Brasil em Cannes
Por Maria do Rosário Caetano
“Medusa”, da carioca Anita Rocha da Silveira, a talentosa diretora de “Mate-me por Favor”, “O Marinheiro das Montanhas”, do cearense Karim Aïnouz, e os curtas-metragens “Céu de Agosto”, de Jasmin Tenucci, “Sideral”, de Carlos Segundo, e “Cantareira”, do paulistano Rodrigo Ribeyro, são os representantes do Brasil na septuagésima-quarta edição do Festival Internacional de Cinema de Cannes, que começa nessa terça-feira, 6 de julho, e prossegue até dia 17, na Riviera francesa.
Um pernambucano, o cineasta Kleber Mendonça Filho, premiado em 2019 com “Bacurau” – ano passado, por causa da pandemia, o festival não aconteceu –, estará no júri que outorgará a Palma de Ouro, o cobiçado prêmio da mais badalada competição do cinema mundial. A comissão julgadora será, pela primeira vez na longa história cannoise, presidida por um cineasta negro, o novaiorquino Spike Lee.
O diretor do vertiginoso “Bamboozled – A Hora do Show” emprestou, também, sua irreverente imagem ao cartaz do festival. Um astro (ator e diretor) afro-americano que, de agora em diante, terá sua imagem postada ao lado de estrelas do celulóide como Marilyn Monroe, Marcello Mastroianni, Jean-Paul Belmondo e Federico Fellini. Todos já estampados no material gráfico de edições passadas de Cannes.
O Brasil marcará presença, também, como coprodutor de três filmes: “Bergman Island”, da francesa Mia Hansen-Love, que disputará a Palma de Ouro, “Murina”, da croata Antoneta Alamatt Kusijanovic, e “O Empregado e o Patrão”, do uruguaio Manuel Nieto, ambos selecionados para a Quinzena de Realizadores.
Os dois primeiros longas têm o brasileiro Rodrigo Teixeira e sua RT Features como parceiros. No caso de “Murina”, o carioca Teixeira festeja sua terceira parceria com Martin Scorsese. Os dois uniram-se, três anos atrás, em projeto de busca e apoio financeiro a novos talentos espalhados pelo mundo. Já o filme platino agregou a seus créditos de produção duas empresas alternativas brasileiras, a gaúcha Vulcana (de “Tinta Bruta”) e a paulistana Sancho & Punta (“Os Jovens Baumann”). Registre-se que Nieto teve seus dois filmes anteriores – “La Perrera” (O Canil) e “O Lugar do Filho”, ambos muito bons – exibidos em festivais e no circuito de arte brasileiro.
As Américas Hispânica e Lusitana não conseguiram uma vaga que fosse na principal competição de Cannes, a que distribui a Palma de Ouro. Também pudera. Entre os 24 filmes selecionados (quatro deles dirigidos por mulheres) há pesos pesados como o italiano Nanni Moretti (“Tre Piani” – Três Andares), o tailandês Apichatpong Weerasethakul (“Memória”) e o francês Jacques Audiard (“Les Olympiades”), os três já premiados com a Palma dourada. O primeiro com “O Quarto do Filho”, o segundo com “Tio Boonmee, que Pode Recordar Vidas Passadas”), e o terceiro, com “Dheepan: O Refúgio”).
Outros nomes estelares estão na seleção principal: o incendiário holandês Paul Verhoeven, com “Benedetta”, já de saída candidato a filme-escândalo do festival, o talentosíssimo iraniano Ashgar Farhadi (“Um Herói”), François Ozon (“Tout s’Est Bien Passé”), Sean Penn (“Flag Day”), Bruno Dumont (“Par ce Demi-Clair Matin”) e Wes Anderson (“A Crônica Francesa”). “Annette”, de Leos Carax, integrante da outrora badalada trinca BBC (Beineux-Besson-Carax), abre a competição. À frente do elenco, a oscarizada Marion Cottilard, de “Piaf”, e Adam Driver. Os dois interpretam casal estelar, cuja vida sofre reviravolta com a chegada da primeira filha.
Completam o time que busca a condição de “palmarè” a húngara Ildikó Enyedi (“A História da minha Esposa”), as francesas Julia Ducournau (“Titane”), Catherine Corsini (“A Fratura”), o russo Kirill Serebrennikov (“Petrov’s Flu”), o marroquino Nabil Ayouch (“Casablanca Beats”), o chadiano Mahamat-Saeh Haroun (“Lingui”), o japonês Ryusuke Hamaguchi (“Drive my Car”), o norueguês Joachim Trier (“The Worst Person in the World”), o belga Joachim Lafosse (“Os Intranquilos”), o australiano Justin Kurzel (“Nitram”), o finlandês Juho Kuosmanen (“Compartment N. 6”), o israelense Nadav Lapid, detentor de um Urso de Ouro em Berlim (“Ahed’s Knee”), e o norte-americano Sean Baker (“Red Rocket”).
