Sulflix e livro servem de vitrine à memória e ao presente do Cine Gautchê
Por Maria do Rosário Caetano
A Sulflix nasce como a primeira plataforma digital destinada a divulgar a produção audiovisual e artística de uma unidade da federação brasileira. No caso, o Rio Grande do Sul. No ar há menos de dois meses, a “netflix do Sul” mantém algum parentesco com a Spcine Play, mas as diferenças são evidentes.
A plataforma mantida pela Prefeitura de São Paulo divulga filmes brasileiros, portanto, de qualquer unidade da federação, e (até) internacionais. Já o projeto sulista divulga curtas, médias e longas-metragens gaúchos e, também, peças teatrais, musicais, séries e outras produções artísticas realizadas no estado de mais de 11 milhões de habitantes, situado na divisa com Argentina e Uruguai. Há espaço, também, para atrações infantis, clipes, gastronomia e cursos de formação.
Quem se dispuser a pagar módicos R$10,00 por mês, poderá assistir a filmes de Jorge Furtado (“Ilha das Flores”, “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, parceria com José Pedro Goulart, e “Houve uma Vez Dois Verões”), Otto Guerra (“Woody & Stock – Sexo, Orégano e Rock’n Roll”), Ana Luiza Azevedo (“Antes que o Mundo Acabe”), Cristiane Oliveira (“Mulher do Pai”), Liliane Sulzbach (“O Cárcere e a Rua”), Gustavo Spolidoro (“Ainda Orangotangos”, “Morro do Céu”), Hique Montanaro (“Yonlu”), Boca Migotto (“Filme sobre um Bom Fim”), Paulo Nascimento (“A Oeste do Fim do Mundo”), Gilson Vargas (“A Colmeia”), Sérgio Silva (“Anahy de las Misiones”), entre outros.
No total, são mais de 500 títulos, incluindo os longas rancheiro-pampeanos de Teixeirinha (“Coração de Luto”, inclusive), e peças famosas como “Bailei na Curva”, um cult dos palcos gaúchos, que excursionou por diversas regiões brasileiras. A se lamentar apenas a ausência do cult dos cults do cinema gaúcho – “Deu prá ti, Anos 70”, de Giba Assis Brasil e Nélson Nadotti (1981).
O próprio Giba justifica a ausência: “como realizamos o filme em Super-8, na cara e na coragem, não temos direito de uso de muitas das músicas que estão na trilha sonora”. Quem sabe um dia, em nome do cinema e da memória da juventude brasileira do período da redemocratização, todos abram mão do vil metal e possamos ver, na Sulflix, o mais engenhoso e cativante testemunho de geração situada fora do eixo Rio-São Paulo de um país chamado Brasil. Um dos mais luminosos exemplares do Cine Gautchê.
Nesse ano de 2022, quando o Festival de Gramado chega à sua edição número 50 – ao que tudo indica, o cinquentenário será comemorado na Serra Gaúcha com muita festa e presencialmente – os meios audiovisuais riograndenses serão surpreendidos pelo livro “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho”, organizado pela Accirs (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul).
A diretoria da entidade explica que a publicação, realizada em parceria com a Opinião Produtora, traz artigos de 50 críticos sobre 50 filmes produzidos no estado sulista, cobrindo período de 70 anos. Com organização dos críticos Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles, o livro pretende reunir reflexões em torno de filmes produzidos desde a década de 1950 chegando até 2020”.
Fatimarlei Lunardelli, presidente da Accirs, lembra que “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho” vem sendo “gestado há alguns anos com o propósito de iluminar filmes escolhidos livremente por nossos associados e convidados”. E alerta: “não se trata de eleição dos melhores filmes gaúchos, pois as escolhas não implicam em juízo de valor, mas sim na intenção de trazer visões particulares de como determinado filme impactou cada articulista”.
