“Café, Pépi e Limão”, filme baiano, traz perplexidade ao público do Festival de Vitória

Foto: Cena de “Café, Pépi e Limão”, de Adler Kibe Paz e Pedro Léo

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória-ES

A perplexidade tomou conta do público do Festival de Cinema de Vitória, quando a última imagem do longa ficcional “Café, Pépi e Limão”, dos baianos Adler Kibe Paz e Pedro Léo, bateu na tela. Aplausos rarefeitos (ou constrangidos) mal foram percebidos.

E por que? O filme, terceiro longa concorrente ao Troféu Vitória, não merecia aplausos? Ou a cena final deixou a plateia em estado de choque?

Claro que a reação, soma de perplexidade e frieza — depois de quatro curtas aplaudidos com entusiasmo — foi motivada pela cena final. Quem se animará a aplaudir frente a imagem tão aterradora, retirada da realidade crua e brutal de nossas ruas?

O filme, que foi idealizado em 2017-2018, portanto na era Temer e no ano do triunfo de Bolsonaro (só chegando aos festivais nesse ano de 2024), compõe terrível retrato das carências e abandono de nossos adolescentes pobres, pretos e pardos.

“Café, Pépi e Limão”, título bem engendrado (evoca o italiano “Feios, Sujos e Malvados” e o argentino “Pizza, Birra, Faso”) tem três protagonistas. Aristides, adolescente negro, gosta de ser identificado por seu aromático apelido, Café. Ele é craque nos “malabares” (na verdade, três singelas laranjas). É obrigado a deixar sua cidade interiorana por problema sério ocorrido com a família. Penélope, que será rebatizada Pépi, é estuprada pelo padrasto e expulsa pela própria mãe de seu lar. Carlos, o Limão, tem 14 anos, dois a menos que Café e Pépi, e mora num buraco escuro, sob um viaduto, com Marta, sua mãe, pele e osso, debilitada pelo vício em crack. Ele ama a mãe.

Dos três, só Café parece ter um objetivo claro. Reencontrar o pai, encarcerado num presídio soteropolitano. Os dois garotos são bons e generosos. A jovem parece menos ingênua.

A cidade de Salvador é fotografada por Pedro Semanovischi com imensa força dramática. Planos aéreos descortinam uma metrópole marcada pela desigualdade social. Uns moram em prédios high-tec. Outros, em verdadeiras cavernas. De uma delas sairá personagem efêmero, de nome Fedor, que de tão rejeitado pelo meio social circundante, resolve besuntar-se com as próprias fezes. E, assim, incomodar o olfato dos que o desprezam.

A sinopse do filme e a presença de Fedor desenham desgraceira assustadora. Por que sair de casa, num mundo tão violenta, para assistir a tamanhas doses de tragédia social?

O roteiro de Pedro Léo, um dos diretores, acredita que haja corações sensíveis (como o da assistente social, única presença reconfortante na trama) e interessados na tragédia das grandes metrópoles brasileiras.

O problema é que Pedro Léo compilou desgraças em demasia. Nem o sorriso cativante de Café (João Victor Souza) — o que o filme tem de melhor — nem a amizade que mantém com Limão (Leonardo Lacerda) e a relação que tentará construir com Pépi (Mari Nascimento), e resvalará em paixão juvenil, ganham o aprofundamento necessário. Se falta densidade aos personagens principais, imagine aos secundários.

Pouco, muito pouco, saberemos do pai de Café, encarcerado; de irmão deste, que virou travesti e estabelece jogo de gato e rato com o sobrinho; das mães de Limão e de Pépi (embora esta tenha chance de repensar a brutal expulsão da filha de casa).

Pouco saberemos, também, do traficante que comanda um pedaço do território soteropolitano e alicia mulheres para a prostituição. Nesse caso, elogiemos. Que poderosas são as razões de Pépi para buscar a “proteção” dele, do mundo que representa. Ela quer ter o direito de tomar um banho e dormir numa cama de verdade! Em “Vidas Secas”, Sinhá Vitória sonhava dormir em uma cama de varas. Não como um bicho no chão.

