Entrevista: Eduardo Escorel

Cris Marker carregou pela vida o rótulo de “o mais célebre entre os cineastas desconhecidos”. O brasileiro Eduardo Escorel, de 72 anos – que lança dia 15 de março, seu décimo-quarto longa-metragem, “Imagens do Estado Novo – 1937-1945” –, pode ser definido como “o mais célebre entre os cineastas (brasileiros) desconhecidos”.

Por que “desconhecido”, se ele construiu carreira profundamente enraizada na história do cinema brasileiro e teve, como colegas de trabalho, nomes da grandeza de Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Leon Hirszman e Eduardo Coutinho? Se seu nome está nos créditos de filmes da grandeza de “O Padre e a Moça”, “Terra em Transe”, “Macunaíma”, “São Bernardo” e “Cabra Marcado para Morrer”?

Para que os amantes da presentificação amnésica de nossos dias não pensem que Eduardo Escorel é um nome atado ao passado cinemanovista, há que se lembrar que, além de dirigir seis longas documentais nos anos 2000, ele montou “Santiago” e “No Intenso Agora”, dois dos mais festejados filmes de João Moreira Salles.

Se, na última década, Escorel tivesse se dedicado somente ao épico “Imagens do Estado Novo – 1937-1945”, obra monumental de quase quatro horas de duração (exatos 227 minutos), ele já teria feito algo de muito notável. Mas não. Workaholic, somou à sua trajetória de montador, realizador, roteirista, gestor cultural (passou pelos quadros da Embrafilme) e produtor executivo, mais duas profissões: professor de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas, a prestigiosa FGV, e polemista. Sim, hoje, Eduardo Escorel é uma das estrelas grifadas da revista Piauí, comandada pelo cineasta João Moreira Salles. Seus artigos são, além de muito qualificados, fruto de voz corajosa e dissonante. E dá gosto ler os ensaios que compõem seu livro “Adivinhadores de Água” (Cosacnaify, 2005).

“Imagens do Estado Novo – 1937-1945” inscreve-se numa das mais férteis vertentes do cinema documental: os filmes de arquivo. Ele e sua equipe, na qual se destaca o produtor Cláudio Kahns, têm mergulhado em acervos brasileiros e internacionais em busca de imagens de nossa História. De 1993 até hoje, Escorel dirigiu (e Cláudio produziu) quatro longas que, por enquanto, formam uma Tetralogia do Brasil Varguiano: “1930 – Tempo de Revolução”, “1932 – A Guerra Civil”, “35 – O Assalto ao Poder” e este novíssimo “Imagens do Estado Novo”.

O quarto filme da série sedimenta-se no período (1937-1945), em que Vargas comandou ditadura feroz com quem dela discordasse. Para construir este sólido e apaixonante documentário, o cineasta trabalhou com imagens raras e impressionantes. Somou-as a canções, cartas, trechos de filmes de ficção, documentais ou obras domésticas (filmes familiares) e trechos dos diários de Vargas. As mais vistosas são as imagens usadas para fins de propaganda política (afinal, o ditador contou com a inestimável contribuição fílmica dos cinejornais do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda). Na mais impressionante delas, usada parcialmente no cartaz do filme, o ditador, conhecido como “o pai dos pobres”, aparece posando para que um escultor (Jo Davidson) finalizasse o molde de um de seus sorridentes bustos.

Julho de 1941. Getúlio posa para o escultor Jo Davidson © FGV/CPDOC

“Imagens do do Estado Novo – 1937-1945” será exibido, primeiramente, no Rio e em São Paulo, no Espaço Itaú e no IMS (Instituto Moreira Salles). Uma sessão em cada sala. Com um só ingresso, o público verá o filme em duas partes, com intervalo de 15 minutos para um cafezinho.

Nesta entrevista à Revista de CINEMA, Escorel usa de sua franqueza costumeira, por muitos incompreendida, e nos surpreende com afirmação rara, raríssima, em nosso meio cinematográfico. Ao refletir sobre as razões de seu afastamento do cinema de ficção, no qual estreou com o delicado “Lição de Amor” (baseado em “Amar, Verbo Intransitivo”, de Mário de Andrade), aponta, entre outras causas, “o fracasso comercial” de “Ato de Violência” e “O Cavalinho Azul”. Relembra as origens do projeto que tem em “Imagens do Estado Novo” seu quarto título e diz que, a continuar no ritmo de feitura dos anteriores (“um a cada seis anos e meio”) não estará vivo para chegar à nossa História contemporânea (ao fim dos governos militares). E fala de dois realizadores – o francês Cris Marker (1921-2012) e o alemão Harun Farocki (1944-2014) – com quem estabeleceu espécie de diálogo criativo no processo de feitura do épico “Imagens do Estado Novo”.

