Em sua 30ª edição, Festival É Tudo Verdade soma dores do mundo a filmes biográficos e “Chaplin cigano”

Foto: O homenageado Vladimir Carvalho no set de “Cabra Marcado para Morrer” © Fernando Duarte

Por Maria do Rosário Caetano

O É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários de São Paulo vai apresentar a seu público um total de 85 filmes, distribuídos em múltiplas salas paulistanas e cariocas. Sua trigésima edição acontecerá de 3 a 13 de abril, com entrada gratuita, debates, mostras competitivas e retrospectivas. E tributo à memória dos brasileiros Vladimir Carvalho e Toni Venturi. E, antes tarde do que nunca, ao britânico Humphrey Jennings.

Amir Labaki, criador e diretor do maior festival de filmes não-ficcionais da América do Sul, garante que as telas do evento mostrarão “o mal-estar de nossos dias, o preocupante crescimento das autocracias e as angústias trazidas pela crise climática”. O que significa que as imagens projetadas, estímulo às reflexões da tradicional Conferência Internacional de Documentários, motivarão o espectador a enriquecer sua compreensão dos complexos desafios de nosso tempo.

Ninguém pense, porém, que só verá filmes ocupados com a “tragédia civilizacional” de nossos dias. A programação é diversificada e vai de retratos de estrelas como Rita Lee, no filme “Ritas”, que abrirá a versão paulistana do ÉTV, e Marília Pera (“Viva Marília”), atração da noite inaugural carioca.

Amir Labaki garante, convicto, que nem a cantora-compositora mutante, Rita Lee, nem a atriz Marília Pera ganharam “biografias convencionais”, daquelas que “vão do berço ao túmulo” e assemelham-se a programas de TV. Ele assegurou que tanto Osvaldo Santana, diretor de “Ritas”, quanto o veterano Zelito Viana (“Viva Marília”) adotaram “narrativas surpreendentes”.

Ainda no campo das “biografias” não-convencionais, o ÉTV exibirá aguardado longa documental sobre o mais gentil e humanista dos “vagabundos”, o eterno Carlitos, de Charles Chaplin. Dirigido por uma de suas netas, Carmen, “O Espírito de um Vagabundo” mostrará parte da imensa família chapliniana em busca da “herança cigana” do multiartista inglês. O filme dirá que tal herança foi fonte inspiradora da criação do personagem mais famoso do cineasta-ator-compositor  — o Vagabundo de chapéu coco, terno, bengala e sapatos grandes.

“Chaplin: O Espírito de um Vagabundo”, de Carmen Chaplin

No terreno das homenagens, o festival prestará tributo a nome conhecidíssimo entre os cinéfilos, o paraibano-candango Vladimir Carvalho (1935-2024), e a um “ilustre desconhecido” (pelo menos por nós brasileiros), o britânico Humphrey Jennings (1907-1950).

Vladimir ganharia tributo no ÉTV pelos seus 90 anos, que completaria em janeiro último. Mas o cineasta morreu poucos meses antes (em outubro do ano passado). Amir Labaki foi a Brasília velá-lo e assegurou que o diretor de “Conterrâneos Velhos de Guerra” seria lembrado no festival dedicado à maior paixão de Vladimir – o cinema documentário. Materializa sua promessa exibindo a herança por vladimiriana impressa em nove filmes de longa-metragem.

A revelação de Humphrey Jennings (1907-1950) se dará com a exibição de oito curtas, médias e um quase-longa (“Começaram Incêndios”, de 63 minutos). E, como complemento, o documentário do festejado e oscarizado Kevin MacDonald, que reconstrói a trajetória do documentarista de breve vida. E que seus contemporâneos – como diz o esclarecedor título do filme a ele dedicado – viram como “O Homem que Ouviu a Grã-Bretanha”.

