Jorge Furtado volta à ficção com “Rasga Coração”

“Rasga Coração”, o oitavo longa-metragem de Jorge Furtado, realizador que fez história com o curta “Ilha das Flores” (1989), é o filme certo, que chega na hora certa.

Depois de dois documentários (“O Mercado de Notícias” e “Quem Foi Primavera das Neves”), de dedicação intensa à TV (inclusive com “Doce de Mãe”, que rendeu um Emmy Internacional a Fernanda Montenegro) e de uma ficção decepcionante (“Real Beleza”), o cineasta gaúcho recria, com grande força e talento, a mais famosa peça teatral de Vianinha (Oduvaldo Viana Filho/1936-1974). O filme, protagonizado por Marco Ricca e Chay Suede, está em cartaz em 31 salas de oito capitais brasileiras (São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Brasília, Porto Alegre, BH e Fortaleza).

O texto de Vianinha, força original do filme, foi escrito em seus dois anos derradeiros (1973/74). O dramaturgo enfrentava, enquanto escrevia, devastador câncer no pulmão, que o levaria à morte aos 38 anos. Conseguiu, ainda assim, concluir seu trabalho de maior complexidade.

No “Rasga Coração” original, um pai, Manguari Pistolão, militante comunista, se desesperava com as ideias e práticas do filho, chegado aos valores da contracultura e do movimento hippie. Em sua versão atualizada, Jorge Furtado preserva o perfil de Manguari, mas transforma seu filho em um jovem ativista do Brasil pós-Manifestações de 2013, que veste saia, pinta as unhas e preocupa-se com questões de gênero, entre outras plataformas contemporâneas. Estamos pois, em tempos muito próximos e nebulosos.

No filme que nasceu da peça, Manguari Pistolão (Marco Ricca), funcionário público, é um militante anônimo. Depois de quarenta anos de lutas políticas e sociais, vê o filho Luca (Chay Suede) acusá-lo de conservador. Sem dinheiro para fechar as contas do mês e sofrendo as dores de artrite crônica, ele vê, ao lado da atormentada esposa (Drica Moraes), crescer a distância que o separa do filho.

O velho Pistolão passará, então, a rememorar seu passado, e perceberá que está repetindo as mesmas atitudes de seu velho pai (o rígido 666, interpretado por Nélson Diniz). Para dar consistência a estes dois tempos (de Manguari filho se desentendendo com o pai, e de Manguari pai se desentendendo com o filho Luca), Jorge Furtado trabalhará flashbacks (muito bem valorizados pela excelente montagem de Giba Assis Brasil), que só se tornarão familiares ao espectador depois de algum tempo. Ao intercalar fragmentos de vários momentos da vida de Manguari, o filme atravessará quatro intensas décadas da vida política brasileira.

Vianinha buscou, em uma canção de Anacleto de Medeiros (1866-1907), o título de sua peça. Título que Jorge Furtado fez, acertadamente, questão de preservar. O dramaturgo não teve tempo de ver seu sólido (e tocante) drama nos palcos. Se tivesse sobrevivido ao câncer, mesmo assim teria que esperar cinco anos (até 1979), pois “Rasga Coração” foi interditada pela Censura (sua encenação e publicação proibidas, o que não impediu que recebesse, por unanimidade, o prêmio principal do Concurso do SNT-MEC – Serviço Nacional de Teatro). Montada por elenco liderado por Raul Cortez, “Rasga Coração” recebeu ótimas críticas e mobilizou plateia das mais expressivas. Será que o filme de Jorge Furtado conseguirá dialogar com o público, neste momento de desalento cívico, autoestima baixa e plateias rarefeitas para a produção nacional? A presença em apenas 31 salas mostra que a Sony Pictures, distribuidora do filme, faz lançamento cauteloso e aposta no boca-a-boca. Se o filme agradar, novas praças (além das oito capitais desta primeira etapa) o abrigarão.

Marco Ricca e Chay Sued (excelentes em seus desempenhos) somam-se, em “Rasga Coração”, a elenco de peso. George Sauma diverte na pele de Lorde Bundinha, irreverente amigo de Manguari jovem (vivido por João Pedro Zappa, o talentoso protagonista de “Gabriel e a Montanha”), Luísa Arraes (como Mil, de traços andróginos), Kiko Mascarenhas (Castro Cott) e Duda Meneghetti (como Nena, personagem de Drica de Moraes, na juventude).

O filme, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, em parceria com a Globo Filmes e o Canal Brasil, traz parceiros de todas as horas de Jorge Furtado, como a co-roteirsta Ana Luiza Azevedo (com a dupla atuou Vicente Moreno), o montador, e craque, Giba Assis Brasil, a produtora executiva Nora Goulart, o fotógrafo Glauco Firpo, o diretor de arte Fiapo Barth (em parceria com William Valduga), e a figurinista Rô Cortinhas.

Rasga Coração
Brasil, 115 minutos, 2018
Direção: Jorge Furtado

FILMOGRAFIA DE JORGE FURTADO
(Porto Alegre, 09/06/1959)

2018 – “Rasga Coração”
2017 – “Quem É Primavera Das Neves” (co-direção Ana Luiza Azevedo)
2015 – “Real Beleza”
2014 – “O Mercado de Ideias”
2007 – “Saneamento Básico, o Filme”
2005 – “Meu Tio Matou um Cara”
2003 – “O Homem que Copiava”
2002 – Houve Uma Vez Dois Verões

 

Por Maria do Rosário Caetano

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