Recine celebra o cinema de arquivo
Por Maria do Rosário Caetano
A Recine (Mostra de Cinema de Arquivo), que realiza edição on-line e gratuita (dessa terça-feira, 17, até 27 de agosto), prestará homenagem ao cineasta Antônio Carlos da Fontoura, por seus 80 anos, e a três realizadoras dedicadas ao cinema documentário – Emília Silveira, Susanna Lira e Sinai Sganzerla. Elas são devotas do cinema que cultiva a memória e imagens de arquivo. Haverá, ainda, evocação ao centenário do poeta João Cabral de Mello Neto e tributo ao cineasta Sylvio Lanna.
No comando do festival está o cineasta e produtor carioca Cavi Borges, 44 anos, que abraçou o evento desde que seu criador, o também cineasta Ricardo Favilla, cansou-se de enfrentar dificuldades e entregou os pontos.
Agregador como poucos, Cavi, ex-lutador de judô e depois dono de locadora (a famosa Cavídeo), somou esforços e parcerias com a Cinemateca do MAM, o Cineclube da AIC (Academia Internacional de Cinema) e o site Vertentes do Cinema. Por acreditar no trabalho coletivo e não cultivar vaidades, Cavi tornou-se um dos mais incansáveis e prolíficos produtores de imagens do país. Somando curtas, médias e longas-metragens, filmes próprios, de parceiros e de terceiros, a Cavídeo construiu, em pouco mais de 15 anos, acervo de causar inveja a muita gente. Como diretor, seu nome aparece nos créditos de 15 longas e 50 curtas. Como produtor, são 300 títulos (67 longas, 153 curtas, cinco webséries, cinco séries de TV, 32 videoclipes, 24 videoartes e 32 videodanças).
A homenagem a Antônio Carlos da Fontoura trará três momentos luminosos ao festival: o curta “Ver Ouvir” (e um novo trabalho dele derivado – “Ver Ouvir Roberto Magalhães”) e o longa “Copacabana me Engana”. Paulistano que tornou-se o mais carioca dos cariocas, Fontoura iniciou-se no fazer artístico como dramaturgo e roteirista, passou pelo CPC-UNE e pela crítica cinematográfica. Em 1965, fez seu primeiro curta – “Heitor dos Prazeres” – e chamou atenção. O segundo – “Ver Ouvir” – causou verdadeiro frisson. Venceu o Festival de Brasília, na época comandado por Paulo Emilio Salles Gomes, tornou-se cult e, ano passado, foi eleito pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) um dos cem melhores curtas-metragens brasileiros de todos os tempos.
“Ver Ouvir” centra seu foco em três criadores (Roberto Magalhães, Antonio Dias e Rubens Gerchman, do grupo Nova Objetividade), que renovaram as artes visuais brasileiras. Um filme moderno como seus personagens, cheio de surpresas, sempre disposto ao risco. Fontoura revisita, agora, passados mais de 50 anos, a própria obra e fez um média-metragem – “Ver Ouvir Roberto Magalhães”. Este filme será exibido na noite de encerramento da Recine, dia 27 de agosto (às 19h). Magalhães, aliás, estará com Fontoura em debate on-line, após a exibição do filme, moderado pelo crítico Carlos Alberto Mattos.
Com o sucesso de “Ver Ouvir”, Fontoura resolveu arriscar-se no longa-metragem. Sua estreia se concretizou com o delicioso “Copacabana me Engana”, protagonizado por sua então mulher, a bela e talentosa Odete Lara. Em torno da grande estrela, gira time masculino formado com Carlo Mossy, Cláudio Marzo, Joel Barcellos e Paulo Gracindo. Uma crônica dos costumes da liberada Zona Sul carioca engendrada com a leveza dos filmes de amor da Nouvelle Vague. Fotografia de Affonso Beato e câmera de Jorge Bodanzky. “Copacabana me Engana” teve seu argumento festejado no Festival de Brasília, atriz ou roteiro laureados em prêmios como o Coruja de Ouro, Air France e o Governador do Estado de São Paulo. O jovem cineasta estreava com o pé direito.