Vale lembrar que Escorel, que trabalha mais, como diria Nelson Rodrigues, que remador de Ben-Hur, tem roteiro guardado na gaveta – “Delírios da Paixão”, adaptação do romance “Cães da Província”, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Se algum produtor se habilitar, estes “delírios” podem trazê-lo de volta ao cinema ficcional. Afinal, dos documentários, ele nunca se afastou.

 

Revista de CINEMA – Você dirigiu 22 documentários (sete de curta, cinco
 de média e dez de longa duração). Mas quatro de seus filmes mais conhecidos são ficcionais (Lição de Amor, O Arremate, episódio de Contos Eróticos, Ato de Violência e O Cavalinho Azul. Por que você abandonou a ficção e passou a dedicar-se, como diretor, só ao documentário?

Eduardo Escorel – Terei mesmo abandonado a ficção? De minha parte, não sinto dessa forma. De fato, não dirigi nenhum filme de ficção depois de ter feito “O Cavalinho Azul”, em 1984. Mas nada impede que volte ao gênero ficcional, se houver condições que considere adequadas. Não teria nenhum motivo para deixar de realizar o roteiro escrito em 1988/89, com Antonio Mercado, que permanece inédito, ao qual demos o título de “Delírios da Paixão”, adaptação do romance “Cães da Província”, de Luiz Antonio de Assis Brasil. É claro que haverá razões que me levaram a não dirigir filmes de ficção nos últimos 34 anos. Algumas me parecem ser de caráter pessoal, outras de cunho profissional. De forma geral, uma dose de decepção e outra de desencanto com o cinema brasileiro deve ter influído. Pesou, é claro, o fracasso comercial de “Ato de Violência” e “O Cavalinho Azul”. De outro lado, fui absorvido, entre 1984 e 1989, pela produção de “Sonho sem Fim” e “O Fio da Memória”, além de ter sido Diretor de Operações da Embrafilme por um ano, em 1986, experiência da qual custei a me recuperar. Em 1990, passado a hecatombe Collor, fiz o documentário “1930 – Tempo de Revolução”, a partir de um projeto de André Singer e Cláudio Kahns, assessores na época de Fernando Morais, na Secretaria de Cultura de São Paulo. Uma vez concluído e exibido na TV Manchete, em dezembro de 1990, surgiu a ideia da série que chega agora ao quarto capítulo com “Imagens do Estado Novo”. Pareceu-me naquele momento que fazer documentários para a televisão poderia ser uma saída para a crise. O segundo e terceiro capítulos da série, produzidos por Cláudio Kahns, inicialmente com apoio das secretarias de Educação e Justiça de São Paulo, foram feitos ao longo dos 10 anos seguintes. Com orçamentos menores do que filmes de ficção, esses e os outros documentários que realizei desde então estavam mais ao meu alcance.

Revista de CINEMA – “Imagens do Estado Novo” é um fascinante mergulho nos arquivos da ditadura Vargas. Um filme sobre um tempo histórico e sobre o poder da imagem. Um fecho perfeito de sua tetralogia da Era Vargas (da Revolução de 30, até a queda, em 1945). Ou será uma pentalogia, com um filme sobre o Vargas da eleição presidencial de 1950 até o suicídio, em 1954?

Eduardo Escorel – O projeto da série, conforme formulado em 1991, não prevê ir apenas até 1945. A ideia original era tratar do período que vai até o fim dos governos militares, com a posse de um presidente civil, em março de 1985. Faltam, portanto, 40 anos de história para completar a série. Porém, no ritmo em que conseguimos produzir os quatro primeiro capítulos, cerca de 6,5 anos por capítulo, serão necessários mais 32 anos para completar a série – tarefa que serei obrigado a deixar para alguém mais jovem.

Revista de CINEMA – “Imagens do Estado Novo” é um filme de ressignificação de arquivos. Um épico de quase quatro horas, que nos absorve de forma apaixonante. Você, que realizou documentários com registros de personagens contemporâneos (“Vocação do Poder” e “O Tempo e o Lugar”) parece fascinado, como Cris Marker, pelo documentário de arquivo. Esta paixão tem a ver com sua prodigiosa carreira de montador? Você, afinal, montou alguns dos filmes mais importantes do cinema brasileiro, de um curta encantador (Nélson Cavaquinho) a longas potentes como “Terra em Transe” e “Cabra Marcado para Morrer”.

