa agarrar os personagens, enredados em tramas e conflitos existenciais afinados à sociedade romena. Não há denúncias, mas narrativas particulares, quase sempre conectadas a Romênia e seus escombros morais e políticos – “Sieranevada” é neste sentido um momento de depuração de uma estratégia que já marcava os longas anteriores deste cineasta. O que interessa é expressar a dificuldade da vida em família, as expectativas ao nosso redor, o tempo que passa e o cotidiano. O que nos resta é a impressão de uma imparcialidade, e, sobretudo, a impossibilidade de qualquer juízo moral a respeito do que vemos em uma tarde arrastada nos arredores Bucareste. E, enquanto isso, na cozinha do apartamento, duas mulheres discutem sobre o passado socialista, suas promessas e contradições.

Descompasso. Taí uma palavra que nos acompanha em um filme como “Sieranevada”. Um longa que resiste a qualquer relevância temática ou narrativa; cujos planos desfilam sem propósitos. Puiu faz um filme revestido de inutilidades e despropósitos. O personagem já está morto. O título não faz sentido. Diz respeito a um lugar que não vemos.

 

Sieranevada
Romênia, França, Bósnia, Croácia, Macedônia, 173 min., 2016
Direção: Cristi Puiu
Estreia: 15 de dezembro

 

Por Julio Bezerra, crítico de cinema

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