Isabelle Huppert e Hafsia Herzi atuam unidas em “A Prisioneira de Bordeaux”, trama que evoca filmes de Claude Chabrol

Por Maria do Rosário Caetano

Isabelle Huppert e Hafsia Herzi protagonizam o surpreendente “A Prisioneira de Bordeaux”, décimo longa-metragem da festejadíssima Patricia Mazuy, que chega ao circuito de arte brasileiro nessa quinta-feira, 7 de agosto. E o faz em condições de atrair os fãs da incansável Huppert, de 72 anos e currículo invejável, e dos que se lembram do furor causado pela franco-tunisana Herzi, de 37 anos, que conheceu a fama quando protagonizou “O Segredo do Grão”, de Abedellatif “Azul é a Cor Mais Quente” Kechiche.

O adjetivo “festejadíssima” só faz sentido na França, já que Patricia Mazuy continua sendo um nome que não diz muito ao público brasileiro. Mas, para a equipe da revista Cahiers du Cinéma, ela joga na linha de frente.

Três anos atrás, quando a cineasta lançou seu nono filme – “Bowling Saturne” (Boliche Saturno) —, a bíblia da cinefilia francesa dedicou sete páginas (de sua edição 791) a ela e atribuiu cinco estrelas ao vigoroso noir. Um noir, registre-se, violentíssimo, que nos deixa com os nervos à flor da pele. Nos faz perder o sono.

Patricia Mazuy urdiu trama complexa e angustiante sobre caçadores de animais e caçador de mulheres, capaz de deixar Claude Chabrol, um dos fundadores da Nouvelle Vague e da Cahiers du Cinéma, se vivo fosse, em estado de êxtase. Note-se que o filme tem dois protagonistas: o policial Guillaume (o fantástico Arieh Worthalter, de “O Caso Goldman”) e seu meio-irmão, o bastardo Armand. Para este papel, um dos mais apavorantes da história do cinema, Patricia Mazuy escalou o próprio filho, Achille Reggiani. “Que coragem!”, diremos nós, que convivemos com noção mais edificante da maternidade.

Perto de “Bowling Saturne”, a estreia desta semana – “A Prisioneira de Bordeaux” – pode parecer (pelos menos na superfície) uma sessão da tarde. Não é. Mas feita a comparação, dá para recorrermos a tal afirmação. Ah, antes de entrarmos na narrativa do filme protagonizado por Huppert e Herzi, vale um micro-resumo da trajetória de Patricia Mazuy. Ela tem 65 anos. Neta de agricultores de Bresse e filha de padeiros de Dijon, interessou-se por cinema como frequentadora de cineclubes. Iniciou-se no ofício como montadora e diretora de curtas. Foi viver nos EUA.

Em 1985, a amiga Agnès Varda (1928-2019) a convocou para montar “Os Rejeitados” (“Sans Toit Ni Loi”, filme vencedor do Leão de Ouro, em Veneza, e responsável pela projeção internacional da atriz Sandrine Bonnaire). No ano seguinte, Patricia dirigiria seu primeiro longa-metragem, “La Boiteuse”. Mas seria “Peaus de Vaches”, seu segundo longa (com Sandrine Bonnaire no elenco) que alcançaria difusão mais significativa. Seria exibido na mostra Un Certain Regard, em Cannes.

A consagração, para valer, só chegaria seis filmes depois. Com as sete páginas na Cahiers du Cinéma para “Bowling Saturne” e retrospectiva na Cinemateca Francesa, ela entrava para o panteão do audiovisual gaulês. Agora, só faltam prêmios importantes. Ela tem alguns (poucos) na estante. Nenhum peso-pesado (Palma de Ouro, Leão, Urso, Oscar ou César em “categorias gordas”).

“A Prisioneira de Bordeaux” (“La Prisionnière de Bordeaux”) estreou na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, e foi adquirido pela nascente distribuidora brasileira Autoral Filmes. Quem sabe os fundadores desse promissor empreendimento (Felipe Didoné e sua mãe Marize Didoné, sócios no Paradigma Cine Arte, de Florianópolis) iniciam, mesmo que tardiamente, o lançamento dos principais filmes dessa diretora “apaixonada por western e filmes de suspense”. Na França, vale reforçar, Claude Chabrol (1930-2010) segue como referência máxima (e cult) do segundo gênero.

Isabelle Huppert e Hadsia Herszi já haviam atuado juntas em “As Pessoas do Lado” (“Les Gens d’à Côté”), de André Téchiné, que a Imovision lançará em novembro próximo. Resolveram repetir a experiência. “A Prisioneira de Bordeaux” teve boa acolhida crítica. Já o público foi mais comedido (125 mil ingressos). Mesmo assim, dez vezes mais que “Bowling Saturne” (só 12.500).