Eduardo Escorel – Não creio que meu interesse, ou fascínio, pelo documentário tenha relação com os filmes que montei. Na verdade, desde meu segundo documentário de curta-metragem, “Visão de Juazeiro” (1969-71), venho trabalhando com imagens de arquivo, quase sempre junto com filmagens ou gravações contemporâneas. Em 1972, realizei “O que eu Vi, o que Nós Veremos”, esse feito quase todo com imagens de arquivo. Por outro lado, salvo engano, nenhum dos filmes que montei entre 1965 e 1972 recorria a imagens de arquivo. Além de Chris Marker, a quem muito admiro e de quem me considero devedor, sendo uma referência indiscutível para todos que fazem documentários utilizando ou não imagens de arquivo, outro documentarista marcante para mim é Harun Farocki. Videogramas de uma revolução (1992), de Farocki e Andrei Ujica, em especial.

Revista de CINEMA – Você montou, com Lívia Serpa, o documentário “Santiago” (2008), de João Moreira Salles, e o mais recente filme do mesmo diretor, “No Intenso Agora”, com Laís Lifschitz. Há um diálogo entre esses dois filmes (“Imagens do Estado Novo” e “No Intenso Agora”), não? O seu documentário motivou Salles a realizar o dele?

Eduardo Escorel – Acredito que há, de fato, “um diálogo” entre “Imagens do Estado Novo – 1937-45” e “No Intenso Agora”. Apesar de serem completamente diferentes, ambos têm um método comum – interrogam as imagens com as quais são feitos. Procuram fazer a exegese dessas imagens. De forma mais livre e radical do que em “Imagens do Estado Novo”, “No Intenso Agora” recusa usar as imagens como ilustração do texto, procurando antes comentar as imagens.
 Os dois filmes partem de ideias comuns, compartilhadas também com Eduardo Coutinho. Resultam, de certa forma, de um processo, iniciado com a montagem de “Cabra Marcado para Morrer” e que foi retomado na
 montagem de “Santiago” – ambos reflexões sobre o material bruto. “Imagens do Estado Novo – 1937-45” não motivou de qualquer forma “No Intenso Agora”. No máximo, o que talvez seja possível dizer, é que os dois filmes são primos distantes, pertencentes a uma família comum que tem em Marker e Farocki seus antepassados mais ilustres. Registre-se, ainda, que “Imagens do Estado Novo” começou a ser feito em 2003, antes ainda de “Santiago”, portanto, e que o João só
assistiu ao documentário bem depois de “No Intenso Agora” ser concluído.

Revista de CINEMA – Como você consegue conciliar tarefas tão absorventes quanto a montagem/edição de filmes, a direção cinematográfica e a reflexão (seja em livros como “Adivinhadores de Água”, seja em seus artigos na Piauí, seja em sua ação como professor de pós-graduação da FGV)?

Eduardo Escorel – Tento conciliar múltiplas atividades, de fato, mais por necessidade do que por prazer. Sou de um tempo em que não havia separação entre realização e reflexão sobre cinema. Foi nessa tradição que eu me formei. Daí, colaborar com a revista Piauí há quase dez anos. Ocupar o 
espaço que me foi oferecido na revista e no site, e enfrentar a ira de quem é criticado, foi encarado como tarefa. Por outro lado, cineastas costumam ter tempo ocioso entre um filme e outro. Para quem vive do seu próprio trabalho, e não ganha o suficiente para cobrir as despesas nos intervalos entre um projeto e outro, a opção natural pareceu ser, em dado momento, retomar a atividade de montador, que durante muitos anos deixara de lado. Além disso, coordenar e dar aulas em um curso de pós-graduação em cinema documentário na FGV, ocorreu em resposta a um convite e passou a representar a obrigação de estudar, ver e rever filmes. Nos melhores momentos, é também uma maneira de manter contato com pessoas de outra geração que ainda sonham fazer cinema.

Revista de CINEMA – Você causou grande polêmica ao dizer, numa palestra na Mostra de Tiradentes (2012), que o cinema brasileiro é insignificante (se visto pelo espaço social que ocupa em seu próprio mercado) e que o cinema argentino compõe-se com filmes melhores que os nossos. E, em sua intervenção semanal na Piauí digital, você critica, com duro rigor, filmes de realizadores brasileiros. Jean-Claude Bernardet foi um crítico duro de nossos filmes (hoje prefere ser ator) e também afirmou, na Revista de CINEMA, que “o cinema argentino dá de goleada no cinema brasileiro”. Num país marcado pela “brodagem”, vocês são exceções que confirmam a regra?



