O dia em que Claire Denis se negou a falar de seu avô brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).
A décima-terceira dessas lembranças tem mais uma vez o Amazon Film Festival, que acontecia em Manaus, com extensão na Floresta Amazônica, como cenário. O evento sofreu solução de continuidade muito cedo. Foram realizada dez edições entre 2001 e 2013.
Pena que o festival manauara tenha acabado, pois durante dez dias colocava a região Norte no centro do debate cinematográfico e em intercâmbio com grandes nomes do cinema, em especial o europeu. Mais ainda com a produção francesa. O Governo do Estado do Amazonas mantinha parceria com empresa sediada na França, que realizava festivais em países francófonos da África e do Caribe. Como os franceses sempre tiverem imenso fascínio pela Amazônia, acabaram estabelecendo base cultural na maior floresta tropical do mundo.
Durante muitos anos, o Amazon Film Festival atraiu nomes como Carole Bouquet, Tcheky Karyo, Jean-Jacques Annaud, Petit, o equilibrista, Roman Polanski, cidadão francês de origem polonesa, Wolinsky, Claire Denis, Alex Descas, que se somavam a italianos como Claudia Cardinale, portugueses, como Joaquim de Almeida, ingleses como Alan Parker e John Boorman, estadunidenses como Bill Pullman e Barry Pepper (que trabalhou com Tommy Lee Jones em “Três Enterros”), etc., etc.
O festival manauara tinha três bases: o Teatro Amazonas, belíssimo, fruto da riqueza do Ciclo da Borracha, onde os filmes eram exibidos; o Hotel Tropical, dos tempos opulentos da Varig, às margens do Rio Negro, e o Hotel Ariaú, para dois dias de festejos, shows do Bois Garantido e Caprichoso, passeios na selva e convivência com micos e clima tropical. E, claro, nunca se pode esquecer, o que mais fascinava a todos: o encontro com o boto cor-de-rosa, que Jacques Cousteau, oceanógrafo e cineasta francês, populariza no mundo inteiro. Atores (Claudia Cardinale), cineastas (Polanski, Annaud, Boorman), todo mundo queria “abraçar” o Boto.
O passeio era maravilhoso. Saíamos em um imenso barco, tipo gaiola, para viagem que durava umas seis horas. O primeiro deslumbramento se dava com o “Encontro das Águas” do rio Solimões com o Negro, uma barrenta e outra preta, parecendo desenho de criança, delimitada como se um risco fosse feito a lápis.
A assessoria de imprensa do festival atiçava os jornalistas a conseguirem entrevistar os astros internacionais durante o passeio de seis calmas horas. Só que uns não queriam saber de nenhuma “mala perguntadora” por perto. Outros eram super-receptivos, caso de Philippe Petit, protagonista do filme “O Equilibrista” (James Marsh, Oscar de melhor documentário em 2009). O pequenino Petit sentou-se à mesa com uns cinco jornalistas, conversou com todos eles por quase 90 minutos e não fugiu de nenhuma pergunta. Nem parecia um cidadão francês.
Mesmo caso do cartunista Georges Wolinski. Ele estava em Manaus na condição de integrante do júri da principal mostra competitiva, a internacional. Passara despercebido de todos os nativos. Inclusive da imprensa. Até que, no imenso barco que nos levava ao Hotel Ariaú, o jornalista Luiz Zanin Oricchio, do Estadão, reparou naquele senhor careca, de pele muito vermelha, por causa do sol tropical, e viu que ele desenhava tudo que via em grande folhas de papel. Aproximou-se para tirar dúvida que o assomara: “mas é a cara do Wolinski!”. Como morara em Paris e fôra leitor da revista Charlie Hebdo, Zanin era fã do cartunista.
Ao se aproximar, o jornalista do Estadão tirou sua dúvida. Wolinski confirmou sua identidade e os dois engataram papo que durou horas.
O cartunista fez muitas perguntas sobre a realidade política brasileira. E, de quebra, desenhou uma caricatura do jornalista, que a guarda até hoje. Guarda, também, uma história em quadrinho que Wolinski desenhou de sua aventura no festival à beira da selva amazônica e na qual Luiz Zanin teve uma pequena participação. Esta HQ só chegou ao Brasil porque Tunico Amâncio, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), estando em Paris, comprou a revista Charlie Hebdo e mandou cópia digital para o interlocutor brasileiro de Wolinski.
E nota trágica: Quem imaginaria que, em janeiro de 2015, Georges Wolinski, aquele francês nascido na Tunísia, simpático, falador e bem-humorado, seria uma das vítimas do atentado terrorista que matou boa parte dos redatores e cartunistas da revista Charlie Hebdo, situada num tranquilo quartier parisiense?