Tudo começa com Alma (Huppert), bem vestida e enfeitada com braçada de vistosas flores, chegando em casa, uma mansão imensa na cidade de Bordeaux. Ela pertence, claro, à burguesia e tem tudo ao seu dispor. Só que a veremos, em seguida, num presídio. Ela vai visitar o marido encarcerado. Será neste ambiente, tão distante dos valores burgueses, que ela conhecerá a proletária Mia (Herzi), que visita o namorado presidiário, de origem árabe como ela. Mãe de duas crianças, Mia vive num conjunto habitacional de cidade vizinha a Bordeaux.

Alma observa o “teatro” feito por Mia, quando a impedem, por razões burocráticas, de visitar o companheiro. E se interessa por ela. A ponto de levar a desconhecida à estação de trem. Como já passou da hora das atividades ferroviárias, Alma convida Mia a dormir em sua espaçosa mansão.

Depois, vejam só, arrumará novo emprego para a jovem proletária. Ela se tornará passadeira de roupas na imensa clínica do marido de Alma, médico renomado, que bêbado, matou alguém por atropelamento. Mia aceita a oferta e leva, claro, as crianças. Agindo assim, ela se livrará de parceiro criminal de seu namorado, que exige que ela devolva parte do butin (relógios roubados).

Além do novo emprego e do conforto burguês desfrutado na mansão de Alma (que só contava com a presença esporádica de uma doméstica polonesa), Mia vê as crianças se divertindo com as extravagâncias da anfitriã. Mais uma vez, Huppert compõe sua personagem em registro frio, intelectual, distanciado. E com humor que deixaria Bertoldt Brecht em estado de êxtase. Hafsia Herzi não se intimida e manda ver, em ótimo desempenho.

A relação entre as duas mulheres, que à primeira vista parecia improvável, acaba convencendo o espectador. A solidão da burguesa Alma, cercada de obras de arte e de luxo, ganha tamanho vulto que acabamos acreditando que ela, ao introduzir a passadeira árabe em sua casa (e acompanhada de duas buliçosas crianças), busca atenuantes para sua vida vazia. E se vinga do marido, um homem influente, que gozava a vida cercado de amantes.

Alguns verão “A Prisioneira de Bordeaux” como registro de mais uma relação entre mulher branca e rica (a boa samaritana) ajudando a mulher de origem árabe e pobre a dar um jeito em sua sofrida existência. O filme é muito mais que isso. E traz surpreendentes ingredientes do cinema policial, que tanto atraiu Chabrol.

Significativo atenuante desconstruirá, na “Prisioneira”, o conceito da boa samaritana: a personagem de Huppert é descompensada. Ela também busca sua libertação de um mundo de convenções burguesas, capaz de reduzir a mulher ao papel de dona de casa (e que casa!), ocupada com buquês de flores, cardápios e ordens à empregada de brancura eslava.

De Patricia Mazuy, só vi dois filmes (este e o apavorante “Bowling Saturne”). Vou correr atrás dos outros. E registro aqui: “Boliche Saturno” me deixou tão abalada, que pedi a meu companheiro, Luiz Zanin, que arrumasse algo que me relaxasse os nervos, caso contrário não conseguiria dormir. Ele sugeriu que eu visse mais um capítulo da série mexicana “Acapulco”, com Eugenio Derbez. Aí já era escapismo demais. Optei pelo documentário “Placar: Revista Militante”, que estreará na próxima semana, recheado de deliciosas lembranças de boleiros e jornalistas esportivos sobre a publicação nascida em 1970. Mas não é que os personagens do Boliche Saturno continuaram me roubando o sono?

 

A Prisioneira de Bordeaux
França, 2024, 108 minutos, 14 anos
Direção: Patricia Mazuy
Elenco: Isabelle Huppert, Hafsia Herzi, Noor Elsari, Jean Guerre Souye, Julien William Edimo, Jana Bittnerova, Magne Havard Brekke, Lionel Dray, Robert Plagnol, Julia Vivoni, Lola Jehl
Roteiro: Pierre Courrège, François Bégaudeau e Patricia Mazuy, com a colaboração de Émilie Deleuze
Fotografia: Simon Beaufils
Montagem: Mathilde Muyard
Direção de arte: Dorian Maloine
Figurinos: Caroline Spieth
Trilha sonora: Amine Bouhafa
Som: François Boudet, Jean Mallet, Nathalie Vidal
Distribuição: Autoral Filmes
Circuito exibidor: São Paulo (SP), Santos, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, BH, Aracaju, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Maceió e Porto Alegre. Salas especificadas: @autoral_filmes.

 

FILMOGRAFIA
Patricia Mazuy
Cineasta, roteirista e montadora francesa, nascida em Dijon, em 22 de janeiro de 1960

2024 – “A Prisioneira de Bordeaux”
2022 – “Bowling Saturne”
2018 – “Paul Sanchez Est Venue”
2011 – “Sport de Filles”
2004 – “Basse Normanie”
2000 – “Saint-Cyr”
1999 – “La Finale”
1994 – “Travolta et Moi”
1989 – “Peaus de Vaches”
1984 – “La Boiteuse”

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