Fest Brasília – Com “Temporada” e “Wallace” festival mostra a periferia em sua complexidade

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

A sétima noite da mostra competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro uniu dois filmes protagonizados por atores negros: o longa mineiro “Temporada”, de André Novais Oliveira, com Grace Passô, e o curta carioca “Eu, minha Mãe e Wallace”, dos Irmãos Carvalho, com Fabrício Boliveira. Os dois filmes devem levar seus criadores artísticos e técnicos muitas vezes ao palco do Cine Brasília, neste domingo, 23, na Noite dos Candangos, para receber seus troféus.

“Temporada”, segundo longa-metragem de Novais Oliveira (o primeiro, “Ela Volta na Quinta”, causou ótima impressão em edição anterior do festival), inspira-se em experiência vivida em Contagem, na grande BH, pelo futuro cineasta. Por oito meses, ele atuou em equipe de combate à dengue. Para escrever o roteiro do filme, André procurou colegas daqueles breves meses e ofício abandonado para realizar seu objetivo maior, fazer cinema.

Um deles, Hélio Ricardo, não só relembrou, para o ex-colega, histórias dos brigadistas que vão de casa em casa em busca de focos de dengue, como ganhou um papel no filme. Tornou-se ator, ao lado de Grace Passô, intérprete da protagonista Juliana, do hilário Russo APR, o Russão, e de Jande Souza.

O filme começa com a chegada de Juliana a um bairro popular de Contagem. Ela vem do interior para agregar-se à equipe sanitária de combate a endemias. E vai trabalhando enquanto espera o marido, que deveria chegar, mas não dá mais notícias.
Enquanto espera, Juliana vai-se enturmando com os colegas e vivendo novas experiências. O filme é muito bem-humorado, humanista e povoado por gente comum, imersa em seus pequenos desafios e afetos cotidianos. O volumoso Russão imanta nosso olhar e nossa escuta com suas histórias de vida (vai submeter-se a exame de DNA para comprovar paternidade). E, principalmente, com suas tiradas hilárias. Numa delas, avisa que “quem aluga a bunda, não tem direito de sentar”. Juliana, mais concentrada, mas contaminada pelas pequenas alegrias do grupo, também pondera de forma jocosa: “se eu te contasse tudo que estou passando, você arriava as calças e dava para mim” (empréstimo — contou o diretor do filme — de “Cabaret Mineiro”, o longa fescenino de Carlos Alberto Prates Correia).

Grace Passô, protagonista de “Praça Paris”, de Lúcia Murat (trabalho que lhe rendeu o troféu Redentor, no Festival do Rio), contou, no debate de “Temporada”, que fez questão de abandonar procedimentos técnicos acumulados em sua respeitada carreira teatral, para entrar em fina sintonia com o elenco do filme. Elenco que busca frescor realista, próximo ao naturalismo, e no qual destacam-se, além de Russo APR e Hélio Ricardo, os atores Rejane Faria, Sinara Teles, Ju Abreu, e o pai, a mãe e irmão do diretor (o Sr. Norberto, Dona Zezé e Renato, os três Novais Oliveira).

No palco do Cine Brasília, intensa emoção tomou conta do cineasta ao dedicar a sessão à memória de sua mãe, Maria José Novais Oliveira, a Dona Zezé. Ela, que atuara no longa “Ela Volta na Quinta” e no curta “Quintal” (ambos premiados em Brasília), faleceu meses atrás, depois de fazer participação especial em “Temporada” (em cena calorosa, em dueto com Grace Passô). André contou que a mãe será vista, ainda, em outros filmes, pois recebeu muitos convites para atuar, depois do carisma demonstrado nos filmes do filho. Os olhos do viúvo, Sr. Noberto, dos filhos Renato e André, e da nora Élida Silpe estampavam muita emoção (e lágrimas).

O cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014) costumava dizer, baseado em sua longa experiência com trabalho em favelas (em especial na fase do Cecip – Centro de Criação de Imagem Popular), que as comunidades abrigavam milhares de homens de bem e alguns (menos de 1%) transgressores da lei. Mas que estes dominavam por metonímia, a face violenta exposta pela mídia.

“Temporada” registra, com seus muitos personagens, que a vida em comunidades periféricas é plena de subjetividade, desejos, trabalhos, humores, alegrias e tristezas. A violência é insinuada na narrativa, quando a coordenadora da brigada sanitária recomenda que se interrompa a atividade do dia, pois há sinais de que algo grave se passa, quem sabe um tiroteio. Os brigadistas, muito bem aceitos na comunidade, desmancham a expectativa negativa e seguem suas vidas.

O mesmo se passa no curta “Eu, minha Mãe e Wallace”, de Eduardo e Marcos Carvalho, os dois irmãos do Morro do Salgueiro, que ano passado ganharam o Candango de “melhor direção” (categoria curta-metragem), por “Chico”, também filmado em território salgueirense.

Na primeira imagem do novo curta, nos deparamos com fotografia antiga, já desbotada e com dobras, na qual vemos uma avó e seu neto, um moleque que segura amorosamente uma bola de futebol. Dá-se grande corte temporal e chegamos aos dias presentes. Um homem, Wallace (Fabrício Boliveira), chega a uma casa, no morro, bate à porta e é recebido com frieza por um homem de idade semelhante à sua (o ator Robson Santos), que decora a parede da sala com letras que compõem os votos de “Feliz Natal”.

Da conversa seca entre os dois, saberemos que Wallace está saindo da prisão e quer reencontrar uma mulher. É à casa dela (e da filha, uma menina pequena) que ele chega, como se ali estivesse para consertar a geladeira.

Os dois jovens cineastas contaram, durante o debate, que viveram experiência semelhante. Filhos de mãe solteira, foram apresentados, mais tarde, ao pai, inicialmente identificado como responsável pelo conserto do eletrodoméstico.

A partir desta situação vivida, os Irmãos Carvalho constroem tocante retrato de um trio especial: o pai presidário e ausente, que quer conhecer a filha, a mãe decidida (a bela atriz Noêmia Oliveira) e a esperta garota (Sophia Rocha). O clima na casa não é bom. Wallace quer fazer uma foto com a mulher e a menina. A mãe, nada servil, se impõe e sugere que ele vá fritar rabanadas com a garota, enquanto ela cuida de outros afazeres. Ele responde que não sabe desempenhar tal função. “Se vire”, ela responde.

A foto acabará sendo feita não no celular da menina, como uma “selfie” moderna, mas numa câmara descartável, com filme em celulóide, o que exigirá longa preparação. O final (aberto) fustiga nossa imaginação sobre o futuro daquelas três vidas. O que interessa aos diretores é mergulhar na subjetividade da menina, de sua mãe e deste pai, apresentado como “tio”. Em fina sintonia com “Temporada”, a dupla carioca realiza filme em que a favela (no caso, o Morro do Salgueiro) é vista como espaço de complexas relações sociais.

Os Irmãos Carvalho são, como André Novais Oliveira, a prova de que o cinema brasileiro ganha, cada vez mais, novos e instigantes protagonistas.

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