Feminino e Plural – Mulheres no Cinema Brasileiro

O documentário “A Entrevista” merece ser considerado “o marco fundante do cinema brasileiro moderno de autoria feminina”. Quem atribui papel tão relevante ao curta-metragem de Helena Solberg, realizado em 1966, portanto há mais de 50 anos, é a pesquisadora e cineasta Karla Holanda, organizadora, junto com Marina Cavalcanti Tedesco, do livro “Feminino e Plural – Mulheres no Cinema Brasileiro”, lançado recentemente, pela Papirus, na prestigiosa coleção Campo Imagético.

Para embasar o papel de “A Entrevista” como “marco fundante” do moderno cinema feminino brasileiro, Karla – depois de lembrar a força inseminadora de “Arraial do Cabo” e “Aruanda” para o Cinema Novo – recorre aos estudos de Ismail Xavier. Em seu livro “O Cinema Moderno Brasileiro” (Paz e Terra, 2001), o professor emérito da USP lembra que o Cinema Novo “produziu a convergência entre a ‘política dos autores’, os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem”. Ao que a co-organizadora de “Feminino e Plural” propõe: que se faça, pois, o devido “acréscimo do feminismo ao tripé de convergências”.

Karla Holanda e Marina Tedesco escolheram, para encapar o livro, fotogramas do documentário “A Entrevista”, compostos com simbólicas imagens de mulheres vestidas de noiva. Para nomear a publicação – tão necessária neste momento em que feministas norte-americanas e francesas ocupam espaço nobre em poderosas vitrines (como o Globo de Ouro) e mídias – as autoras recorreram a outro importante título de nossa historiografia: o longa ficcional “Feminino Plural” (Vera de Figueiredo, 1976).

O livro, disponível em livrarias físicas e virtuais, rende tributo a dois títulos pioneiros e essenciais no estudo do cinema feminino brasileiro: “As Musas das Matinês”, de Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira (RioArte, 1982), e “Quase Catálogo 1 – Realizadoras de Cinema no Brasil (1930-1988)”, escrito pelas pesquisadoras Ana Pessoa e Ana Rita Mendonça, sob a supervisão de Heloísa Buarque de Hollanda (Edição Funarj-UFRJ-1989). Nada mais natural, portanto, que o prefácio de “Feminino e Plural” seja assinado por Heloísa.

A escritora e professora da UFRJ saúda o livro, que “não poderia chegar em contexto melhor”. Afinal, “os movimentos feministas jovens, o feminismo negro, o feminismo trans e tantos outros estão ganhando a cena e a visibilidade merecida”. Isto, num “momento quente”, com as ruas mostrando “a que vêm as mulheres” e a internet se apresentando “como um imenso laboratório para a criação de ativismo agregador, alerta, solidário”.

Em sólida apresentação, Karla e Marina mostram que – ao longo das 240 páginas de “Mulheres no Cinema Brasileiro” – foram reunidos 16 ensaios de professoras (autoras de 13 deles) e professores universitários (dois), sendo um assinado por dupla feminino-masculina.

No primeiro ensaio, a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo, da UFSCar, revê, com preciosas fontes, a trajetória de “Cleo de Verberena e o Trabalho da Mulher no Cinema Silencioso Brasileiro”. Coube a esta atriz e realizadora paulistana, sob muitas suspeitas masculinas, dirigir o primeiro longa-metragem nacional assinado por um nome feminino: “O Mistério do Dominó Preto” (1930). O estudo evoca, também, pioneiras como a atriz, diretora e produtora Carmen Santos e a mineirinha Eva Nil, filha do diretor de fotografia Pedro Comelo e estrela de obras de Humberto Mauro. Saberemos, em outro capítulo do livro (à página 107) – aquele em que o professor e cineasta Luis Alberto Rocha Melo analisa do documentário “Mulheres de Cinema”, de Ana Maria Magalhães, que Eva, “figurinha nívea e pálida de camafeu”, decepcionou-se de tal forma com o incipiente cinema brasileiro dos anos 1920, que solicitou ao jornalista e pesquisador Pedro Lima que não mais citasse o nome dela em sua revista. E que devolvesse as fotos que a ele um dia ela encaminhara.