“Os textos, que se fazem acompanhar de fotos de cada filme” – detalha Fatimarlei – “contemplam abordagens jornalísticas, ensaísticas e memorialísticas”, promovendo “encontros geracionais dos autores com os filmes escolhidos”. O resultado geral “realça títulos por vezes esquecidos da cinematografia gaúcha, outras vezes oferece uma nova leitura sobre filmes consagrados desta cinematografia”.
O quinteto de organizadores destaca que “alguns artigos do livro reverberam pesquisas acadêmicas que aproximaram certos autores de certos filmes, assim como a própria atividade profissional, organizando mostras ou acessando arquivos”. De forma que “cada crítico se debruçasse de modo especial sobre o título escolhido”.
Os autores dos 50 textos se aproximam dos filmes “em primeira ou terceira pessoa” – detalha Fatimarlei – “de forma a revelar um mosaico de estilos, gêneros e formatos de produção”. Há curtas, médias e longas-metragens, “bem como aventuras épicas em 35 milímetros, filmes intimistas e de baixíssimo orçamento da era digital, clássicos consagrados e títulos a serem descobertos – ou redescobertos”. Há “filmes fantásticos e de terror, adaptações literárias, cinebiografias e animações, filme indígena, filme sem diálogo, documentários de diferentes tipos (expositivo, ensaístico, experimental)”. E mais: “todos expõem uma geografia igualmente diversa, muitas vezes transformando paisagens em protagonistas das histórias contadas, demonstrando o quanto o cinema gaúcho – como a crítica gaúcha – é plural”.
O livro já tem data de lançamento (20 de março, na Sala Radamés Gnatalli, no Parque Farroupilha, em Porto Alegre), mas ninguém saberá, antes da hora, quais foram os títulos escolhidos. Para marcar o lançamento e permitir acesso aos filmes – avisam os organizadores – “haverá mostras, exibições em streaming e em emissora de TV, além de curso para os interessados em conhecer melhor o recorte do cinema gaúcho representado pela publicação”.
Tudo indica que muitos dos títulos escolhidos pelos críticos gaúchos estejam disponibilizados na plataforma Sulflix, projeto coordenado pela produtora Daniela Gouveia Meneghotto, da Lança Filmes, e muito bem recebido por produtores, realizadores e técnicos gaúchos.
Giba Assis Brasil, diretor do longa em 35 milímetros “Verdes Anos” (em parceria com Carlos Gerbase), montador, roteirista e produtor da Casa de Cinema de Porto Alegre (a empresa que renovou o cinema riograndense nos anos 1980), viu a iniciativa de Dani Menegotto com tanto entusiasmo, que abriu mão de gratuidade no acesso ao acervo. “Como a Casa de Cinema de Porto Alegre, nossa produtora, tem contrato de licenciamento de filmes com a Sulfix, nós teríamos o direito de livre acesso à íntegra do acervo. Mesmo assim, fiz questão de ser um dos primeiros assinantes individuais”.
O montador de “Dorival” e “Ilha das Flores”, que é também professor universitário, conta que está “assistindo muita coisa que tinha perdido por um motivo ou por outro”, e revendo coisas que não via há muito tempo”. São “curtas, longas e séries e outros tipos de conteúdo feitos por colegas, ex-alunos, conterrâneos e contemporâneos”.
A cineasta Cristiane Oliveira, diretora dos longas “Mulher do Pai”, coprodução brasileiro-uruguaia, e de “A Primeira Morte de Joana” (este, inédito), também está muito entusiasmada com a criação da Sulflix.
“Trata-se de uma iniciativa que se destaca pela diversidade, pois reúne artes e formatos diversos”, pontua. “No cardápio da plataforma estão meus primeiros curtas como diretora – ‘Messalina’ (2004) e ‘Hóspedes’ (2009). É muito bom vê-los de novo, disponibilizados em nova janela de exibição, depois de passado tanto tempo de suas trajetórias em festivais e canais de TV”. Já “meu primeiro longa, ‘Mulher do Pai’ (2016), que participou do Festival de Berlim, circula em plataformas de streaming desde o fim de sua temporada nas salas de cinema”. Porém, “esse espaço, o da Sulflix, é especial pelo recorte, voltado à valorização das produções de nosso estado”. E “o Rio Grande do Sul é retratado no filme. Por tudo isso, é uma alegria ver meus trabalhos integrados a esse acervo”.