Para Lindsay Anderson (1923-1994), diretor do inconformista “If…” e arauto do Free Cinema britânico, Jennings foi “o único poeta do real que o cinema britânico produziu”. Essa declaração, registrada em 1954, se deu poucos anos após a morte do documentarista. Morte trágica. Jennings encontrava-se na Grécia, na ilha de Poros, buscando locações para um novo filme. Caiu de um penhasco e, tragicamente, abreviou seus dias. Tinha apenas 43 anos. E preparava um filme sobre a saúde na Europa do Pós-Guerra. Aliás, a Segunda Guerra Mundial foi o tema principal de seus filmes. Labaki comparou a poesia neles contida à encontrada nos documentários do soviético Dziga Vertov e do holandês Joris Ivens.

Os 85 filmes selecionados e programados pelo ÉTV são originários de 30 países. Um deles, alerta Amir Labaki, vem da Polônia – “Trens”, de Maciej J. Drygas, vencedor do IDFA (o grifado Festival Internacional de Documentários de Amsterdã) — e causou sensação por suas qualidades estéticas e custo de produção.

“Trata-se do mais caro documentário produzido na Polônia”, lembrou o criador do ÉTV. Nele, Drygas somou, em 80 minutos e sem recorrer a diálogos, percurso artístico-reflexivo pela Europa do século 20, composto integralmente com imagens de arquivo. Assim procedeu para revelar como “a maravilha do movimento pode transformar-se em maldição”.

E por que o filme custou tão caro para os padrões poloneses? Labaki aponta a razão: “os altos custos da aquisição de direitos de imagens”. Por isso, “no ÉTV, vamos refletir sobre essa realidade, que tem dificultado, ou impossibilitado, a realização de dezenas, centenas, de filmes, inclusive brasileiros”. Não há legislação que regulamente o assunto.

“Trens”, de Maciej J. Drygas

Para evocar sua própria história, que afinal já dura três décadas, o É Tudo Verdade vai se auto-referenciar e exibir três filmes. Dois deles foram premiados na segunda edição do evento (a primeira, em 1996, não foi competitiva) – o brasileiro “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes”, de Toni Venturi (1955-2024), e o suíço “Noel Field – A Lenda de um Espião”, de Werner Schweizer. A eles se somará  o clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho. Labaki faz questão de lembrar que Coutinho e Vladimir Carvalho foram, com seus filmes, as fontes inspiradoras da criação do festival.

A inclusão do “Cabra” nessa edição de número 30 presta homenagem, portanto (e de uma só vez) a uma trinca de artistas imprescindíveis – além de Coutinho e Vladimir, o fotógrafo Fernando Duarte (1937-2023).

Nunca é demais lembrar que o diretor de fotografia da parte original e ficcional da obra protagonizada pela líder camponesa Elizabeth Teixeira, assina, também, a foto do jovem Vladimir Carvalho estampada no cartaz, na capa do catálogo e em todo material gráfico-visual do ÉTV. Vemos nela o jovem Vladimir que foi assistente de Coutinho e pau-para-toda-obra no “Cabra”. A ponto de, na hora mais difícil, disfarçar Dona Elizabeth “como uma prostituta”, de forma que ela conseguisse chegar ao Rio Grande do Norte, onde viveria, anônima, após o triunfo do golpe militar.

A imagem, em preto-e-branco contrastado, realizada por Fernando Duarte, mostra o então jornalista e (quase) cineasta Vladimir Carvalho, autor de textos seminais sobre as Ligas Camponesas, posando, compenetrado para a câmara de Duarte. O fazia com seus óculos de aros grossos e claquete de cena “interior-noite” do “Cabra Marcado para Morrer”. Naquele início de 1964, o filme, que nascia como obra ficcional, seria interrompido pelos militares. O resto é história.

O programa “Especial 30!” se multiplicará em seminário que contará com quatro realizadores-vencedores do ÉTV – Eliza Capai (“Incompatível com a Vida”), Joel Zito Araújo (“A Negação do Brasil”), Paulo Sacramento (“O Prisioneiro da Grade de Ferro”) e Roberto Berliner (“A Pessoa É para o que Nasce”). Os três conversarão com o público no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP, nos dias 10 e 11 de abril.

Dois longas-metragens terão suas premières brasileiras no ÉTV: “Hora do Recreio”, de Lúcia Murat, Menção Honrosa na mostra Generation do Festival de Berlim, e “Minha Terra Estrangeira”, que uniu o Coletivo Lakapoy, a Louise Botkay e João Moreira Salles.