Fontoura seria convidado a trabalhar na Rede Globo, em projetos como “Ciranda, Cirandinha”, “Plantão de Polícia”, “Carga Pesada”, entre outros. Na Bandeirantes, marcaria presença nos créditos de “Chapadão do Bugre” e “Capitães da Areia”. Seguiu sua carreira no cinema, dividindo-se entre curtas e longas-metragens (ver filmografia abaixo).
Um de seus sete longas alcançaria significativo sucesso de público e crítica: o thriller-pop-gay “A Rainha Diaba”, escrito por Plínio Marcos a partir da figura de Madame Satã (Fontoura jura que o filme nada tem a ver com a artista-travesti da Lapa carioca). “Gatão de Meia-Idade” e “Somos Tão Jovens”, este sobre a trajetória de Renato Russo, da Legião Urbana, fariam sucesso de público.
A Recine vai homenagear, também, três documentaristas que estão marcando presença no novo cinema brasileiro. Emília Silveira terá quatro de seus cinco longas-metragens exibidos ao longo da mostra. Os dois primeiros trazem memórias do período ditatorial: “Setenta”, sobre presos políticos brasileiros exilados no Chile, e “Galeria F”, sobre militante do PCBR (Theodomiro Romeiro dos Santos), que fugiu do cárcere, a galeria F, na Bahia. “Silêncio no Estúdio” é uma cinebiografia da apresentadora de TV, Edna Savaget. “Tente Entender o que Tento Dizer”, frase que a diretora pediu emprestado a Caio Fernando Abreu, soma registros da vida cotidiana de portadores de HIV. A carioca Emília tem um filme inédito, “Callado”, sobre o autor de “Quarup” e “Reflexos do Baile”.
Susanna Lira é uma das mais prolíficas realizadoras brasileiras. Aos 45 anos, soma 17 títulos: cinco curtas-metragens (entre eles “Em Direção a Ithaka” e “Uma Visita para Elizabeth Teixeira”) e doze longas documentais (como diretora, roteirista e/ou produtora). Os mais conhecidos são “Torre das Donzelas”, sobre militantes políticas (entre elas a ex-presidente Dilma Roussef) encarceradas em São Paulo, “Mussum”, sobre o sambista e pai da “cacildis”, “Clara Estrela”, cinebiografia da cantora mineira Clara Nunes, e “Damas do Samba”, sobre a presença de mulheres num mundo que parece por demais masculino, o das escolas de samba. Os três últimos serão exibidos on-line pela Recine.
Sinai Sganzerla, filha de cineastas (Helena Ignez e Rogério Sganzerla) é a convidada (e homenageada) da sessão inaugural da Recine (nesta terça-feira). Seu documentário “A Mulher de Luz Própria” acompanha, com liberdade e poesia, a trajetória da atriz baiana, que desde o final dos anos 1950 (“O Pátio”, de Glauber Rocha), até os dias de hoje aparece nas telas como intérprete ou diretora. E que tem em sua trajetória títulos da grandeza de “O Padre e a Moça” (Joaquim Pedro de Andrade, 1965) e “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1968). Outro filme de Sinai – “O Desmonte do Monte” – será exibido pela Recine e é recomendado aos que se preocupam com a destruição de paisagens urbanas (no caso o Morro do Castelo, no Rio do início do século XX) por interesses da especulação imobiliária.
Além de Antônio Carlos da Fontoura e das documentaristas, a Recine vai homenagear o mineiro Sylvio Lanna, exibindo alguns de seus curtas (destaque para “Superstição no Futebol”, de 1968). Como Cavi e sua trupe são loucos por esporte – e por futebol – outros filmes estão entre os 40 títulos programados pela Mostra de Cinema de Arquivo (20 longas e 20 curtas). De todos, um título se apresenta imperdível, “Democracia em Preto e Branco”, de Pedro Asbeg. Futebol e política somados com talento, galardia e muito rock’n roll. Do mesmo realizador, “Geraldinos”, este em parceria com Renato Martins. Será exibido, também, “Barba, Cabelo & Bigode”, de Lúcio Branco, sobre os craques Afonsinho, Caju e Nei Conceição.