O roteiro de Pedro Léo (e o filme dele resultante) tem bons momentos. O achado do circo (que acolherá o malabarista Café) dialoga com obras recentes e marcantes do cinema baiano: o documental “Jonas e o Circo sem Lona” (Paula Gomes, 2015) e o ficcional “Filho de Boi” (Haroldo Borges, 2019). A alegria do circo e a rara generosidade do aliciador de sorriso largo darão um respiro ao espectador, alguma esperança. Mas o retrato do Brasil desenhado pelos dois cineastas, ao mergulhar nas vísceras da exclusão, não enxerga saídas. Os anos Temer-Bolsonaro são expostos sem dialética. O Brasil parece um caso perdido, um padrasto estuprador como o pai postiço de Penélope.

Faltou a “Café, Pépi e Limão” um pouco de serenidade, afeto, intimidade e mergulho na vida de cada personagem, pelo menos dos protagonistas. Mesmo tendo brotado e sido construído nos anos em que a barbárie triunfou, em que governantes confundiam quilombolas com “arrobas de gordura” e mandavam “passar a boiada” no que ainda resta de nossas florestas, a trama (o roteiro), exigia maior complexidade.

Dois dos concorrentes (ao Troféu Vitória) de “Café, Pépi e Limão” são documentários: o capixaba “Presença”, de Erly Vieira Jr., até agora o franco favorito ao prêmio, e o candango “Não Existe Almoço Grátis”, de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel.

O debate de “Presença” foi muito revelador. Erly conceituou bem seu filme sobre três artistas e performers do Espírito Santo (Marcus Vinícius, Rubiane Maia e Castiel Vitorino Brasileiro).

O debate do documentário brasiliense, que contou com os dois diretores e uma de suas personagens-protagonistas, a cozinheira (do projeto Cozinha Solidária) e horticultora evangélica Juraildes Ferreira, também foi significativo.

Nepomuceno e Charbel, um deles militante do PSOL, reafirmaram que não fizeram um filme sobre a posse de Lula, depois dos difíceis, terríveis, anos Bolsonaro, mas sim um longa-metragem sobre (e com) três mulheres (além de Juraildes, a luminosa e franca Bizza dos Santos e a discreta Socorro da Silva). Em busca de uma moradia, elas se agregaram ao MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), responsável pela Cozinha Solidária.

As três vivem numa das maiores favelas do país, a Sol Nascente, em Ceilândia, e preparam quase mil refeições para trabalhadores que chegam a Brasília para a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (primeiro de janeiro de 2023) em seu terceiro mandato presidencial. Em nenhum momento, a câmara vai atrás da cerimônia de posse. O que interessa à dupla de realizadores é a vida das três mulheres. Uma, Socorro, depois de enfrentar o calor dos fogões industriais, nem quis assistir à posse. Preferiu ir para casa descansar, perto dos filhos e netos.

Bizza e Juraildes foram à Esplanada dos Ministérios-Praca dos Três Poderes. Praticante do evangelismo, Juraildes passou boa parte da cerimônia catando latinhas de cerveja deixadas por milhares de manifestantes que foram prestigiar o petista eleito. Ou seja, continuou trabalhando.

Bizza, que votou em Bolsonaro e se arrependeu, participou da festa vermelha, sem muita agitação, pois estava exausta. A câmara chega a registrá-la dormindo em meio ao frenesi da multidão. No debate, os diretores reafirmaram a intenção de não discriminar evangélicos, nem militantes do MTST que, por acaso, tenham ajudado a eleger o candidato da extrema-direita em 2018. Ou tenham dado a ele um dos milhões (quase metade) de votos em 2022.

“Se assim agíssemos” — postularam — “estaríamos discriminando parte dos militantes do MTST, muito deles evangélicos e eleitores de Bolsonaro. Eles lutam pela casa própria. E essa é uma luta de milhões de brasileiros pobres”.

O baiano “Café, Pépi e Limão” não se fez representar por ninguém, nem no palco do Cine-Teatro Sesc Glória, nem no debate do dia seguinte. Diretores, atores ou técnicos, ninguém se fez presente. Uma pena.

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