Amir Labaki contou, em coletiva de apresentação dos filmes selecionados para a edição número 30, que “um terço deles terá sua estreia mundial no ÉTV”. Outros farão sua première brasileira, caso de todos os longas nacionais e internacionais.

Só aos curtas brasileiros não foi exigido ineditismo. Filmes como o gaúcho “Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude, e o carioca “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro, chegam recomendados por seleção ou premiação em outros festivais.

O Itaú Cultural Play exibirá, para espectadores de todo território brasileiro, entre 14 e 30 de abril, seis curtas-metragens da competição nacional (deste ano) e quatro curtas do homenageado Vladimir Carvalho (entre eles, “A Bolandeira” e “Pedra da Riqueza).

 

É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários
Data:
3 a 13 de abril
Todas as sessões são gratuitas
Locais: São Paulo (CineSesc, Cinemateca Brasileira – Salas Grande Otelo e Oscarito), IMS Paulista e Centro Cultural São Paulo. No Rio de Janeiro (Estação NET Botafogo e Estação NET Rio, Sala José Wilker, do recém-inaugurado CineCarioca)

22ª Conferência Internacional do Documentário, em co-realização com a Cinemateca Brasileira, contará com convidados brasileiros e internacionais (dias 8 e 9 de abril)

 

Confira os selecionados:

SESSÕES INAUGURAIS

. “Ritas”, de Oswaldo Santana (abertura paulistana)
. “Viva Marília”, de Zelito Viana (abertura carioca)

COMPETIÇÕES

Longas brasileiros

. “Bruscky: Um Autorretrato”, de Eryk Rocha
. “Copan”, de Carine Wallauer
. “Lan – O Caricaturista”, de Pedro Vinicius
. “Mundurukuyú – A Floresta das Mulheres Peixe”, de Aldira Akay, Beka Munduruku e Rylcélia Akay
. “Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky”, de Liliane Maia e Jorge Bodanzky
. “Quando o Brasil Era Moderno”, de Fabiano Maciel
. “Rua do Pescador, nº 6”, de Bárbara Paz

Longas internacionais

. “Culpar”, de Christian Frei (Suíça)
. “Estrada Azul – A História de Edna O’Brien”, de Sinéad O’Shea (Irlanda, Inglaterra)
. “Crônicas do Absurdo”, de Miguel Coyula (Cuba)
. “O Propagandista”, de Luuk Bouwman (Países Baixos)
. “A Liberdade de Fierro”, de Santiago Esteinou (México)
. “Em Busca de Amani”, de Nicole Gormley e Debra Aroko (EUA-Quênia)
. “O Jardineiro, o Budista & o Espião”, de Havard Bustnes (Noruega)
. “A Invasão”, de Sergei Loznitsa (França, Países Baixos e EUA)
. “Sob as Bandeiras, o Sol”, de Juanjo Pereira (Paraguai, Argentina, EUA, França, Alemanha)
. “Escrevendo Hawa”, de Najiba Noori (França, Países Baixos, Catar, Afeganistão)
. “A 2000 Netros de Andriivka”, de Mstyslav Chernov (Ucrânia)
. “Meus Fantasmas Armênios”, de Tama Stepanyan (França, Armênia, Catar)

Curtas brasileiros

. “A Bolha”, de Caio Baú
. “Cartas pela Paz”, de Mariana Reade, Thays Acaibe e Patrick Zeiger
. “Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude
. “Dois Nilos”, de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro
. “Mergulho no Escuro”, de Isis Mello e Anna Costa e Silva
. “Palavra”, de DF Fiúza
. “Sem Título # 10: Ao Redor do Amor”, de Carlos Adriano
. “Sobre Ruínas”, de Carol Benjamin
. Sukande Kasáká – Terra Doente”, de Kamikia Kisedje e Fred Rahal

