Mulheres do século XXI são tema de mostra de filmes

Um encontro de nome arregimentador – “Século XXI: Mulheres, Ação!” – apresentará no Rio, a partir desta segunda-feira, 3 de setembro, até dia 9, no Cinémaison e na Cinemateca do MAM, e em São Paulo, de 12 e 16, no Instituto Moreira Salles, filmes e debates sobre a presença feminina no cinema brasileiro e internacional.

O filme de abertura será o documentário mineiro “Baronesa”, de Juliana Antunes, mas a cereja do bolo é, sem dúvida, “Sois Belle et Tais-Toi!” (“Seja Bela e Cale-se” ou, na tradução das curadoras brasileiras, “Seja Bela e Cale a Boca”), de 1976, raridade que chega da França. Este documentário, dirigido pela atriz Delphine Seyrig (1932-1990), musa renaisiana de “O Ano Passado em Marienbad”, reúne, ao longo de 115 minutos, entrevistas de 25 atrizes francesas e norte-americanas sobre suas experiências profissionais enquanto mulheres, seus papéis e relacionamentos com diretores e equipes técnicas. Entre as entrevistadas, estão Anne Wiazemsky, Maria Schneider, Jane Fonda, Shirley MacLaine, Marie Dubois, Juliet Berto, Patti D’Arbanville, Louise Fletcher e Ellen Burstyn.

Andréa Cals, idealizadora e curadora de “Século XXI: Mulheres, Ação!”, lembra que o filme de Seyrig nos traz “relatório coletivo bastante negativo”, realizado na década de 1970, portanto há mais de 40 anos, sobre um ofício (a profissão de atriz) que, na maioria da vezes, oferecia às mulheres “papéis estereotipados e/ou alienados”.

O documentário francês deve, pois, motivar um dos mais calorosos debates de “Século XXI: Mulheres, Ação!”, já que esta mostra-seminário – conforme explica a curadora – “pretende fortalecer e ampliar o debate sobre o que é ser mulher no mundo atual”. Que mudanças e avanços o cinema feminino conquistou nas últimas décadas? As atrizes dispõem, hoje, de papéis mais complexos, portanto longe de estereótipos?

Outra joia da mostra é o documentário suíço “Carole Roussopoulos, une Femme à la Caméra”, de Emmanuelle de Riedmatten (2011, 76 minutos). O filme registra a trajetória da cineasta feminista Carole Roussopoulos (1945-2009), focando em seu pioneirismo na utilização de câmeras portáteis, seu ativismo pela causa das mulheres e de populações pobres. “Uma Mulher com sua Câmara” compõe-se com material de arquivo, depoimentos de familiares, trechos de filmes e testemunhos de lutas sociais. “O resultado” – pontua a curadoria – “nos fornece panorama da vida de uma das mais importantes documentaristas do século XX”.

Um evento como “Século XXI: Mulheres, Ação!” – destinado a reflexões sobre o audiovisual feminino e criado para homenagear a memória da vereadora Marielle Castro – não poderia prescindir do nome de Simone de Beauvoir (1908-1986), essencial às lutas feministas. Ela será lembrada com o documentário “Retrato de Simone de Beauvoir”, de Alice Schwarzer, no qual a vemos em sua casa e intimidade, com seus livros, discos e bibelôs, falando de sua vida amorosa, emancipação feminina e masculinidade. Jean-Paul Sartre, um de seus companheiros de vida, tem participação especial.

Andréa Cals conta que idealizou “o evento brasileiro durante estada na França e que encontrou, no Brasil, em sua cidade, o Rio de Janeiro, “a pior motivação para realizá-lo: a execução covarde e violenta de Marielle Franco”.

Tomada de indignação cívica, ela somou forças com outras mulheres-parceiras, convidando duas delas, a brasileira Flávia Cândida e a francesa Nicole Fernández Ferrer, para selecionar algumas dezenas de filmes e montar as mesas de debate que agora chegam ao público (todas as atividades têm entrada franca).

Nicole Ferrer, que é diretora do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, virá ao Brasil, exclusivamente, para participar do evento e proferir palestra sobre seu trabalho à frente deste instituto feminista. E para dar suas impressões sobre os filmes brasileiros a que assistirá em sua estada carioca.

A participação francesa – a maior depois da brasileira – traz, entre outros títulos, “Le FHAR – Le Front Homosexuel d’Action Révolutionnaire” e “Qui a Peur des Amazones?”, de Carole Roussopoulos, e “Accouche!”, de Ioana Wieder e Carole Roussopoulos.

A seleção internacional se destaca por nos trazer raridades do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir (como o filme de Delphine Seyrig e o média-metragem sobre Roussopoulos), mas – garantem Andréa e Cândida – “a seleção brasileira, composta com 25 títulos, todos potentes em suas temáticas feministas”, também é das mais estimulantes.

As duas curadoras se orientaram pela escolha de filmes cujos assuntos têm a ver com os conceitos que embasam a mostra, concentrando-se, “principalmente, em títulos que tragam o protagonismo feminino como tema, independente do seu ano de produção ou duração”. Há realizações recentes, dos últimos três anos, mas há também “Amor Maldito”, de Adélia Sampaio, realizado em 1984, e presente porque a cineasta, a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, será homenageada. Registre-se que o evento concebido por Andréa Cals mantém fina sintonia com os direitos, desafios e imagem (no audiovisual) da mulher negra.

