Festival de Brasília busca “A Luz de Mário Carneiro”
Por Maria do Rosário Caetano
Conseguirá Silvio Tendler repetir, nesse ano de pandemia e festivais virtuais espremidos nas semanas finais de dezembro, edição tão importante e reveladora quanto a realizada pelo Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 1996, aquela que reuniu (festejou e premiou) “Baile Perfumado”, “Um Céu de Estrelas” e “Como Nascem os Anjos”?
A se julgar pelo que foi mostrado, até agora, na competição de longas-metragens, a meta do diretor artístico da quinquagésima-terceira edição do festival candango (e presidente da edição de 1996), dificilmente se concretizará. Já foram exibidos uma ficção e dois documentários.
“Longe do Paraíso”, cujo roteiro o cineasta baiano Orlando Senna construiu a partir de evocações bíblicas, não está à altura do filme que o projetou, “Iracema – Uma Transa Amazônica”, parceria com Jorge Bodanzki (1975). Nem das inquietações de um diretor octogenário, seu contemporâneo-e-conterrâneo Geraldo Sarno. Em “Sertânia” (2020), Sarno construiu experimento de rara beleza, fotografia em arrepiante preto-e-branco e correu todos os riscos.
Senna preferiu formato mais narrativo e tradicional. Uma história de Caim (Kim, o ator Ícaro Bittencourt) e Abel (aqui, na figura de uma mulher, Bel, a cantriz Emmanuelle Araújo), ambientada nas entranhas da Bahia interiorana e marcada pela violência de pistoleiros. Para o papel de Kim, espinha dorsal do filme, Senna necessitava de ator com recursos infinitamente maiores que os de Ícaro. E muito ganharia se dialogasse (como ele e Bodanzky fizeram em “Iracema”) com o cinema documental. O que o filme tem de melhor está nas cenas iniciais, registros da luta dos Sem-Terra. E, de forma assessória, em personagem que Kim procura “terceirizar” por míseros R$4 mil. Ou seja, alguém que faça, por ele, o serviço sujo. O pistoleiro vestido sempre de preto e portando vistosos óculos escuros, deveria executar, como Caim, a irmã Bel.
O primeiro documentário dessa seleção descompensada (uma ficção e cinco docs, prática jamais vista na história desse festival cinquentenário), o carioca-pernambucano “Espero que esta te Encontre e que Estejas Bem”, de Natara Ney, é bem fotografado, bem montado e cumpre o que promete: narrar uma história romântica. Sua busca pelas memórias afetivas de casal formado nos anos 1950, ela, mato-grossense, ele, cearense-carioca, é banhada em trilha sonora das mais românticas e evocativas. Com depoimentos muito fragmentados, o filme constrói-se como um melodrama documental. Com direito a final feliz.
“A Luz de Mário Carneiro”, sétimo longa-metragem da carioca Betse de Paula, começa bem, graças à verve do grande diretor de fotografia (e cineasta bissexto) ao revisitar sua própria trajetória. A entrevista que estrutura o filme foi registrada para “Retratos Brasileiros”, programa que marcou época no Canal Brasil.
Mário Carneiro (Paris/1930- Rio de Janeiro/2007) foi, afinal, um dos grandes nomes do Cinema Novo, parceiro de toda a vida de Paulo Cézar Saraceni (1932-2012). Trabalhou, ainda, em importantes filmes do “inimigo” e, depois, amigo, Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). Teve a oportunidade de fotografar sucesso dos mais estimados do cinema brasileiro (“Todas as Mulheres do Mundo”, 1966, de Domingos Oliveira). E estava com Glauber Rocha em momento-chave: na filmagem performática de “Di”, documentário sobre o velório de Di Cavalcanti, criminosamente interditado na Justiça por herdeira do pintor.
O filme de Betse de Paula, que começa bem e acerta em ato de desobediência civil (mostrar significativos trechos de “Di”), se perde em seu desenvolvimento e, principalmente, na parte final, quando vira apressado amontoado de curtos (e aleatórios) trechos de filmes fotografados por Mário. Produções inexpressivas (como “Batalha de Guararapes”) ocupam a tela em detrimento de obras mais significativas e importantes (caso do belo “O Viajante”, 1999, de Saraceni).
Os primeiros momentos de “A Luz de Mário Carneiro” nos entusiasma pelo saboroso “narrar” do fotógrafo-pintor, sempre em tom autodepreciativo. Ele se define como um rapaz desajeitado, gago, deslocado (apesar do berço parisiense, filho que era de importante diplomata, de ter estudado em escolas europeias e, no Brasil, pudesse passear à vontade, curtir temporadas em Ouro Preto, estudar Arquitetura, trabalhar com Oscar Niemeyer).