No segundo texto do livro, a pesquisador Sheila Schvarzman, autora do excelente “Humberto Mauro e a Imagem do Brasil” (Unesp, 2004), nos revela a hoje octogenária documentarista Gilda Bojunga, colaboradora discreta do mesmo Humberto Mauro no INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo). Não fossem os estudos de Sheila, não saberíamos – como registram Karla e Marina em seu texto de apresentação do livro – que a neta de Edgard Roquette Pinto (1884-1954), fundador da radiodifusão educativa no Brasil, “dirigiu sete documentários entre 1967 e 2005 e um longa-metragem em 1982”.

Karla Holanda, diretora do longa documental “Kátia”, sobre Kátia Tapety, a primeira travesti a ser eleita para cargo político no Nordeste, assina o terceiro ensaio do livro: “Cinema Brasileiro (Moderno) de Autoria Feminina”. Em corajosa nota de pé de página, que pode ser lida como esboço de um manifesto, ela registra: “Pode-se recusar o termo feminista, por não querer vincular-se a algum rótulo que se fecha em si, pelo pântano ardiloso das tantas vertentes que o movimento carrega ou por não acreditar na mudança da condição feminina etc. – toda razão pode ser legítima”. No entanto, “muitas vezes, esta recusa tem por fim escapar da associação desta ‘etiqueta’ a ideias negativas, prática ainda hoje forte no Brasil (mas não só), que apela a argumentos desprezíveis, quando, na verdade, ser feminista, pode-se dizer, é ser a favor dos direitos humanos. Como exemplo do alastramento da pecha em torno do feminismo, Rachel Soihet (2005) demonstra como parte da intelectualidade brasileira, representada pelos escritores d’O Pasquim, ridicularizava as mulheres que se aproximavam deste ideário”.

O texto de Karla nos enriquecerá com mais uma referência bibliográfica recorrente no livro: o ensaio “Literatura Não É Documento”, de Ana Cristina César (Funarte, 1980). Muito se evocará, em “Feminino e Plural”, este legado reflexivo da poeta que partiu tão cedo. O foco do ensaio de Karla recai sobre o cinema documentário feminino, com ênfase em “A Entrevista”, de Solberg, e com destaque à esquecida obra da realizadora nipo-brasileira Olga Futemma, hoje diretora da Cinemateca Brasileira.

Os textos de número 4 e 5 analisam a produção feminina durante a ditadura civil-militar. Alcilene Cavalcante, da Universidade Federal de Goiás, nos apresenta a “biotônica vitalidade” da obra de Maria do Rosário Nascimento e Silva (1949-2010), diretora de “Marcados para Viver”, Vera de Figueiredo, de 83 anos (do citado “Feminino Plural”), e Adélia Sampaio, de 73. Esta, vale lembrar, foi a primeira diretora negra a assinar um longa-metragem no Brasil (“Amor Maldito”, 1983).

Ana Maria Veiga, autora de tese que chega para enriquecer nossas fontes bibliográficas (“Cineasta Brasileiras em Tempos de Ditadura: Cruzamentos, Fugas, Especificidades”, defendida na UFSC, 2013), nos familiariza com conceito valioso: o Contracinema. O que a vem a ser isto? Ela explica, ao analisar a obra de duas realizadoras fundamentais para o cinema brasileiro do período – Tereza Trautman (“Os Homens Que Tive”) e Ana Carolina (“Mar de Rosas”, “Das Tripas Coração”, “Sonho de Valsa”):

“O ‘contracinema’ é um conceito elaborado (em um dos textos fundadores da crítica feminista no cinema) pela pesquisadora britânica Claire Johnston, em 1973”. Claire “convoca as mulheres a se apropriarem das câmeras para realizar um ‘contracinema’, subversivo na forma, deixando clara na tela a obra cinematográfica como construção”.

A significativa produção de Helena Solberg é tema do texto “Militância Feminista e Política nas Américas”, da mineira Mariana Ribeiro Tavares, autora do livro “Helena Solberg: Do Cinema Novo ao Documentário Contemporâneo”, lançado em 2014 pelo Festival É Tudo Verdade. Se o cinema feminino tem um espelho no qual se mirar, este é o de Helena. Feminista assumida desde a juventude, ela realizou “A Entrevista”, no Rio de Janeiro, e começou longa peregrinação pelas Américas, a Hispânica e a anglo-saxã. Realizou vários documentários – destaque para “A Nova Mulher”, “Simplesmente Jenny” e “A Dupla Jornada”. Coube a este filme, realizado em diversos países da América Latina, abrir a Primeira Conferência Internacional da Mulher, em 1975. Há que se lembrar – e o artigo o faz – que a ONU declarou, em decisão histórica, 1975 como o Ano Internacional da Mulher. Helena, que voltou ao Brasil para concluir o instigante “Carmen Miranda: Bananas is My Business”, realizou vários documentários e um longa ficcional, o imperdível “Vida de Menina”, baseado nos diários de Helena Morley.

