É Tudo Verdade exibe “A Última Floresta” em noite de prêmios sem favoritos
Por Maria do Rosário Caetano
A noite de premiação do 26º Festival É Tudo Verdade acontece nesse domingo, on-line. Primeiro, será exibido o documentário “A Última Floresta”, de Luiz Bolognesi, narrativa de grande beleza plástica e imensa potência política. Depois, serão entregues os prêmios aos melhores das competições brasileiras e estrangeiras (curtas e longas-metragens).
Difícil arriscar os nomes de favoritos. Os dois júris, o nacional e o internacional, enfrentarão o mesmo dilema: eleger filmes mais ousados, aqueles que tentam revitalizar-renovar a linguagem do documentário, ou apostar em obras de empenho político?
Os tempos conturbados que vivemos parecem apontar mais para documentários que radiografam os horrores de nossos dias. Apavorantes dias nos quais o autoritarismo e contagiosas fakenews espalham-se como praga, por todos os cantos.
Se o júri internacional (Julia Bacha, Pierre-Alexis Chevit e Ehsan Khoshbakht) tomar esse caminho – o do corpo-a-corpo com a realidade –, as chances do dinamarquês “Presidente”, de Camilla Nielsson, se avolumam. Afinal, a diretora consegue traçar um dos mais impressionantes retratos de um país africano (o Zimbábue), que derrubou um ditador, Mugabe, mas viu os militares, que o depuseram, tomar gosto pelo poder e usar de violência e mil artimanhas para serem “eleitos democraticamente”.
Na sequência mais impressionante do filme, a jovem oposição, depois de questionável derrota, marca coletiva de imprensa para mostrar dados da fraude. Seus integrantes (todos negros) e a imprensa (muitos louros e europeus) são dispersados, com brutalidade, pelas forças militares. Aí, do meio do arbítrio, surge o ministro dos fardados, vencedores das eleições, dizendo que aquilo “é um equívoco”, que a coletiva está autorizada a acontecer etc., etc.
Outro filme impressionante é “Mil Cortes”, de Ramona S. Diaz, representante dos EUA. Se a coragem da dinamarquesa Camilla Nielsson já nos causara a mais funda impressão (por seu mergulho nas estranhas eleições zimbabuenses), o que vemos no filme de Ramona não fica atrás. Diretora e, principalmente, sua protagonista, Maria Ressa, jornalista das mais combativas, são nomes femininos que devemos acompanhar com atenção redobrada.
A cinquentona Ressa nasceu nas Filipinas, país do sudeste asiático, que vive sob o governo extremista do “ditador eleito” Rodrigo Duterte. Ela foi educada nos EUA, mas resolveu regressar a seu país para acompanhar o que está acontecendo (com seu combativo site Rappler). O quadro é desesperador: a erosão mundial da democracia, turbinada pelas mídias sociais e por campanhas de desinformação, ganha em solo filipino um agravante. “Macho” cafajeste, o presidente Duterte, que “adora bacalhau” no café da manhã, pois “tem cheiro de mulher”, gosta também de fazer justiça com as próprias mãos (ou de prepostos, como o militar-chefe-de-polícia, eleito senador). Orgulha-se de matar traficantes nas noites de Manilla, a capital, e em outras cidades. As páginas policiais estão repletas de cadáveres, jovens e pequenos traficantes (já que os grandes seguem em seus bunkers).
Outro título forte é “Gorbachev.Céu” (ou Paraíso), de Vitaly Mansky, sobre o governante que promoveu a derrocada do império soviético. Uma aula de política e de cinema. Um realizador antenadíssimo que, sem perder a compostura, revela todas as contradições de seu “personagem”.
Mikahail Gorbachev quer ficar bem com os russos, que o humilharam com menos de 1% dos votos, quando candidatou-se (depois da débacle da URSS) à presidência, e com os governantes das Repúblicas desmembradas, que bancam os altos custos da imponente mansão onde vive cercado de empregados.
