“Os Melhores Anos de uma Vida” encerra trilogia de Claude Lelouch
Por Maria do Rosário Caetano
Se uma enquete fosse realizada entre os críticos da revista Cahiers du Cinéma para eleger o pior cineasta francês de todos os tempos, as chances de Claude Lelouch ser o eleito seriam imensas.
O fato do filme mais famoso dele – “Um Homem, uma Mulher” (1966) – ter ganho a Palma de Ouro, em Cannes, o Oscar de melhor filme estrangeiro (e melhor roteiro), e o Globo de Ouro só fizeram agravar a ojeriza da bíblia cinéfila pelo prolífico realizador parisiense.
A revista criada por André Bazin e consolidada pelos “jovens turcos” (Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette, Chabrol) passa nesse exato momento por grande mudança. Foi comprada por um consórcio de produtores e a redação – defensora do “cinema de autor” (e contrária ao “cinema de produtor”) – se demitiu em bloco. Mas um de seus atos de fé foi aplicado em regra ao quadragésimo-nono filme do incansável Claude Lelouch – “Os Melhores Anos de uma Vida” – fecho de trilogia iniciada 53 anos atrás com “Um Homem, uma Mulher” e sequenciada, em 1986, com “Um Homem, uma Mulher 20 Anos Depois”.
O novo filme, que será exibido nesta quinta-feira, 18, às 21h (e também, no sábado, às 21h30), no recém-instalado Cine Drive-in Belas Artes/ Memorial da América Latina, teve boa aceitação junto a veículos importantes como Positif (4 estrelas), Le Monde, Le Nouvelle Observateur e Les Inrockuptibles (três estrelas), mas ganhou da Cahiers a cotação mínima (uma estrela). Nem a presença de dois atores soberbos (Jean-Louis Trintignant, que fará 90 anos em dezembro, e Anouk Aimée, de 88) comoveu os herdeiros dos “jovens turcos”.
A longevidade de Lelouch, que em outubro fará 83 anos, de Anouk e de Trintignant permitiu algo raro no cinema: produzir trilogia, ao longo de quase seis décadas, tendo como protagonistas seus atores originais. Anouk Aimée, quase nonagenária, segue firme, lúcida, com saúde. Trintignant, que comoveu o mundo e a Academia de Hollywood com o duro “Amor” (Michael Haneke, 2012), premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, está lúcido, mas alquebrado. Só caminha com auxílio de terceiros. No fecho da trilogia, ele incorpora o ex-piloto de corridas Jean-Louis Duroc com o rosto marcado por rugas profundas e recolhido a uma casa de repouso. Vive sentado numa cadeira de rodas, perdido em lembranças de um grande amor do passado (a roteirista e produtora de cinema Anne Gauthier), mas esquecido de coisas que acabam de acontecer.
Antes de se detalhar a trama desse derradeiro filme da trilogia “Um Homem, uma Mulher”, há que se regressar ao filme original, o quinto do cineasta, e o que mais lhe rendeu fama e dinheiro, junto com o melodrama “Les Uns et les Autres” (no Brasil, “Bolero” ou “Retratos da Vida”, 1981). Este, o vigésimo Lelouch, com coreografia de Maurice Béjart, permaneceu em cartaz, em São Paulo, por quase dois anos.
O ultra-premiado “Um Homem, uma Mulher” virou febre planetária. Até nos cinemas dos pequenos municípios interioranos do Brasil, todos cantavam “Sabá-dá-bá-dá”, tema com um quê bossanovista, parceria de Francis Lai (1932-2018) com o ator-compositor-cantor-e-cineasta Pierre Barouh (1934-2016), autor do notável documentário “Saravah”. Também pudera, o tema de “Um Homem, uma Mulher” grudava nos ouvidos como chiclete no sofá. O filme alcançou sucesso ainda mais arrebatador nos EUA. A ponto de Francis Lai ser convidado para compor a trilha sonora de um dos mais grudentos melodramas de Hollywood: “Love Story” (Arthur Hiller, 1970). Francis Lai ganharia o Oscar por suas composições lovestoryanas.
O “Sabá-dá-bá-dá” embalava, no filme da década de 1960, a história de amor entre um cativante piloto e uma linda roteirista de cinema, ambos viúvos recentes, ele, pai de um menininho (Antônio), ela, de uma menininha (Françoise). Jovens, bonitos, com profissões charmosas, embalados por trilha descolada, banhados em pores-de-sol de imensa beleza, banhando-se em praias deslumbrantes na Normandia etc., o que os impedia de serem felizes? No caso de Anne, a lembrança do marido morto, o amoroso Pierre Gauthier (Pierre Barouh). No caso de Duroc, a fama de conquistador, daquele tipo que não podia ver um rabo de saia.
Vinte anos depois, no segundo filme da Trilogia, Anne Gauthier deixara de escrever roteiros e tornara-se produtora de cinema, cujo último filme fracassara. Ela resolve, então, procurar seu antigo amor, o piloto Jean-Louis Duroc, já aposentado (e casado com a bela, e bem mais jovem Marie Sophie). Ele prepara o filho Antoine (Antoine Sure) para sucedê-lo nas pistas de alta velocidade e, como veterano, vai à África participar do Rali Dakar. Anne percebe que não conseguirá transformar o novo filme em um sucesso e acata sugestão do companheiro (o apresentador de TV Patrick Poivre D’Arvor): narrar trama paralela (a fuga de um criminoso de um hospital psiquiátrico).