Depois do fascinante (e iluminador) estudo de Luis Alberto Rocha Melo, biógrafo de Alinor Azevedo , sobre “Mulheres de Cinema”, duas pesquisadoras (Érica Sarmet e Marina Cavalcanti Tedesco) traçam, no capítulo 8, ótimo panorama das “Articulações Feministas no Cinema Brasileiro na Décadas de 1970 e 1980”. Nestas articulações, a futura cineasta Eyala Yglesias (uma das autoras de “Três Histórias da Bahia”) desempenhará papel dos mais importantes. Funcionária da Embrafilme, Edyala se uniria a jovens realizadoras empenhadas em abrir espaço para o cinema feminino. Nos familiarizaremos, então, com a (breve) história do Coletivo de Mulheres de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro e seu Manifesto (íntegra na página 123 de “Feminino e Plural”). As autoras do ensaio o encerram com rica e potente bibliografia.

Em “Cassandra Rios e o Cinema Erótico Brasileiro: Autoria e Performatividade”, as pesquisadoras Alessandra Soares Brandão & Ramayana Lira de Sousa estudam dois filmes – “Ariela” e “Tessa, a Gata” – baseados em livros da escritora lésbica Cassandra Rios (1932-2002), conhecida como “a Safo de Perdizes”. Um dos conceitos essenciais a este capítulo é o cinema ‘queer’. As autoras lembram que “queerness” (esquisitice) designa “a qualidade do que é estranho, peculiar e, em sentido contemporâneo, a expressão do desejo e da sexualidade não normativos”. E o cinema ‘queer’ é aquele que “desafia o normal, o legítimo, o dominante” (segundo David Halperin).

No texto de número 10, Rubens Machado Jr, da USP, e a doutoranda Marina da Costa Campos (pela ECA-USP), analisam “Protagonismos Experimentais Femininos no Surto Superoitista dos Anos 1970”. No ensaio seguinte, Gilberto Alexandre Sobrinho estuda “Identidade, Resistência e Poder: Mulheres Negras e Realização de Documentários”.

O pesquisador da Unicamp coloca ênfase no longa documental “Ori” (Raquel Gerber, 1989). Embora dirigido por autora branca, o filme tem na historiadora e ativista black, Beatriz Nascimento (1942-1995), sua força motora. Gilberto chega até a produção contemporânea de realizadoras negras, como, entre outras, a jovem Yasmin Thayná (“Kbela”, 2015, inspirado no seminal “Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul).

O universo do black movie brasileiro prossegue no capítulo “Formas de Visibilidade e (Re)Existência no Cinema das Mulheres Negras”, de Ceiça Ferreira, da Universidade Estadual de Goiás, e Edileuza Penha de Souza, da UnB (Universidade de Brasília). Rica bibliografia nos é apresentada, a começar por Joel Zito Araújo, autor do seminal “A Negação do Brasil” (livro e filme), evocado com o ensaio “O Negro na Dramaturgia Brasileira, Um Caso Exemplar da Decadência do Mito da Democracia Racial Brasileira” (Estudos Feministas, 2008).

O capítulo de número 13 é explosivo. As jovens Daiany Dantas, doutora em Comunicação pela UFPE, Isaiana Santos & Renata Nolasco, ambas do projeto “Uma Tela para Elas”, botam para ferver. O texto “Amor, Plástico e Barulho: Protagonismo e Rivalidade Feminina como Elementos Estéticos e Narrativos no Cinema Pernambucano” analisa o primeiro longa ficcional dirigido por uma mulher pernambucana (a também diretora de arte Renata Pinheiro). A abusada trinca relembra, em texto vigoroso, a polêmica entre feministas recifenses (e brasileiras) e os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira, por ocasião da tumultuada (por eles) exibição de “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (ocorrida em agosto de 2015). Se os dois cineastas pernambucanos soubessem o que tinha acontecido em março, portanto cinco meses antes, teriam se precavido/contido. Afinal, coletivos feministas se sedimentavam em animadas conversas na capital pernambucana. Durante a mostra “Cinema de Mulher” muitos debates e reflexões ganharam corpo. Na internet – conta o texto, o menos acadêmico de todos que compõem o livro – “ postagem de Thales Junqueira perguntava: ‘Que porra é cinema de mulher?’”