Gustavo Spolidoro, cineasta e professor universitário, vai mais longe em seu entusiasmo: “quando vejo uma iniciativa como a Sulflix, de Dani Menegotto e equipe, fico imaginando como seria se todos os estados dispusessem de plataforma semelhante, com as produções audiovisuais locais! Acho que temos aí uma iniciativa (quem sabe várias) de grande potencial de difusão cultural e de comercialização”.
Além do estímulo para que colegas de outras regiões do país empreendam a mesma experiência, Spolidoro lembra aspecto educativo-pedagógico da Sulflix: “pude estabelecer parceria entre projeto que desenvolvo, o Câmera Causa (www.cameracausa.art.br) com a Sulflix e 12 escolas públicas do interior do Rio Grande do Sul. Estas instituições, participantes do Câmara Causa na Escola, irão receber assinatura da plataforma e assim alunos e professores terão acesso a conteúdo que raramente veriam (hoje já somamos mais de 500 produções feitas no estado)”.
O inquieto realizador do inédito “Os Dragões”, baseado em Murilo Rubião, espera que “os caminhos trilhados pela Sulflix façam sucesso e conquistem um grande número de assinantes”, pois assim, “quem sabe, mais adiante, a plataforma possa contribuir também com a produção de conteúdo”.
O autor do documentário “De Volta ao Quarto 666”, protagonizado pelo alemão Wim Wenders, arremata: “a fagulha foi acesa! A maioria dos meus trabalhos está disponibilizada na plataforma. Eu os dividi em Lado A e Lado B. No primeiro caso estão produções realizadas com recursos financeiros, premiadas e razoavelmente conhecidas”. Mas tem um Lado B, que uma hora devo tentar promover, composto com super-8’s, vídeos sem noção (risos), invenções e outras viagens”. Estes, “encontraram abrigo na Sulflix”.
A cineasta e produtora Liliana Sulzbach, diretora dos sensíveis “A Invenção da Infância” e “A Cidade” (curtas) e do longa “O Cárcere e a Rua”, tem vários trabalhos na Sulflix. Depois de lembrar que é “impossível rotular o cinema gaúcho”, ela destaca “a graça e o mérito da Sulflix ao conseguir concentrar em uma única plataforma muitas de suas caras – o cinema popular e fenômeno de bilheteria do cantor Teixeirinha, o Sul urbano, os curtas inventivos, os dramas existenciais e os longas de animação para adultos”.
Liliana acrescenta: “como o cinema não anda sozinho, o teatro, a música e a gastronomia também estão no catálogo, o que revela algumas afinidades que permeiam as distintas obras que circularam num mesmo período. É o milagre do santo da casa”.
O diretor de fotografia Bruno Polidoro, codiretor do longa-metragem “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes” (sobre Caio Fernando Abreu) e professor universitário lança sobre a Sulflix um olhar especial. Na condição de mais premiado diretor de fotografia do estado (por filmes de Matzembacher e Reolon, Emiliano Cunha, Iuli Gerbase, Ana Luiza Azevedo, Gilson Vargas, Zeca Brito etc.) ele lembra que “muitas vezes queremos mostrar um filme, do qual integramos a equipe, ou apresentar o trabalho de um colega, aos nossos alunos ou a um estudioso ou amigo”. Aí surge o impasse: “em grande parte, os filmes não estão disponíveis – nem sequer temos um link para mostrar!”
“Agora, com a Sulflix” – respira aliviado – “nos deparamos com um grande acontecimento para nós realizadores, e para o público, claro!, pois temos muitos projetos em que atuamos e outros tantos que adoramos, disponibilizados. Todos os interessados poderão assisti-los”.
Polidoro faz questão de destacar “a oportunidade para rever filmes que estão em nossos corações, como o curta ‘3 Minutos’, da Ana Luiza Azevedo, e descobrir títulos novos e antigos aos quais não tínhamos acesso”.
