Glauber mentiu ao dizer que não conhecia “Limite”, de Mário Peixoto?
Por Maria do Rosário Caetano
“Glauber Rocha assistiu, em 1958, a uma sessão de ‘Limite’, de Mário Peixoto, e mentiu em seu livro ‘Revisão Crítica do Cinema Brasileiro’”. Essa afirmação, feita por Hernani Heffner, professor da Universidade Federal Fluminense e gerente da Cinemateca do MAM, feita durante masterclass de Denilson Lopes (no lançamento do livro “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite”), caiu como uma bomba nos meios cinéfilos. Tanto entre os que têm Mário Peixoto (1908-1992), quanto Glauber Rocha (1939-1981) como razão de culto ou estudo.
E por quê? Porque, se confirmada, tal informação altera o rumo das pesquisas sobre dois dos nomes mais estelares do cinema brasileiro. Afinal, em 1963, Glauber Rocha publicou, pela Editora Civilização Brasileira, o livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, uma espécie de bíblia cinemanovista, com a qual ele, “um profeta”, na definição de Paulo Emílio Salles Gomes, dava a Humberto Mauro (1897-1983) o posto de fonte fertilizadora do cinema brasileiro.
O que dizia, em seu livro-bíblia, Glauber Rocha sobre o contemporâneo do mineiro Mauro, o fluminense Mário Peixoto e seu único filme, “Limite” (1931)? Ou “Limito” – sim com “o” –, pois até aqueles anos iniciais da década de 1960, o longa-metragem peixotiano nunca fora lançado comercialmente e só era conhecido em restritos círculos intelectuais e artísticos. Era, sim, um filme-mito e, o mais grave, corria o risco de desaparecer, pois sua matriz degradava-se a cada novo dia.
A masterclass proferida pelo pesquisador e professor Denilson Lopes, da UFRJ, terminou, pois, com a colocação-bomba de Hernani Heffner, anfitrião de ciclo promovido pela Cinemateca do MAM para festejar os 90 anos da primeira sessão pública de “Limite” (em 17 de maio de 1931). O tema, porém, não foi detalhado no espaço digital.
Antes de chegarmos ao detalhamento das fontes da informação-bomba de Heffner, é necessário lembrar que “Limite” foi salvo da ação do tempo por esforços comandados por dois de seus admiradores: Plínio Sussekind Rocha (1911- 1972) e Saulo Pereira de Mello (1933-2020). Este último, um abnegado da causa “Limite”, foi também o responsável pela organização do Arquivo Mário Peixoto (guardado na Videofilmes dos irmãos Moreira Salles).
A primeira restauração de “Limite” foi feita na década de 1970, com apoio da Funarte. Em 1978, o filme teve sessões públicas, uma delas vista por Glauber Rocha que, a pedido da Folha de S. Paulo, descreveu suas impressões sobre aquele que seria seu “primeiro contato” com o filme (texto publicado em 03/06/1978, na Ilustrada).
Em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” – o livro ganhou bela reedição da Cosac & Naif, em 2003, com excelente e obrigatório prefácio de Ismail Xavier – Glauber confessa: “Estive com Mário Peixoto duas vezes, apresentado por Brutus (Pedreira)”. (Mário) “é um homem calado, um tanto tímido, mas simpático. Falamos superficialmente sobre cinema”. Para, depois, categórico, afirmar: “O fato é que, lendo e ouvindo tudo sobre o filme, nunca vi ‘Limite’ nem sei se isso será possível algum dia”.
Antes de fazer tal afirmação, Glauber contara que Georges Sadoul, o pesquisador francês, estivera no Brasil, em 1960, para conhecer filmes brasileiros. Conseguiu assistir a 46 produções brasileiras. Entre elas não estava “Limite”. Desse filme não viu nem “um fotograma”.
O cineasta baiano afirma, ainda, que o ator Brutus Pedreira, com quem convivera “por três anos, na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, então dirigida por Martim Gonçalves”, sabia tudo de “Limite” e era o responsável, como grande conhecedor de música, pela compilação da trilha sonora do filme do amigo Peixoto.
Glauber registra em sua “Revisão”: “À medida que eu o interrogava, em momentos oportunos, Brutus revelava todos os detalhes da produção: o tempo que Edgard Brasil levava para iluminar um galho de árvore e o rigor com que Mário Peixoto chegava e dizia que aquela folhinha estava ‘um pouco assim’ e a paciência com que (Edgard) Brasil desmanchava tudo para fazer de novo”.
Em sua masterclass, Denilson Lopes lembrou a filiação de Mário Peixoto, também escritor (poeta e ficcionista), ao grupo “espiritualista” (católico e de direita, com certa proximidade do movimento Integralista, de Plínio Salgado), no qual o nome mais influente era o de Octávio de Faria (1808-1980). O pesquisador lembrou, também, a ojeriza de Mário Peixoto a Glauber Rocha e Paulo Emilio Salles Gomes (1906-1977), politicamente ligados à esquerda. Contou, inclusive, que Paulo Emilio solicitou encontro a Mário Peixoto, que não quis recebê-lo.