Outro notável candidato ao prêmio internacional é “MLK/FBI”, de Sam Pollard, sobre a perseguição que o FBI empreendeu contra o pastor Martin Luther King. Filme complexo, em que o mártir da luta pelos direitos civis dos afro-americanos é visto com muitas nuances. E material de arquivo de arrepiar. Depois de um filme dessa grandeza visual, nos sentimos pobres detentores de precários materiais audiovisuais.
Se o júri internacional não mergulhar na tragédia do mundo contemporâneo, poderá optar por duas pequenas joias: o português “Paraíso”, de Sérgio Tréfaut, ou o argentino “Vicenta”, de Dario Doria. Este, uma animação documental (com bonecos de massinha), justifica – com talento, poesia e síntese – a luta de uma mulher para que sua filha, portadora de deficiência cognitivo-mental, possa realizar um aborto.
Já “Paraíso” é mergulho encantador na alma musical do povo brasileiro, em especial de idosos cariocas, frequentadores dos jardins do Palácio do Catete (hoje Museu da República) até que o coronavírus chegasse para dispersá-los (ou matá-los). Um filme que supera (e bem) “As Canções”, do mestre Eduardo Coutinho.
A competição brasileira não conta com filmes empenhados e corajosos como “Presidente” e “Mil Cortes”. Mas dispõe de dois títulos políticos que têm muito a dizer sobre os tempos autoritários que vivemos. Caso de “Alvorada”, de Anna Muylaert e Lô Politi, e “Os Arrependidos”, de Ricardo Calil e Armando Antenore. Se a opção do júri (os cineastas Sandra Kogut e Daniel Solá, e o professor da USP Eduardo Morettin) for por filmes políticos, um desses dois deve ser o escolhido.
Se a opção for por documentários mais inovadores, os candidatos são “Edna”, de Eryk Rocha (que já venceu o ETV com “A Rocha que Voa) e “Zimba”, de Joel Pizzini (vencedor com “Mr. Sganzerla”). Eryk aposta no apuro formal para compor retrato lacunar de brasileira que vive numa beira de estrada amazônica, registrando memórias em um caderno. Ela tem um segredo. O filme é mais bonito (imagens sublimes do próprio Eryk e de Jorge Chechile ), que contundente.
“Zimba” sequencia o cinema de invenção praticado por Pizzini, um cineasta que não faz filmes “sobre” seus personagens, mas “com” eles. Ao retratar o ator-diretor polaco-brasileiro Zbigniew Ziembinski (1908-1978), força fertilizadora de nosso teatro com revolucionária montagem de “Vestido de Noiva”, o cineasta mato-grossense nos impregna com poesia e ousadia. E nos faz lembrar o quão criativos e ousados eram os personagens que Zimba interpretou em telenovelas adultas (as das 22 horas, em especial de Bráulio Pedroso), na Rede Globo.
Outro perfil – de um homem (Zé Celso Martinez Correia) e de um sonho-praxis cênico-sexagenário (o Teatro Oficina) – resultou em filme poderoso: “A Máquina do Desejo”. A dupla Joaquim Castro e Lucas Weglinski conseguiu somar inquietação, paixão e história cultural banhada em transgressão e afetos. Pode levar o prêmio principal de melhor documentário brasileiro.
As chances dos dois outros concorrentes – “Dois Tempos”, um road movie documental-musical, e “Paulo César Pinheiro – Letra e Alma”, cinebiografia do talentoso e falante compositor carioca – são diminutas. Os diretores Pablo Francischeli, do primeiro, e Cleisson Vidal e Andrea Prates, do segundo, desempenham a contento suas missões, mas seus filmes poderiam ganhar em elaboração e complexidade.