“Naquele tempo” – lembrará –, “por causa de Lúcio Costa e Niemeyer, nossa Arquitetura estava na linha de frente mundial”. O pai preferia ver o filho atuando nas pranchetas niemáricas. O rapaz não gostou do ofício. Abandonou-o pela pintura. E, logo depois, pelo cinema, que seria a razão principal de sua vida.
Um episódio marcará, segundo confissão do Mário já setentão, a vida do jovem “desajeitado e gago”. Curtindo temporada em Ouro Preto, na companhia da namorada Sarah, foi passado para traz pelo belo e igualmente bem-nascido Joaquim Pedro de Andrade, filho de Rodrigo de Mello Franco, pilar do Patrimônio Histórico no Brasil.
Ao procurar pela namorada, entre os casarios coloniais de Ouro Preto, a encontrou aos beijos com Joaquim Pedro. Sarah se tornaria esposa do “traidor” Joaquim e mãe de dois de seus filhos (a cineasta Alice de Andrade e de Antônio). E Mário romperia, pelo menos temporariamente, com o amigo (e futuro parceiro em obras da grandeza de “Couro de Gato”, “Garrincha, Alegria do Povo” e no magnífico “O Padre e a Moça”).
O trauma – segundo relato sempre depreciativo do fotógrafo-pintor – “o faria gastar todo o dinheiro” que ganharia com trabalhos no cinema (e com seus quadros) em até “cinco ou seis sessões de análise” por semana. “Para perder a gagueira e falar o tanto que falo hoje” – confessa –, “gastei o dinheiro que daria para comprar um belo e grande apartamento”. Pelo menos – ele atenua –, as horas consumidas com o psicanalista muito serviram à criação do roteiro de “Gordos e Magros” (1976), sua estreia como diretor de longa-metragem.
O documentário de Betse de Paula reconhece a importância de “Arraial do Cabo” (Saraceni e Carneiro, na direção, 1959) que, ao lado de “Aruanda” (Linduarte Noronha, 1960), seria fonte seminal do Cinema Novo, reconhecida e enaltecida em famoso artigo de Glauber Rocha (Suplemento Dominical, do Jornal do Brasil). Mário, além de codiretor, fotografou e montou o filme sobre pescadores artesanais do litoral fluminense, que veem sua atividade abalada após instalação de poderosa indústria, a Álcalis.
O diretor de fotografia e pintor percorre, às vezes com olhar muito ligeiro, seus principais filmes – os cinemanovistas “Porto das Caixas” (Saraceni, 1962), “Garrincha, Alegria do Povo” e “O Padre e a Moça” (estes do já amigo, pois o perdoara pela traição amorosa, Joaquim Pedro de Andrade). Muitas vezes, detém-se mais em aspectos superficiais ou anedóticos. Até sua parceria com Joel Pizzini (em “500 Almas” e, principalmente, no belíssimo “O Enigma de um Dia”, no qual pode somar suas duas maiores paixões – o cinema e a pintura) se mostra incapaz de gerar as reflexões esperadas.
A se julgar pelo que “A Luz de Mário Carneiro” apresenta, ele não pensava seu ofício como diretor de fotografia. Parece que as coisas aconteciam sem planejamento, sem reflexão, sem estudo.
Um tema secundário, mas importante, na formação de Mário Carneiro, foi – segundo o filme – seu contato com a “escola argentina”. Ele lembra que “aquele fotógrafo de estúdio do filme do Ruy Guerra” (tudo leva a crer que seja Tony Rabatoni, de “Os Cafajestes”, 1962) dizia que os diretores de fotografia da jovem geração cinemanovista não sabiam nada de iluminação, de enquadramento.
Pelo portenho Ricardo Aronovich, diretor de fotografia de “Os Fuzis” e “São Paulo S.A” (que fotografou um dos curtas brasilienses de Betse de Paula: “Feliz Aniversário, Urbana”), Mário demonstra simpatia, mas nada no filme esclarece a relação do brasileiro com a “escola argentina”. Tudo fica ali, solto, mera menção.
Ao entrevistar o diretor de fotografia de “O Mágico e o Delegado” (Fernando Coni Campos, 1983), para “Retratos Brasileiros”, Betse sabia que teria menos de 30 minutos para compor o perfil de Mário. Como ele morreu em 2007, a cineasta não poderia, para “A Luz de Mário Carneiro”, aprofundar pontos essenciais a uma (nova) narrativa, agora em longa-metragem.
O que no começo do documentário parecia estimulante vai perdendo, cada vez mais, força e substância. Fica de Mário, em essência, a imagem do contador de histórias, que se autodepreciava. Característica, registremos, que pode render muito, pois serve de antídoto a contumazes contadores de vantagem. Mário Carneiro era, convenhamos, muito mais que um espirituoso evocador de memórias.