Em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” – depois de reafirmar, outras vezes, que não vira “Limite” – o diretor de “Barravento” (1961) avalia: “Mário Peixoto está para o cinema como Lúcio Cardoso e Octávio de Faria para nossa literatura: é o que se chama um intimista, um místico talvez, um homem voltado para seu mundo interior, inteiramente afastado da realidade e da história. Sobretudo um esteta hermenêutico; um resto de aristocracia marcada pelo bom gosto”.
Sobre o filme “Limite” – como “não o vira” – Glauber transcreve longo texto de Octávio de Faria e fragmento de artigo que Sergei Eisenstein, diretor do “Encouraçado Potemkin”, teria escrito, depois de assisti-lo (supostamente na Inglaterra). Mais tarde, Saulo Pereira de Mello escreveria em seu livro “Limite” (Editora Rocco, 1996), que o verdadeiro autor do texto eisensteiniano era o próprio Mário Peixoto.
Sempre se respaldando em outras fontes (Octávio de Faria, Eisenstein etc.), Glauber avança: “No processo dialético da praxis revolucionária, ‘Limite’, e a evidente posição de classe que representa, é uma contradição historicamente superada; na sua mise-en-scene, como a descreve Octávio de Faria, está a moral do autor. Eu tinha dito, e não fui eu quem descobriu, que a moral do cinema novo brasileiro é fatalmente revolucionária”. E mais: “’Limite’ é a substituição de uma verdade objetiva por uma vivência interior, uma vivência formalizada, socialmente mentirosa, sua moral, é um limite”.
No texto escrito para a Ilustrada, em 1978, portanto vinte exatos anos depois da sessão da Faculdade Nacional de Filosofia, Glauber irá reafirmar o “decadentismo” do filme de Mário Peixoto. O texto glauberiano, cheio de “y” e “z” – pois adotara, naqueles anos exaltados que geraram “A Idade da Terra” (1980), nova ortografia – definiria “Limite” como um filme “decadente e burguês”.
Hernani Heffner esclareceu, para a Revista de CINEMA, as fontes de sua afirmação (“Glauber viu ‘Limite’, em 1958”, portanto cinco anos antes de publicar “Revisão Crítica do cinema Brasileiro”): “Saulo (Pereira de Mello) me mostrou, certa vez, uma foto do Mário Peixoto com o Glauber no restaurante Albatroz, em Copacabana, e comentou que foi tirada no dia em que Glauber viu ‘Limite’ na Faculdade Nacional de Filosofia (FNF)”.
E mais: “(Paulo Cezar) Saraceni e Mário Carneiro também viram (“Limite”) na FNF. Perguntei isso a eles diretamente em uma palestra na Casa do Saber, em Laranjeiras, por volta de 1995”.
“Na mesma ocasião” – prossegue Heffner – “Mário (Carneiro) afirmou que “Porto das Caixas” (Saraceni, 1962) devia muito a ‘Limite’”. Para acrescentar: “Conheci um dos espectadores da sessão de ‘Limite’ no Cine Capitólio, em 1931, o Alcebíades Monteiro Filho, o Monteirinho, então um jovem aprendiz de cenografia teatral. Ele contou que a maior parte da plateia pareceu não ter entendido o filme, que ele mesmo não compreendeu nada, e que não houve o tal quebra-quebra”.
Hernani Heffner refere-se, ao falar do testemunho de Alcebíades Monteiro Filho, a outra controvérsia que cerca a primeira sessão de “Limite”: a de que a plateia teria se dividido entre vaias e aplausos, chegando alguns mais exaltados a reações físicas (empurrões etc).
A fonte evocada pelo professor da UFF e gerente da Cinemateca do MAM é das mais respeitadas. Saulo Pereira de Mello, além de ter lutado com todas as suas forças para salvar “Limite”, foi um pesquisador que nunca cultivou mitos. Tanto que deixou clara a verdadeira autoria do texto (sobre “Limite”) atribuído a Eisenstein.
Uma pergunta, porém, se impõe: por que, aos 24 anos, Glauber, que em março do ano seguinte (1964) faria a primeira sessão pública de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, negaria conhecer “Limite”? Esse novo enigma se impõe.
Hernani Heffner pondera: a resposta “está no texto de ‘Revisão Crítica do Cinema Brasileiro’”. Para o pesquisador, “a opção de Glauber, em 1963, era muito consciente e fazia muito sentido”.
Fica, pois – em nome de pesquisa rigorosa (e já que Mário Peixoto, Saulo Pereira de Mello, Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro estão mortos) – a necessidade de se comprovar que a foto (feita no restaurante Albatroz) comemorava, realmente, a sessão de “Limite” à qual Glauber comparecera (em 1958). E, não restando nenhuma dúvida, refletir sobre as razões que levaram o baiano a obliterar, em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, o conhecimento prévio que teria de “Limite”.
O diretor de “Cruz na Praça”, “Pátio” e “Barravento” mentiu (sobre conhecimento prévio de “Limite”) para, assim, potencializar a força de Humberto Mauro e seus filmes como matriz cinemanovista? Conhecer “Limite” enfraqueceria o legado mauriano?
Denilson Lopes, que promete ampliar as pesquisas que deram origem ao seu e-book “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite” tem mais um desafio para suas investigações acadêmicas.
O pesquidador Hernani Heffner é professor da PUC-Rio. Ele foi professor da UFF no começo dos anos 2000.
E, realmente, foi uma surpresa a todos numa masterclass tão incrível como a do prof. Denilson Lopes.