As autoras do ensaio lembram a “Brodagem”, ou seja, “o cinema de irmãos, sem flexão de gênero” praticado historicamente no Recife e botam querosene na fogueira. Sem dúvida, o mais polêmico, vibrante e arregimentador dos textos de “Feminino e Plural”.

Depois do vendaval, a calmaria. Os três últimos artigos do livro são fruto de profundas reflexões sobre o cinema documentário brasileiro. Denise Tavares, da UFF, analisa filmes de Flávia Castro (o poderoso “Diário de Uma Busca”, 2011), Sandra Kogut (“Um Passaporte Húngaro”, 2001), Petra Costa (“Elena”, 2012), Malu de Martino (“Margaret Mee e a Flor da Lua”, 2013) e Karla Holanda (“Kátia”, 2012).

Ilana Feldman, que faz seu pós-doutorado na Unicamp, assina texto original e inquietante: “Do Pai ao País: o Documentário Autobiográfico em Face do Fracasso das Esquerdas no Brasil”. Detém-se com preciso rigor sobre dois filmes: “Os Dias com Ele”, embate entre a cineasta Maria Clara Escobar e o pai ausente, o filósofo Carlos Henrique Escobar, e o já citado “Diário de uma Busca”, no qual, acompanhada do irmão, Flávia Castro mergulha na conturbada trajetória do pai, o militante político Celso Afonso Gay de Castro, morto em circunstâncias misteriosas em Porto Alegre (1984), depois de viver exílio errante.

O texto – “Dôra e a Luta Histórica Contra os Fascismos: Subversão e Limiar” – que encerra “Feminino e Plural” – é luminoso e tocante como o filme que lhe serviu de fonte: o longa-metragem “Retratos de Identificação”, de Anita Leandro (2014). Roberta Veiga, professora da UFMG, integrante do núcleo de pesquisas “Poéticas da Experiência” e editora da revista “Devires” constrói texto exigente, erudito, recheado de citações (em especial de Walter Benjamin) e termos complicados. Mas nos arrasta pelo “turbilhão da história” do Brasil do final do anos 1960 e ao longo da década de 1970, quando os guerrilheiros Dôra (Maria Auxiliadora Lara Barcellos), Antonio Roberto Espinosa, Reinaldo Guarany e o jovem Chael Schreier, este de curta vida, estavam dispostos a viver (ou morrer) por uma causa. Poucas vezes na ensaística brasileira uma mulher estudou um filme, dirigido por outra mulher e protagonizado (simbolicamente) por uma terceira mulher (a guerrilheira Dôra) com tamanha precisão. História e estética imbricam-se em profundidade, sob olhar cirúrgico e revelador. Sem dúvida, o mais impressionante dos textos do livro.

Para finalizar, dois pequenos reparos. Que na próxima edição, as organizadoras de “Feminino e Plural – Mulheres no Cinema Brasileiro” corrijam informações (que não empanam, de forma alguma, o brilho deste livro tão importante): troca das funções dos cineastas Eduardo (também montador) e Lauro Escorel (também diretor de fotografia) e do nome do autor do longa mineiro “Perdida” (Carlos Alberto Prates Corrêa e não Fernando Coni Campos). Esta falha tem sua origem em trecho de artigo do jornal Última Hora (mas vale nota de pé de página, pois o outro filme citado, este sim, de Coni, é “Ladrões de Cinema”, nomeado em seguida com nome decerto provisório, “Ladrão de Câmera”).

Feminino e Plural – Mulheres no Cinema Brasileiro
Organização: Karla Holanda e Marina Cavalcanti Tedesco
Editora: Papirus (Campinas, 2017)
Páginas: 240
Preço: na internet, variam de R$47,90 a R$59,90

 

Por Maria do Rosário Caetano

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