Morre Jean-Louis Comolli, o cineasta que teorizou sobre como “filmar o inimigo”
Por Maria do Rosário Caetano
Jean-Louis Comolli, diretor de 50 filmes, um deles sobre a Colônia Cecília, implantada por anarquistas no Sul do Brasil, ex-editor da revista Cahiers du Cinéma e teórico do cinema, morreu na última quinta-feira, 19 de maio, em Paris, aos 80 anos. Nascido na Argélia, em 30 de julho de 1941, Comolli exerceu grande influência sobre jovens documentaristas de diversos continentes. No Brasil, tal influência se processou, em especial, em grupo de estudos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que o trouxe para palestras e seminários e publicou seu livro mais famoso, “Ver e Poder” (“Voir et Pouvoir”), do qual consta seu texto mais influente: “Como Filmar o Inimigo”.
Em 2016, Comolli visitou São Paulo, onde participou do DocSP, no Unibes Cultural. Em memorável masterclass, que durou um dia inteiro (manhã, tarde e noite), ele resumiu suas ideias, mostrou filmes e debateu-os, com raros vigor e interesse, com o público. O mais instigante de seus postulados tem a ver com a complexa forma de se “filmar o inimigo”. Afinal, uma coisa é filmar um artista, um político ou um cientista com o qual se tem afinidade. Outra é filmar alguém, de cujas ideias divergimos frontalmente. Devemos ridicularizar esta pessoa?
Para o editor da revista Cahiers de Cinéma, em sua fase mais politizada (1966-1971), “não se deve, de forma alguma, ridicularizar o inimigo”, pois isso “o humaniza”, e acaba por “colocar o espectador a favor dele”.
Num filme sobre Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine, hoje a líder da extrema direita francesa, vemos o político percorrendo um mercado. Ele sorri para seus eleitores. É pura simpatia. A câmera vai registrando tudo. De repente, um de seus seguranças, que o segue de perto, esbarra em Le Pen. O político extremista reage com raiva e grita: “Eu disse a você para não encostar em mim. Não gosto que encostem em mim!”. Ao filmar este gesto descontrolado, fora se si, mostramos o que estava por trás daqueles sorrisos e daquela bondade representada”.
Dos 50 filmes dirigidos por Comolli, apenas quatro são ficcionais. Ele dedicou sua vida à reflexão, à pesquisa de linguagem, principalmente no campo do documentário. Como era um homem de esquerda, sua fase como editor da revista Cahiers du Cinéma coincidiu com o Maio de 68, quando a publicação abandonou suas capas amarelas (Fase Jaune) e adotou formato despojado. Suas edições eram verdadeiros tratados teóricos, sem compromisso com a indústria do cinema, sem fotos de estrelas (atores ou diretores). O próprio Jean-Luc Godard estava radicalmente comprometido com o Grupo Dziga Vertov, imerso em pesquisas formais e participando ativamente da fase marxista-estruturalista (até “maoísta”) da bíblia da cinefilia francesa.
O interesse de Comolli pelo Brasil se deu pela Colônia Cecilia (“La Cecilia”, 1975), implantada no Paraná, no século XIX, por colonos italianos. Mas ele não veio ao Brasil para realizar o filme. O fez, por inteiro, na Europa. Não é fácil encontrar as produções de Jean-Louis Comolli, legendadas em português. Mas, na plataforma MuBi (internacional), alguns deles estão disponíveis. Caso de “La Campagne de Provence” (92), “Chahine & Co” (1993), “La Jeune Fille au Livre” (1994), “Music for the Movies: Georges Dellerue” (1995), “Marseille Contre Marseille” (1998), “La Question des Alliances” (1997), “Jeux des Rôles à Carpentras” (1998), “Buenaventura Durruti, Anarquista” (2000), “The Judge and the Historian: The Sofri Affair” (2001), “La Dernière Utopie: La Télévision Selon Rossellini” (2006), “À Voir Absolument: 1963-1973 Dix Annés Aux Cahiers du Cinéma” (2011) e “Documentary Film, Fragments of a Story” (2014).