Além de “Amor Maldito” e “Baronesa”, foram convocados, entre outros, o misterioso e delicado “Mate-me por Favor”, de Anita Rocha da Silveira, o poderoso “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, “O Aborto dos Outros”, de Carla Gallo, “Kbela”, de Yasmin Thayná, “Clandestinos”, de Fádhia Salomão, “Arremate”, de Ethel Oliveira, “Chega de Fiu-Fiu”, de Amanda Kamancheck Lemos e Fernanda Frazão, “Sou Feia mas Tô na Moda”, de Denise Garcia, “Precisamos Falar do Assédio”, de Paula Sachetta, e “Meu Corpo é Político”, de Alice Ryff.

A presença black na mostra “Século XXI: Mulheres, Ação!” ganhará relevo, também, com a exibição de “Audre Lorde, the Berlin Years 1984 to 1992”, de Dagmar Schultz, retrato da poeta e renomada militante LGBT negra. “O filme” – registram as curadoras – “explora lado pouco conhecido da vida da escritora na Alemanha um pouco antes (e logo depois) da queda do Muro de Berlim e consequente reunificação do país”. Uma época em que “Audre Lorde foi fundamental para o fortalecimento do movimento africano alemão”.

Da nova geração de artistas sul-africanas, será mostrado o primeiro filme de Thembela Dick, o curta-metragem “Thokozani Football Club: Team Spirit”, que registra, num pequeno vilarejo, time de futebol composto de lésbicas negras. Elas deram ao time o nome de Thokozan Qwabe, jovem jogadora negra lésbica, vítima de crime de ódio, em 2007.

No terreno da reflexão, a pauta é tão arregimentadora quanto os filmes. Temas como “Chega de Assédio”, “Maternidade: Uma Escolha”, “Lesbianidade, Ação!” e “Protagonismo Negra” (atenção para a marca feminina!) serão debatidos por 19 mulheres especialistas em seus ofícios. Entre elas, estão Edmeire Exaltação (cientista social e coordenadora da Casa das Pretas), Giowana Cambrone (advogada e assessora jurídica do programa Rio sem Homofobia), Kenia Maria (escritora e defensora dos Direitos das Mulheres Negras na ONU) e Amanda Kamancheck Lemos, diretora do documentário “Chega de Fiu-Fiu” (eleita uma das “21 mulheres brasileiras que estão fazendo do país um lugar melhor”, pelo Brasil Post-Huffington Post).

O debate sobre o tema “Protagonismo Negra” contará com palestra de Rosa Miranda, diretora de “Privilégios”, curadora do Cineclube Atlântico Negro e mestranda em Cinema pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Com ela, no debate, estarão Sabrina Fidalgo, roteirista, atriz, produtora (diretora de “Rainha”), Ana Paula Alves Ribeiro, cientista social e professora da UERJ, Lúcia Xavier, assistente Social, coordenadora geral de Criola, e Edmeire Exaltação.

São Paulo assistirá a um resumo do evento, mas, no Rio, a pauta será ampla a ponto de incluir grande confraternização no Museu de Arte Moderna, com a batalha de poesia do coletivo “Slam das Minas” e uma ocupação de mulheres nas áreas externas da Cinemateca do MAM e arredores (com aulas, trocas de conhecimentos, consultas variadas, piquenique, danças e outras atividades). Toda a programação é gratuita.

Para viabilizar “Século XXI: Mulheres, Ação!”, Andréa e suas colegas contaram com apoio da Riofilme, da Cinemateca do MAM, do Consulado da França e de um parceiro fundamental, o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir. Esta instituição, situada em Paris, voltada à conservação e produção do audiovisual de mulheres, foi criada em 1982 pela atriz Delphine Seyrig, junto com as documentaristas Carole Roussopoulos e Ioana Wieder. Elas formaram o Coletivo Les Insoumuses (trocadilho com a palavra francesa “insoumises” – insurbordinadas, portanto “ musas insubordinadas”) e foram pioneiras, na França, em utilizar a câmera de vídeo portátil na realização de suas produções audiovisuais.

Delphine Seyrig, que partiu cedo (aos 58 anos), atuou em filmes importantes de Luis Buñuel (“O Discreto Charme da Burguesia”, “Via Lactea – O Estranho Caminho de São Thiago”), Marguerite Duras (“India Song”, “Baxter, Vera Baxter”), Mario Monicelli (“Caro Michele”), Joseph Losey (“Maison de Poupée”) e Chantal Akerman (“Jeanne Dielman”, “Golden Eighties”). Com Alain Renais, que a projetou mundialmente com o hipnotizante e labiríntico “O Ano Passado em Marienbad” (1961), Delphine realizou, também, “Muriel”. Ela esteve, há que se frisar, na linha de frente do feminismo francês na segunda metade do século passado.

Entre os filmes assumidamente feministas da grande atriz e diretora está “Maso et Miso Vont en Bateau” (1976), que realizou em parceria com Carole Roussopoulos, Ioana Wieder e Nadja Ringart (todas do Coletivo Musas Insubmissas). O quarteto utiliza, ao longo de 55 minutos, de ironia e sarcasmo para interferir na reprodução de entrevista realizada pelo jornalista Bernard Pivot com a escritora Françoise Giroud, então titular da Secretaria de Estado da Condição Feminina, no governo Jacques Chirac (entre 1974 e 1976).

Como se vê, desta segunda-feira até dia 16 de setembro, mulheres cariocas e paulistas (e homens interessados) têm encontro marcado com filmes e debates de ponta sobre um dos temas mais importantes de nosso tempo: a inclusão de mulheres, a mulher negra à frente, no mercado de trabalho. Em especial, no audiovisual, poderoso instrumento de mobilização social e formação de consciências.

Por Maria do Rosário Caetano

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