Outro tema que apaixona a turma do cinema feito de imagens de arquivo é a cinefilia. E, por extensão, seu templo, a sala de exibição. Daí a presença de curtas-metragens como os cariocas “Cine Paissandu – História de Uma Geração” (Christian Jafas) e “Cine Vaz Lobo” (Luiz Claudio Lima), o paraense “Memórias do Cine Argus” (Edivaldo Moura), o baiano “Cine Rio Branco” (Eudaldo Monção Jr) e o pernambucano “Uma Balada para Rock Lane” (Djalma Galindo). Para completar o programa, “MAM – 60 Anos em 10 Minutos”, de Cavi Borges e Christian Caselli.
A turma da Recine é politizada. Por isto, convocou filmes que refletem sobre a história social e política brasileira. Destaque para dois dos documentários de Emília Silveira (“Setenta” e “Galeria F”) e para aquele que é, sem dúvida, o mais corajoso e ousado dos filmes feitos sobre a ditadura militar brasileira: “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski (2009, 92 minutos).
O crítico, cineasta e professor da USP Jean-Claude Bernardet defende tese instigante e provocadora: o cinema brasileiro contorna três desafios temáticos – o papel das Forças Armadas, a propriedade e ação dos meios de comunicação (concentrados nas mãos de poucas famílias) e o poder do sistema financeiro. Litewski, funcionário da ONU, fez questão de, ao invés de contornar estes temas, enfrentá-los. Ao dedicar seu documentário ao papel desempenhado pelo dinamarquês Henning Albert Boilesen (1916-1971), presidente do grupo Ultra (Ultragaz), o cineasta foi além de tudo o que víramos até então. Boilesen, junto ao empresariado brasileiro, apoiou a criação da Oban (Operação Bandeirantes) e sua máquina de repressão e tortura. Litewski consumiu 16 anos na feitura desse filme obrigatório.
Recine 2020 (Mostra de Cinema de Arquivo)
Exibição gratuita e on-line de 20 longas e 20 curtas
Data: 17 a 27 de agosto (vários horários)
Homenagens a Antônio Carlos da Fontoura (exibição de “Copacabana me Engana”, “Ver Ouvir” e “Ver Ouvir Roberto Magalhães), Emília Silveira, Susanna Lira e Sinai Sganzerla, Silvio Lanna e ao centenário de João Cabral de Mello Neto (exibição do longa “Recife/Sevilha”, de Bebeto Abrantes)
Com “lives” e debates on-line
Programação completa: na página da Recine e no site Vertentes do Cinema
No site da Cinemateca do MAM será exibido durante todo o festival, o longa “Cacaso na Corda Bamba”, de José Joaquim Salles e PH Souza. O site da AIC (Academia Internacional de Cinema) exibirá em sua Sessão Cineclube o filme “Cidade de Deus 10 Anos Depois”, de Cavi Borges e Luciano Vidigal.
FILMOGRAFIA
Antônio Carlos da Fontoura
Longas-Metragens:
1969 – “Copacabana Me Engana”
1975 – “A Rainha Diaba”
1976 – “Cordão de Ouro”
1984 – “Espelho de Carne”
1998 – “Uma Aventura do Zico”
2005 – “No Meio da Rua”
2006 – “Gatão de Meia Idade”
2013 – “Somos Tão Jovens”
Curtas e Médias-Metragens:
1965 – “Heitor dos Prazeres”
1967 – “Ver Ouvir”
1969 – “Meu Nome é Gal”
1969 – “O Último Homem” (codireção Antônio Calmon)
1969 – “Mutantes” (codireção Antônio Calmon)
1969 – “Ouro Preto & Scliar”
1972 – “Wanda Pimentel”
1973 – “Arquitetura de Morar”
1973 – “Chorinhos e Chorões”
1982 – “Brasília Segundo Cavalcanti”
2006 – “O Rapto das Cebolinhas”
2014 – “Faca Sem Ponta, Galinha Sem Pé”
2015 – “Casa Roberto Marinho”
2016 – “No Ar”
2020 – “Ver Ouvir Roberto Magalhães”