Lembro aqui, história que ilustra, de forma exemplar, o fotógrafo-pintor que se autodepreciava, mas não media palavras para enaltecer o cinema brasileiro e seus artífices (mesmo sendo, um deles, aquele que lhe roubara a namorada e amplificara sua gagueira).
Em 1997, o montador (de “Terra em Transe”, “Macunaíma” e “Cabra Marcado para Morrer”) e cineasta (“Lição de Amor”, “Ato de Violência”) Eduardo Escorel escreveu dura resenha crítica do livro “Joaquim Pedro de Andrade – a Revolução Intimista”, de Ivana Bentes. O texto, publicado no suplemento “Jornal de Resenhas”, encartado na Folha de São Paulo (edições reunidas, depois, em três volumes pela Discurso Editorial) tinha uma declaração de Mário Carneiro como alvo.
Ivana Bentes, que escrevera o livro para a coleção Perfis do Rio (Ed. Relume-Dumará), tomara o diretor de fotografia dos primeiros filmes de Joaquim Pedro como uma de suas principais fontes. E Mário, em tom celebratório, garantia (para Escorel, o fazia em tom fantasioso) ter supreendido Werner Herzog “de joelhos, (…) fazendo um discurso em homenagem a Joaquim”.
Que Mário era praticante dos gracejos e metáforas, ninguém há de negar. Escorel, em sentido oposto, é um profissional do cinema, pesquisador e professor universitário (na poderosa FGV) dos mais rigorosos. Daqueles que temem evocações baseadas unicamente em (muitas vezes falhas ou vacilantes) memórias.
A resenha de Escorel ao livro de Ivana me perseguiu por muitos anos (guardei a página do jornal em que fora impressa e adquiri os três volumes do “Jornal de Resenhas”, organizados por Milton Meira do Nascimento). E mais: esperei contar com a sorte de, um dia, poder tirar a teima com o personagem que teria “ajoelhado” aos pés de Joaquim Pedro, o diretor de “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, “FitzCarraldo” e dezenas de documentários contemporâneos.
Em maio de 2010, a revista Cult e o Sesc organizaram, em São Paulo, a terceira edição do Seminário Internacional de Jornalismo Cultural. Um dos palestrantes era Werner Herzog. Combinei com o crítico (e meu companheiro) Luiz Zanin Oricchio, mediador do encontro com o cineasta germânico, que não se assustasse com a quantidade de perguntas que eu encaminharia, por escrito, à mesa. Se o tempo fosse curto (e eu perguntava – além da “performance de joelhos” – sobre as relações de Herzog com Glauber Rocha, Ruy Guerra, Grande Otelo, José Lewgoy e Milton Nascimento), que se detivesse na parte referente a Joaquim Pedro, evocada por Mário Carneiro.
Herzog, diretor de “Meu Inimigo Íntimo”, sobre suas conturbadas relações com o ator Klaus Kinski, respondeu a todas as minhas questões. Destaco aqui a resposta referente a Joaquim Pedro (está impressa no semanário “Brasil de Fato”, número 430, e foi republicada em número zero da revista “Samuel”). Creio que Herzog confirma, com seu entusiasmo, a metáfora (ou exagero retórico) de Mário Carneiro:
Brasil de Fato – É verdade que você deu a “O Enigma de Kaspar Hauser” (1972) o subtítulo de “Cada um por Si e Deus Contra Todos” por causa do filme “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade?
Werner Herzog – Sim. Eu escrevi o roteiro do filme em quatro ou cinco dias e não havia um título. Cansado de tanto escrever, resolvi sair para tomar uma cerveja e ver um filme. Acabei vendo “Macunaíma”, do Joaquim Pedro. Fiquei louco pelo Grande Otelo e mais louco ainda por uma frase que ouvi num certo ponto do filme: “Cada um por Si e Deus Contra Todos”. Congelei na cadeira. Isto que acabei de ouvir é tão lindo que não consigo acreditar. Aí está o título do meu filme. Só que, depois, trocando ideias com várias pessoas, ninguém guardava a frase. Quando eu pedia para que a repetissem, diziam “Cada um por Deus, Todos pelo Homem”. Ou “Cada Homem por Deus”. Nunca acertavam. Então, acabei optando por “O Enigma de Kaspar Hauser – Cada um por si e Deus Contra Todos”. Mas, tão importante quanto o subtítulo foi a descoberta de Grande Otelo. Que ator maravilhoso. Nove anos depois, eu estava com ele na Amazônia, filmando “FitzCarraldo”. Tomei estas duas riquezas de “Macunaíma”. Não tenho vergonha de assumir, como um pirata, esta troca.