Fest Brasília – Festival mostra poema pastoral dedicado a Humberto Mauro

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

O último dia da mostra competitiva do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começou com a pré-estreia brasileira de “Humberto Mauro”, primeiro longa-metragem do ator André Di Mauro, sobrinho-neto do autor de “Lábios sem Beijos” e “Ganga Bruta”.

O longa documental, que estreou em Veneza Classics, mostra paralela do festival italiano, encantou o público brasiliense por sua construção poética, sedimentada, essencialmente, em imagens maurianas (fragmentos de muitos dos 300 curtas, médias e longas que ele dirigiu). O material foi enriquecido, pelos dois montadores (Renato Vallone e o próprio Di Mauro), com breves inserções de filmes de contemporâneos de Humberto Mauro (o Mario Peixoto, de “Limite”, e Otávio Gabus Mendes, de “Mulher”). E, também, com trechos de filmes sobre o cineasta mineiro (caso do curta dirigido por David Neves etc).

Nos três últimos anos, André Di Mauro (ator com longa trajetória na TV e autor do livro “Humberto Mauro, Pai do Cinema Brasileiro”) entrevistou diversos especialistas na obra do tio-avô. Mas radicalizou na hora de editar o filme. Optou por sinfonia de imagens e sons que lembra muito “Cinema Novo”, de Eryk Rocha, premiado com o troféu Olho de Ouro, no Festival de Cannes 2016. Ou seja, deixou todas (mas todas mesmo!) as “cabeças falantes” de fora e, junto com Renato Vallone (o mesmo montador de “Cinema Novo”), construiu sua sinfonia pastoral a partir de longa entrevista de Humberto Mauro (1897-1983), fruto de conversa com vários interlocutores.

O pioneiro do cinema brasileiro fala de sua vida (desde que nascera em Volta Grande-MG, partira para Cataguases, onde faria seus primeiros filmes, até radicar-se no Rio para trabalhar com Adhemar Gonzaga e Carmen Santos e, depois, a convite de Roquete Pinto, transformar-se na alma do INCE-Instituto Nacional do Cinema Educativo).

O filme de Di Mauro foge do didatismo, usa trilha sonora potente (momento sublime aquele em que destaca “O Trenzinho do Caipira”, de Villa-Lobos), seleciona imagens de grande beleza plástica e recorre a poderosa reiteração, perguntando, diversas vezes, a Mauro, por que ele achava que o progresso não era “tão fotogênico” quanto as imagens telúrico-pastorais de sua infância e juventude. Outro momento saboroso: aquele em que um dos entrevistadores pergunta a Mauro se ele concordava com o crítico francês Georges Sadoul (1904-1967), que, ao estudar sua obra pioneira, dissera que os filmes maurianos não traziam influências cinematográficas. Com sinceridade bonachona, Mauro dá a entender, subliminarmente, que sim, mas — pondera — acreditava ter recebido influências do cinema norte-americano e francês.

Há ênfase, no documentário, também às atuações de Humberto Mauro como “ator”: em “Mulher”, no qual interpretou o padrasto da mocinha e, no seu longa ficcional derradeiro, batizado simbolicamente de “Canto da Saudade” (1952), na carismática figura de um político populista. O filme chegará aos cinemas brasileiros ano que vem. E as entrevistas colhidas para seu projeto original farão parte de série de TV, que o próprio Di Mauro, de 53 anos, vai dirigir.

Depois da sinfonia pastoral mauriana, a temperatura subiu no Cine Brasília. Centenas de espectadores, o espaço estava abarrotado, assistiram a três filmes altamente transgressores (se um evangélico fanático estivesse na sala, teria um surto): o longa “Bixa Travesty”, de Cláudia Priscila e Kiko Goifman, que ganhou o Teddy Bear (o urso gay) no Festival de Berlim, e os curtas “Reforma”, do pernambucano Fábio Leal, e “BR 3″, do carioca Bruno Ribeiro.