O segundo filme da Trilogia não alcançou nem um décimo da fama do anterior. Passaram-se mais de três décadas e o cineasta e seus atores resolveram encerrar as aventuras-desventuras amorosas de Duroc & Annie, ainda ao som do “Sabá-dá-bá-dá”. O roteiro foi escrito por uma mulher (Valérie Perrin, com colaboração de Lelouch) e resultou no que Les Inrock definiu como “uma prece, uma meditação” sobre o envelhecimento, a memória, os afetos.
Antoine Duroc, já cinquentão, pesquisador de cinema e apaixonado pelo clássico neo-realista “Ladrões de Bicicleta”, incomoda-se com a solidão do pai, abrigado em sofisticada clínica para idosos. O velho piloto não participa das atividades coletivas e vive perdido em suas memórias, poemas e esquecimentos. O filho resolve, então, procurar Anne Gauthier, a mulher de quem o pai guarda as melhores lembranças. Ela é dona de loja numa cidade bela e calma e vive com a filha Françoise (Souad Amidou), médica-veterinária, apaixonada por cavalos.
A ex-roteirista aceita visitar o amado, mesmo sabendo que ele está meio desmemoriado. Do encontro dos dois, brotarão diálogos bem escritos, passeios de carro por belas paisagens, roupas chiques, brincadeiras metalinguísticas, sempre referenciando o cinema comercial dos EUA, e muito “Sabá-dá-bá-dá”.
Lelouch tenta, no fecho de sua Trilogia, reconciliar-se até com a Nouvelle Vague. Prestem atenção à sequência final, explícita homenagem a Eric Rohmer (1920-2010). Anos atrás, quando participou do Festival Internacional de Cinema da Amazônia, em Manaus, Lelouch detonou a turma e o movimento que renovaram o cinema francês na década de 1960. Para ele, a Nouvelle Vague e seus cultores eram culpados por muitos dos males vividos pelo cinema francês, em especial por histórica dificuldade em dialogar com o grande público.
Decerto ali, no calor de Manaus, com um oceano, o Atlântico, separando o Brasil da Europa, Lelouch se aproveitasse para vingar-se daqueles que sempre o tiveram como um cineasta medíocre. Um crítico e pesquisador (Jean-Pierre Jeancolas) citado por Jean Tullard, em seu Dicionário de Cineastas, definiu Lelouch como “um office-boy dinâmico que se tornou em alguns anos diretor da empresa”. E seguiu em frente, “dando de si mesmo a imagem do estrangeiro que conseguiu se integrar, não sem ter feito por merecer, na sociedade da Metropóle, a imagem da vitória tal qual sonham os leitores de Paris Match e de Lui”.
“Os Melhores Anos de uma Vida”, dedicado a Pierre Barouh, desenvolve-se em sintéticos 88 minutos e poderá interessar a quem viu os dois filmes anteriores da Trilogia e conhece de cor o “Sabá-dá-ba-dá”. Um filme nostálgico, que nos mostra o quanto Anouk Aimée (“Os Amantes de Montparnasse”, “Lola, a Flor Proibida”, “A Doce Vida” e “Oito e Meio”) e Trintignant (“E Deus Criou a Mulher”, “Minha Noite com Ela”, “Aquele que Sabe Viver”, “O Conformista”, “A Liberdade é Vermelha” e “Amor”) estão presentes em nossa memória cinematográfica.
O filme teve desempenho modesto nas bilheterias francesas (86 mil ingressos). Mas quem, entre os jovens, público majoritário nos multiplexes contemporâneos, já ouviu falar em “Um Homem, uma Mulher” ou cantou o “Sabá-dá-bá-dá”? Quem quer saber de história de amor entre dois octogenários? E mesmo de seus filhos, já quase sexagenários? Outros tempos.
“Os Melhores Anos de uma Vida” é um dos 27 filmes selecionados por André Sturm para compor a programação do Cine Drive-in Belas Artes, implantado no estacionamento do Memorial da América Latina. A primeira sessão acontecerá na noite desta quarta-feira, 17 de junho, com exibição de “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola. E deveria prosseguir por três semanas. Só que o sucesso foi tão grande, que os ingressos para alguns dos filmes esgotaram-se em um piscar de olhos. O jeito foi prorrogar as exibições até o final de julho.
Quatro filmes brasileiros estão programados: “Partida”, de Caco Ciocler, nesta quinta-feira (18h30), “Turma da Mônica – Laços”, de Daniel Rezende, e as animações “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu, candidato brasileiro ao Oscar 2016, e “Tito e os Pássaros”, de Bitar, Steinberg-Catoto.
Completam a programação, os italianos “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, e “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, o argentino “Relatos Selvagens”, de Damián Szifron, os franceses “O Fabuloso Destino de Amelie Poulain” e “As Bicicletas de Belleville”, de Sylvan Chomet. De Stanley Kubrick, o maior número de títulos (“Lolita”, “2001”, “Laranja Mecânica”, “O Iluminado”, “Nascido para Matar”, “De Olhos Bem Fechados”). De Quentin Tarantino, “Pulp Fiction” e “Kill Bill, o Volume 1 e, depois, o 2). Haverá filmes de terror em sessões às 23 horas, alguns blockbusters (Matrix” e “Mad Max: Estrada da Fúria”) e algumas pré-estreias. O cinema seguirá todos os protocolos exigidos pelas autoridades sanitários.
Belas Artes Cine Drive-in
Data: junho e junho
Local: Memorial da América Latina (entrada pela Rua Tagipuru, na Barra Funda)
Capacidade: 100 carros
Preço: R$65 por carro (com até quatro ocupantes)
Programação: 27 filmes em diversas sessões (matinês e noturnas), detalhada no site www.cinebelasartes.com.br
Muitas sessões já estão com ingressos esgotados.