A Sulflix conta com apoio do projeto Pró Cultura RS. Abaixo, alguns filmes que estão no catálogo da plataforma gaúcha:
Casa de Cinema de Porto Alegre
. “Ilha das Flores”, curta de Jorge Furtado
. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, curta de Jorge Furtado e José Pedro Goulart
.“Houve uma vez Dois Verões”, longa de Jorge Furtado
. “Antes que o Mundo Acabe”, longa de Ana Luiza Azevedo
.“Fora de Quadro”, série de Janaína Fischer e Márcio Schonardie
. “3 Minutos”, curta de Ana Luiza Azevedo
Produções ou direções de Liliana Sulzbach
Longas:
. “Dalua Downhill” – documentário de Rodrigo Pesavento (produção)
. “Prova de Coragem”, ficção de Roberto Gervitz – (produção)
. “O Cárcere e a Rua” – documentário de Liliana Sulzbach (direção e produção)
Minissérie:
. “Notas de Amor” – produção e direção
Curtas:
. “A Invenção da Infância” – direção
. “A Cidade” – produção e direção
. “Luiz Carlos Felizardo” – co-direção e produção
. “Cidades Redesenhadas” – co-direção e produção
. “Amigos Bizarros do Ricardinho” – produção
Produções de Gustavo Spolidoro
Longas-metragens:
. “Ainda Orangotangos”, 81′, 2007 (Clube Silêncio)
. “Morro do Céu”, 71′, 2009 (GusGus Cinema)
. “Errante, Um Filme de Encontros”, 70′, 2015 (GusGus Cinema)
Séries:
. “A Velha História do meu Amigo Novo, 13 episódios de 13min, 2018 (GusGus Cinema)
. “Aos Sonhos que me Restam”, 4 episódios de 3min, 2013 (Fundação Iberê Camargo e GusGus Cinema)
Curtas-metragens:
. “Velinhas”, 11′, 1998 (GusGus Cinema)
. “Outros”, 14′, 2000 (GusGus Cinema)
. “Final – Trilogia do Amor em 16 MM – Parte 1”, 7′, 2001 (TGD Filmes e GusGus Cinema)
. “Domingo”, 15′, 2002 (TGD Filmes e GusGus Cinema)
. “Início do Fim”, 6:30min, 2005 (Clube Silêncio)
. “Pequenos Tormentos da Vida”, 20′, 2006 (Clube Silêncio)
. “De Volta ao Quarto 666”, 15min, 2008 (V2 cinema)
. “O Sonho, O Limiar e a Passagem que Metarmorfoseia”, 16′, 2015 (Goethe Institut Porto Alegre e Acendi)
. “Os Replicantes em Close-Up – Surfista Calhorda”, 6′, 2013 (GusGus Cinema)
Produções da Prana Filmes, de Carlos Gerbase
. “Menos que Nada”, longa de Carlos Gerbase
. ” 3 Efes”, longa de Carlos Gerbase
. “Deus Ex-Machina”, curta de Carlos Gerbase
Filmografia de Teixeirinha (Victor Maeus Teixeira, Rolante, 03/03/1927 – Porto Alegre, 04/12/1985)
1967 – “Coração de Luto”, de Eduardo Llorente
1970 – “Motorista sem Limites”, de Milton Barragan
1972 – “Ela Tornou-se Freira”, de Pereira Dias
1973 – “Teixeirinha a 7 Provas, de Milton Barragan
1974 – “O Pobre João”, de Pereira Dias
1975 – “A Quadrilha da Perna Dura”, de Pereira Dias (Sulflix)
1976 – “Carmen a Cigana”, de Pereira Dias
1977 – “Na Trilha da Justiça” (sem informações)
1978 – “Gaúcho de Passo Fundo”, de Pereira Dias
1978 – “Meu Pobre Coração de Luto”, de Pereira Dias
1980 – “Tropeiro Velho” (Sulflix)
1981 – “A Filha de Iemeanjá”, de Milton Barragan