Eduardo Escorel – O que eu disse em Tiradentes, em 2012, foi ter a “sensação do edifício estar ruindo, havendo um descompasso entre o que vem ocorrendo em 
âmbito mundial e nacional, há cerca de 30 anos, e o cinema produzido no Brasil, inclusive o modo de produção prevalecente desde a primeira metade da década de 1990”.
 Disse também ser “preciso reconhecer que, de fato, o cinema argentino contemporâneo, assim como o iraniano, é muito superior ao brasileiro”. E que uma razão disso “pode estar no monstrengo burocrático criado no Brasil para dar suporte à produção cinematográfica”. Não usei a palavra “insignificante”. O que disse foi que “irrelevante
 no mercado interno e externo, a produção cinematográfica brasileira se tornou perdulária. Mais dia, menos dia, a conta será apresentada.”

Revista de CINEMA – Quando Ivana Bentes lançou, em livro, um perfil de Joaquim Pedro (de quem você foi assistente de direção em “O Padre e a Moça”, montador de vários filmes e co-roteirista de “Os Inconfidentes”), você escreveu dura crítica ao trabalho dela no Jornal de Resenhas (USP-Folha de S. Paulo). Um dos pontos que você criticou referia-se a exagero ao narrar a recepção de Werner Herzog ao filme “Macunaíma”.
 Segundo relato de Mário Carneiro, outro parceiro próximo de Joaquim, Herzog teria se ajoelhado aos pés do brasileiro. Tal “gesto físico” pode não ter se verificado, mas o alemão testemunhou, de viva voz, o impacto que recebeu do filme de Joaquim Pedro. Você tem ojeriza a rompantes retóricos?



Eduardo Escorel – Fui grosseiro ao comentar o livro sobre Joaquim Pedro, e me arrependo disso. Manteria as críticas que fiz, pois o livro me parece mesmo muito fraco, mas se fosse possível retiraria a citação vulgar de Macunaíma que inclui no artigo. Quanto ao Herzog, posso estar enganado, mas creio que ele ter se ajoelhado diante de Joaquim Pedro não passa de uma fantasia do Mário Carneiro. Digo isso com razoável grau de certeza, uma vez que eu estive com Herzog e Joaquim Pedro, quando eles se encontraram na casa de Joaquim Pedro e não tenho a menor lembrança de ninguém ter se
 ajoelhado diante de ninguém. Pode ter ocorrido em outra ocasião? É possível. Tratando-se de Herzog, porém, é preciso sempre cautela. Ele mesmo se diz um contador de histórias, como os do mercado de Marrakesh, que não têm compromisso com a verdade. Fazem questão de preservar, como Herzog, a liberdade de fantasiar.

 

FILMOGRAFIA RESUMIDA DE EDUARDO ESCOREL

Como diretor:

FICÇÃO

  • 1976 – Lição de Amor
  • 1977 – Contos Eróticos (episódio “O Arremate”)
  • 1980 – Ato de Violência
  • 1984 – O Cavalinho Azul

DOCUMENTÁRIOS

  • 1966 – Bethânia Bem de Perto (com Júlio Bressane) – curta
  • 1969 – “Visão de Juazeiro” – curta
  • 1983 – “Chico Antônio, Herói com Caráter” – curta
  • 1990 – “1930- Tempo de Revolução” – longa
  • 1993 – “32 – A Guerra Civil” – longa
  • 2002 – “35 – O Assalto ao Poder” – longa
  • 2005 – “Vocação do Poder” (com José Joffily) – longa
  • 2007 – “Deixa Que Eu Falo” – longa
  • 2008 – “O Tempo e o Lugar” – longa
  • 2013 – “Paulo Moura, Alma Brasileira” – longa
  • 2018 – “Imagens do Estado Novo” – longa

Como montador-editor:

  • “Terra em Transe”, “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, “Cabeças Cortadas” e “Leão de Sete Cabeças”, todos de Glauber Rocha
  • “Macunaíma”, Os Inconfidentes, Guerra Conjugal, todos de Joaquim Pedro de Andrade
  • São Bernardo e Eles Não Usam Black-Tie, ambos de Leon Hirszman
  • Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho
  • “Dois Perdidos Numa Noite Suja” e “Achados e Perdidos”, ambos de José Joffily
  • “Santiago” e “No Intenso Agora”, ambos de João Moreira Salles

 

Por Maria do Rosário Caetano

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