Os três filmes tratam de corpos que não se encaixam na tradição binária institucionalizada pela cultura judaico-cristã. Nem nos padrões higienizados pela mídia (a beleza louro-ariana-esguia) e pelo patriarcalismo. Em “Bixa Travesty”, acompanhamos a vida pessoal e profissional de Linn da Quebrada, de 28 anos, e de sua amiga Jup do Bairro, de 24, ambas transexuais, cantoras, compositoras e performers. Ambas pretas e periféricas (Linn, da Sapopemba paulistana, e Jup, de Valo Grande). As duas, que foram vistas no longa documental “Abrindo o Armário”, de Menezes e Abramo, recém-lançado — Linn participou também de “Corpos Elétricos”, de Marcelo Caetano, e de “Meu Corpo é Político”, de Alice Riff — utilizam suas criações musicais e libertárias conceituações (no filme, emitidas por programa de rádio) para questionar e desestruturar mentalidades conservadoras e patriarcais.

O programa de rádio de Linn e Jup, que nasceu como recurso narrativo do filme de Claudia e Kiko, vai transformar-se, em breve, em programa no Canal Brasil. A mesma dupla de diretores de “Bixa Travesty”, que assina, há quatro temporadas, o programa “Transando com Laerte”, no mesmo Canal, vai dirigir o novo programa.

No debate, no qual Lynn falou bastante e de forma muito articulada, ela lembrou a importância de seu trabalho como co-roteirista do filme, já que o casal Claudia e Kiko, cisgênero, branco e de classe média, não conhecia as vivências das duas transexuais, negras e periféricas. Contou, também, que ela e Jup, por serem pretas, eram, no início, discriminadas até pelas trans brancas e não-periféricas. “Quando estávamos em atividades comuns, ao final, elas pegavam um taxi para ir para casa. Jup e eu, tomávamos um busão rumo à quebrada. E, se fôssemos convidadas, o que era raro, para dormir na casa delas, era para dormir mesmo!”.

Uma das sequências mais elogiadas do filme, durante o debate, foi o banho que Lynn e sua mãe, Dona Lilian, alagoana de 66 anos, radicada em São Paulo, empregada doméstica por toda a vida, tomam juntas, uma esfregando amorosamente o corpo da outra.

“Reforma”, que tem Fábio Leal como diretor, roteirista e protagonista, registra as angústias de Francisco, que conversa com sua amiga Flávia (Mariah Teixeira), na casa dela, que passa por ampla reforma arquitetônica. Francisco se sente rejeitado por ser gordo. Seus relacionamento com parceiros são fugazes. A amiga o questiona, sugere que ele coma menos ou que frequente uma academia. Ele quer ser aceito como é, gordo e peludo. O filme tem cenas de sexo ousadas e final que levantou o astral da galera. Para não quebrar a fruição de quem for vê-lo, só dá para citar seus ingredientes: um pote de sorvete e uma das canções da trilha de filme que Francisco assiste na TV.

“BR 3″, de Bruno Ribeiro, aluno do curso de Cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense), soma pequenas histórias protagonizadas por travestis e transexuais no território espacial da Maré, periferia carioca. A esguia Kastelany parece ingênua, mas não é. Rouba a cena em bailado de rua de grande vitalidade. Mia cai na night com suas amigas. Dandara transa com Johi. Seus corpos e sexos enchem a tela.

Os três filmes (o longa e os dois curtas) foram fotografados por mulheres. “Bixa Travesty”, por Karla da Costa, “Reforma”, por Maíra Labrudi, e “BR 3″, por Thaís Fraga. A presença de mulheres no comando da direção de fotografia, outrora reduto masculino, ganhou imenso relevo no festival candango. Na Mostra Brasília, uma das fotógrafas que subiram ao palco leu manifesto da categoria e convocou a todas as colegas de ofício a se filiarem ao Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil (DAFB), que mantém dinâmica página no espaço digital.

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