Curtas internacionais

. “Eu Sou a Pessoa Mais Magra que Você Já Viu”?, de Eisha Marjara (Canadá)
. “Corrija-me se Eu Estiver Errado”, de Hao Zhou (China, Alemanha)
. “Fazenda de Frutas”, de Nana Xu (China, Alemanha)
. “A Avó & Peixes”, de Maria Mavati e Eshan Faroki Fard (Irã)
. “Batida do Coração”, de Jay Rosenblatt e Stephanie Rapp (EUA)
. “Niren Felder”, de Malen Otaño (Argentina)
. “O Oásis que Eu Mereço”, de Inès Sieulle (França)
. “Quimera”, de Martin André e Gael Jara (Chile)
. “Através da Janela”, de Daniel Stopa (Polônia)

RETROSPECTIVAS

Vladimir Carvalho (nove longas)

. “O País de São Saruê” (1971)
. “O Homem de Areia” (1981)
. “O Evangelho Segundo Teotônio” (1984)
. “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991)
. “Barra 68 – Sem Perder a Ternura” (2000)
. “O Engenho de Zé Lins” (2007)
. “Rock Brasília – Era de Ouro” (2011)
. “Cícero Dias, o Compadre de Picasso” (2016)
. “Giocondo Dias – O Ilustre Desconhecido” (2019)

Humphrey Jennings

. “Tempo Livre” (15′)
. “Londres Resiste!”, parceria com Harry Watt (9′)
. “Ouça a Grã-Bretanha”, parceria com Stewart McAllister (20′)
. “Palavras para a Batalha” (98′)
. “Começaram Incêndios” (63′)
. “A Vila Silenciosa” (36′)
. “O Diário de Timothy” (39′)
. “Retrato de Família” (26′)
. “Humphrey Jennings – O Homem que Ouviu a Grã-Bretanha”, de Kevin MacDonald (52′)

O ESTADO DAS COISAS

. “Sr. Presidente”, de Marek Sulik (Eslováquia e República Tcheca)
. “Reconhecidos”, de Fernanda Amin e Micael Hocherman (Brasil)
. “Pau D’Arco”, de Ana Aranha (Brasil)
. “Eu Sou sua Vênus”, de Kimberly Reed (EUA)
. “Petra Kelly – Aja Agora!”, de Doris Metz (Alemanha)
. “Sobre um Herói”, de Piotr Winiewicz (Dinamarca, Alemanha)
. “Esperando por Liat”, de Brandon Kramer (EUA)
. “Histórias do Marco Zero”, de um Coletivo de Diretores (Palestina, França, Catar, Jordânia)

FOCO LATINO-AMERICANO

. “Karuara, o Povo do Rio”, de Stephanie Boyd e Miguel Araoz Cartagena (Peru)
. “Nossa Coisa Perdida”, de Martina Cruz (Argentina)
. “Uma Sombra Oscilante”, de Celeste Rojas Mugica (Chile, Argentina, França)
. “Toroboro: A Consulta Popular”, de Manolo Sarmiento (Equador, Brasil)

CLÁSSICOS É TUDO VERDADE

. “Chaplin: O Espírito de um Vagabundo”, de Carmen Chaplin (Reino Unido, França, Espanha)
. “Liza: Uma História Verdadeiramente Incrível e Absolutamente Verídica”, de Bruce David Klein (EUA)
. “Os Ruminantes”, de Tarsila Araújo e Marcelo Cordeiro de Mello (Brasil)
. “Retrato de Classe – A Vida, a Pessoa e as Coisas”, de Gregório Bacic e Thiago Iacocca (Brasil)
. “Acaba de Chegar ao Brasil o Belo Poeta Francez Blaise Cendrars”, de Carlos Augusto Calil (Brasil)
. “Quem Não Conhece o Silva?”, de Carlos Augusto Calil (Brasil)

PROGRAMAS ESPECIAIS

. “Ninha Terra Estrangeira”, de Coletivo Lakapoy, Louise Botkay e João Moreira Salles
. “Hora do Recreio”, de Lúcia Murat

“ESPECIAL 30! – Trajetória do Festival

. “O Velho – A História de Luiz Carlos Prestes”, de Toni Venturi
. “Noel Field – A Lenda de Um Espião”, do suíço Werner Schweizer
. “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho

SESSÃO DE ENCERRAMENTO

. “Trens”, de Maciej J. Drygas (Polônia e Lituânia)

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