Mas voltemos ao Amazon Film Festival. Entre os convidados (ou melhor, convidadas) que não primavam pela simpatia estava a atriz Carole Bouquet. Sempre somos avisados a não fazer perguntas pessoais (íntimas) a atrizes francesas. Elas, ao contrário das norte-americanas (e brasileiras), detestam este tipo de intromissão. Sempre evitei. Com Carole Bouquet não foi diferente. Como eu já tomara uma dividida de Emmanuelle Béart, quando ela viera lançar um filme (“L’Enfer”) num festival francês (um ancestral do Varilux), fiquei ainda mais cautelosa.
Um parêntese para lembrar a saia justa com La Béart: lera em alguma revista que, para o filme de Claude Chabrol (no Brasil, “Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo”, 1994), achara-se por bem convocar um psicólogo para acompanhar o casal François Cluzet e Emmanuelle Béart (um par na vida real e protagonistas da trama). O filme, um thriller psicológico, tinha roteiro de Henri-Georges Clouzot e ficara inacabado e com fama de maldito. Perguntei se ela gostara da ideia (do psicólogo) e se dera bom resultado. Pra que?! A jovem atriz fez cara de enfado e deu a entender que nem ia responder. Parti para a pergunta seguinte.
Com Carole Bouquet nada adiantou. Nenhuma resposta externava boa vontade ou entusiasmo. E olhe que falamos de “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, de Luis Buñuel, de “Linda Demais para Você”, de Bertrand Blier. A diva francesa parecia cumprir um compromisso. E só.
Estas lembranças são evocadas para chegar à nossa personagem principal: a parisiense Claire Denis. Ela era uma das estrelas da delegação francesa no Amazon Film Festival, em 2009, ano em que seu filme “Minha Terra, África” (“White Material”), causava sensação. O longa participara do Festival de Veneza e tinha à frente do elenco a atriz-cabeça Isabelle Huppert.
No enorme barco que levava artistas estrangeiros e brasileiros (e jornalistas) ao Hotel Ariaú, Claire Denis estava sempre ao lado de seu ator-fetiche, o francês de origem afro-caribenha Alex Descas, presença magnetizante de muitos de seus filmes, incluindo o ótimo “35 Doses de Rum” (2008). Ele, de simpatia ímpar, tirava fotos com todos os embarcados, conversava, brincava, ria. Ela permanecia na dela. Quando a assessoria de imprensa reuniu um grupo de cinco ou seis jornalistas para entrevistá-la, Claire Denis não fez por menos. Deu a entender, com respostas curtas (e desagradáveis), que preferia curtir a viagem olhando as águas amazônicas ou conversando com seu ator, que falando de cinema com jornalistas. Menos ainda de suas origens amazônicas.
Primeiro, imitou a voz de um jornalista que chamou a companheira de “amor”: “Amorrrr!!!!”, falou com ênfase arrastada. Quando o crítico Orlando Margarido, então na revista Carta Capital, quis saber sobre a origem de Claire Denis, que teria parentes na Amazônia, ela perguntou, de chofre: “Vous êtes flic?” (Você é policial?).
Desistimos. Não havia clima. A grande cineasta francesa, que fôra criada em diversos países africanos, autora de tantos e ótimos filmes, que com eles discutia o colonialismo e o pós-colonialismo, queria fruir sua viagem de barco. Era direito dela.
Só para esclarecer: 13 anos depois, ao falar de seu mais recente filme (“Star at Noon”), que participou do Festival de Cannes, ela contou a Elaine Guerini, no Valor Econômico (20/05/22), que “queria rodar o filme no Pará, terra de seu avô materno, um brasileiro nascido em Belém, que na juventude, foi estudar artes plásticas em Paris, onde se estabeleceu como pintor”. Disse, inclusive, acreditar “que herdou (do braço brasileiro da família) um traço mais emocional que intelectual”. E mais: “Como o meu avô ficou viúvo muito cedo, quando a minha mãe ainda era um bebê, ele a criou sozinho, estabelecendo uma forte ligação entre pai e filha”. Para concluir: “Perdi minha mãe em 2018, durante as filmagens de ‘High Life’. Ela não era nada francesa, por ter convivido só com o pai”. Esse penúltimo filme de Claire Denis – registre-se, é uma ficção científica protagonizada por Robert Pattinson, com Juliette Binoche vista em cena das mais transgressora.
Ah: o filme “Stars at Moon” não foi realizado na terra natal do avô de Claire Denis, porque a agência seguradora embargou locações no Brasil de Bolsonaro, em plena pandemia, época em que o filme foi rodado. Preferiu o Panamá, que naquele momento estava entre os países com maior porcentagem de população imunizada do planeta.