A ficção brasileira “Medusa”, segundo longa-metragem de Anita Rocha da Silveira, estará em mostra de prestígio: a Quinzena dos Realizadores. O filme sequencia as pesquisas da talentosa diretora carioca pelas searas do cinema de horror. Sua estreia, com “Mate-me por Favor”, fruto de delicada construção narrativa e envolvente atmosfera onírica, causou ótima impressão. E estabeleceu parceria que Anita repete agora, passados seis anos, com a produtora Vânia Catani, da Bananeira Filmes, parceira de Lucrécia Martel em “Zama”.
Sabe-se pouco sobre o filme, pois diretora e produtora querem chegar à Quinzena de Realizadores como obra 100% inédita. A se julgar pelas raras imagens do filme já disponibilizadas, tudo indica que Anita mergulhou com maior ímpeto no universo do horror.
A sinopse oficial diz que “Medusa” (o título evoca, claro, o mito grego) se passa no Brasil de nossos conturbados dias. A jovem Mariana (Mari Oliveira) cultiva imagem de mulher perfeita. Ao lado de amigas, ela tenta resistir às tentações e manter o controle sobre tudo que as cerca. Inclusive os pecadores, espalhados pela cidade. No escuro da noite, ela e seu esquadrão feminino colocam máscaras e passam a caçar (e até a espancar) mulheres que desviem do “bom comportamento”.
“O Marinheiro das Montanhas”, nono longa-metragem de Karim Aïnouz, vem sendo definido ora como um documentário, ora como um híbrido. O realizador cearense, radicado em Berlim, venceu, na última edição de Cannes (2019), a mostra Um Certo Olhar, como “A Vida Invisível”, baseado em romance de Martha Batalha. Nada mais natural que voltasse ao festival francês para mostrar seu novo trabalho. Ele o fará no segmento “Sessões Especiais”.
Depois de sua ficção em vermelho, registro da vida de Eurídice Gusmão e sua irmã Guida, que mobilizou número significativo de espectadores no Brasil (150 mil ingressos), Karim retorna ao “documentário”. As aspas se devem às liberdades narrativas que marcam suas incursões no gênero. Em especial o belo “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”, parceria com o pernambucano Marcelo Gomes. Aïnouz realizou, ainda, os documentários “THF: Aeroporto Central” e “Nardjes A.”. No campo da ficção, o cearense causou sensação com todos os seus filmes – “Madame Satã”, “O Céu de Suely”, “Praia do Futuro”, “Abismo Prateado” e “A Vida Invisível”. Nenhum passou em branco.
“O Marinheiro das Montanhas” promove mergulho nas origens do cineasta cearense, cujo nome sempre intrigou a todos que o conheciam. Por que um nordestino se chamava Karim Aïnouz?
A razão é muito simples. A bioquímica Iracema, nascida no Ceará, foi viver nos EUA e lá conheceu o engenheiro hidráulico Majid, cidadão argelino. Uniram suas vidas por cinco anos. Quando se separaram (ela regressou ao Brasil e ele à Argélia, já independente do jugo francês), Iracema estava grávida. O filho, registrado com nome árabe, nasceu na terra natal da mãe.
Em busca de suas origens, Karim foi conhecer (e documentar) a terra natal de seu pai, um vilarejo encravado nas montanhas do Magreb. Antes, registrou manifestações políticas que abalaram o país árabe-africano em “Nardjes A.”. Voltou, então, às imagens captadas na Argélia e somou-as a material guardado por Iracema, registros em diversos suportes de seus anos vividos ao lado de Majid. Esse é o filme que o brasileiro mostrará em Cannes.
O curta-metragem “Cantareira”, de Rodrigo Ribeyro, participará do Cinéfondation, segmento do festival dedicado a descobrir talentos entre jovens estudantes de cinema. O filme foi apresentado como trabalho de conclusão de curso de Rodrigo na AIC (Academia Internacional de Cinema de São Paulo). Agora, ao chegar a Cannes, ele – mesmo sem saber disso – estará em sintonia fina com um dos propósitos do festival: refletir sobre questões ligadas à mudança climática, à natureza, enfim.
A Serra da Cantareira, recanto bucólico de São Paulo, é um dos cenários do filme. Bento (Emiliano Favacho), o protagonista, vive uma temporada de trabalho na região central da maior, mais agitada e poluída metrópole da América do Sul. Frustrado, ele decide retornar à tranquila Serra da Cantareira, onde cresceu e reside o avô Sylvio (Almir Guilhermino). O rapaz e o velho terão que lidar com diferenças presentes e passadas, com a calmaria rural e a inevitável agitação urbana. Para complicar, Bento necessita encontrar outro trabalho.
Além de diretor, Rodrigo Ribeyro é montador. Em “Cantareira” ele assina também o roteiro e desenho de som. O nome de sua produtora é dos mais divertidos: Cachorro Sensível Filmes.