A dupla que dirigiu “Letra e Alma” bem que poderia ter cortado, na montagem, os excessos retóricos de Paulo César Pinheiro. Que ele foi um talento precoce, todos sabemos e reconhecemos. Escreveu os versos de “Viagem” (linda melodia do primo João de Aquino) aos 14 anos. Ainda adolescente, foi parceiro do genial Baden Powell. Agora garantir que aos 15 anos já tinha decifrado toda a obra de João Guimarães Rosa, aí já é demais.
Sobre “A Última Floresta”, filme que encerra a vigésima-sexta edição do Festival comandado por Amir Labaki, há que se registrar: trata-se de documentário híbrido, inventivo e antenado com questão crucial de nosso tempo – a fúria dos garimpeiros-grileiros sobre terras e águas de um povo, os Yanomami amazônicos.
Depois do revelador “Ex-Pajé”, o roteirista de todos os filmes de Laís Bodanzky (de “Bicho de Sete Cabeças” a “Como nossos Pais”) dá sequência, em grande forma, à sua carreira como diretor, com mais esse mergulho nas entranhas de nossa mágica e ameaçada “última floresta”. Bolognesi prova sua notável capacidade de somar poesia e intervenção em seu tempo histórico. Foi assim na animação “Uma História de Som e Fúria”, premiada no Festival de Annecy”. É assim nos dois títulos indígenas, exibidos ambos no Festival de Berlim.
Uma recomendação: além de assistir ao poderoso filme de Bolognesi, há que se arrumar tempo para ler o capítulo “Bolsonaro e os Índios”, de Manuel Domingues Neto e L.G. Guerreiro Moreira, uma das peças de resistência do livro “Os Militares e a Crise Brasileira” (Alameda Editorial). E leiamos, todos e sempre, os escritos de Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro e, claro, os de Davi Kopenawa, alma (e personagem) de “A Última Floresta” e de Ailton Krenak.
A Última Floresta
Brasil, 74 min, 2021
Direção: Luiz Bolognesi
Roteiro: Davi Kopenawa e Luiz Bolognesi
Fotografia: Pedro J. Márquez
Produção: Gullane Filmes e Buriti
Idioma: Yanomami
Em tribo isolada na Amazônia, o xamã Kopenawa tenta manter vivos os espíritos da floresta e as tradições. Isto, enquanto garimpeiros trazem morte e doenças para a comunidade.
FILMOGRAFIA
Luiz Bolognesi (São Paulo, SP – 14/01/1966)
Como diretor e roteirista:
2013 – “Uma História de Amor e Fúria” (animação)
2018 – “Ex-Pajé”, documentário
2021 – “A Última Floresta”, documentário
Como roteirista:
2000 – “Bicho de Sete Cabeças” (Laís Bodanzky, Brasil)
2007 – “Chega de Saudade” (Bodanzky, Brasil)
2008 – “Terra Vermelha” (Marco Becchis, Itália)
2010 – “As Melhores Coisas do Mundo” (Bodanzky, Brasil)
2013 – “Amazônia” (Thierry Ragobert, França)
2017 – “Como nossos Pais” (Bodanzky, Brasil)
2017 – “Bingo, o Rei das Manhãs” (Daniel Rezende, Brasil)
PRÊMIOS DO FESTIVAL
Os prêmios dos Júris Oficiais do É Tudo Verdade são reconhecidos pela Academia de Artes e Ciências Cinematográfica de Los Angeles, que os torna os elegíveis nas categorias de Documentário (longa e curta-metragem) na disputa pelo Oscar (sem necessidade do período padrão de projeção, desde que o filme atenda ao regulamento da instituição).
. Melhor Documentário da Competição Brasileira: Longas ou Médias-Metragens – R$ 20.000 e Troféu É Tudo Verdade
. Melhor Documentário da Competição Internacional: Longas ou Médias-Metragens – R$ 12.000 e Troféu
. Melhor Documentário da Competição Brasileira: Curtas-Metragens – R$ 6.000 e Troféu
. Melhor Documentário da Competição Internacional: Curtas-Metragens – R$ 6.000 e Troféu
. Prêmio Aquisição Canal Brasil (curta-metragem)