Festival de Brasília tem noite de protestos e homenagens

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O festival mais antigo e politizado do país, o de Brasília, teve a noite inaugural de sua quinquagésima-segunda edição marcada por protestos e discursos sob vaias ou interrompido (por corte de microfone). Teve também aplausos para os homenageados da noite, entre eles o ator Stepan Nercessian e a memória do Maestro Cláudio Santoro, cujo centenário de nascimento se comemora hoje (23 de novembro).

Os aplausos, não tão efusivos quantos os verificados no Festival de Cannes (“por 13 minutos”), também se fizeram ouvir ao final da exibição de “O Traidor”, novo filme do italiano Marco Bellocchio, uma legítima coprodução entre o país peninsular e o Brasil, representando pela Gullane, pelos atores Maria Fernanda Cândido (principal papel feminino), Jonas Bloch, Luciano Quirino e Rainer Cadete, e por paisagens do Rio de Janeiro. A cidade mais famosa do Brasil é vista em noites iluminadas (com o Cristo Redentor em destaque), na Praia do Grumari e, também, em ruas simples e no Presídio de Talavera Bruce.

O clima tenso da noite inaugural, somado à duração do filme (145 minutos), pode ter perturbado a fruição do poderoso filme de Bellochio. Mesmo que, no palco, o produtor Fabiano Gullane tenha festejado “a melhor plateia dos festivais brasileiros”. A cerimônia de abertura começou com a costumeira euforia da apresentadora Maria Paula, atriz que integrou o grupo Casseta & Planeta. Vestindo um micro vermelho e proferindo bordões que tentavam levantar o astral, ela foi pega de surpresa pelos acontecimentos. Chamou ao palco dois dos principais patrocinadores. Ambos falaram, com pouco jogo de cintura, das atividades empresariais das instituições que representavam e do apoio ao festival, patrimônio cultural do Distrito Federal. A exibição de dois bons anúncios publicitários, similares ao do Canal Brasil, este sim, projetado na imensa tela do Cine Brasília, teria obtido resultado bem mais satisfatório.

Depois, Adão Cândido, titular da Secretaria de Cultura e Economia do Criativa do DF, e presidente do Festival, iniciou seu discurso de boas-vindas aos convidados, cineastas e atores, e ao público. Mas os protestos começaram. Palavras de ordem se multiplicaram, somando-se a vaias. Os manifestantes cobravam editais do FAC (Fundo de Apoio à Cultura) e apoio ao audiovisual brasiliense. O secretário não se deu por vencido. Levou seu discurso até o fim. Sem que os protestos cessassem.

Maria Paula o convocou a permanecer no palco para entregar um Trofeu Candango especial ao ator Stepan Nercessian, o primeiro homenageado da noite. O ator de “Marcelo Zona Sul”, “Rainha Diaba”, “Xica da Silva” e “Chacrinha, o Velho Guerreiro”, agradeceu o reconhecimento com seu humor costumeiro. Brincou que era a primeira vez que “Brasília homenageava um goiano”, que conhecera a nova capital em seus anos pioneiros e vira, pela primeira vez, uma escada rolante, e que estava feliz em levar um homem, um candango, para casa. Em tom genérico, lembrou os momentos difíceis vividos pelo país e pelo audiovisual brasileiro.

Depois, foram entregues a Medalha Paulo Emílio Salles Gomes ao baiano-brasiliense Fernando Adolfo, da equipe fundadora do Festival, e, no momento mais emocionante da noite, o Prêmio ABCV (Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo) à cineasta, antropóloga e professora da UnB, Débora Diniz. Por encontrar-se em “situação de exílio” (ela foi ameaçada de morte por sua defesa da descriminalização do aborto), a autora do potente “Solitário Anônimo” e de mais sete documentários, todos ligados aos Direitos Humanos, apareceu no telão do Cine Brasília. De algum lugar, no exterior, ela enviou vídeo, gravado por celular, para agradecer o reconhecimento de seus colegas na ABCV. No palco, sua representante, Luciana Brito, do Instituto Anis, recebeu o prêmio das mãos de Daniela Marinho, presidente da ABCV. Que também leu reivindicações do segmento audiovisual e cultural do DF.

Em outro momento emocionante, o Festival evocou três grandes perdas para o cinema brasileiro. A mais recente, a do cineasta Fábio Barreto (“Índia, a Filha do Sol”, “O Quatrilho”), somando-a ao falecimento de Domingos Oliveira, vencedor do Festival de Brasília de 1966 (com “Todas as Mulheres do Mundo”) e o do ator Andrade Jr, um dos mais importantes da história do teatro e cinema brasilienses. Presença constante e ruidosa no festival candango, Andrade morreu meses atrás e deixou alguns filmes em processo de finalização. Num deles, o longa pernambucano “King Kong en Assunción”, de Camilo Cavalcante, ele é o protagonista.

Na última etapa da noite, a equipe brasileira de “O Traidor” subiu ao palco. Em torno da atriz Maria Fernanda Cândido, estavam os produtores Fabiano e Caio Gullane, o cineasta e produtor-delegado André Ristum, que morou na Itália e ajudou Bellocchio na fase de filmagens brasileiras, e o compositor Patrick Jong, que fez a trilha complementar (a trilha principal é do mestre italiano Nicola Piovani).

Os mais atentos perceberam a presença de um rapaz, que permanceu no palco, o tempo todo e em silêncio. Fabiano Gullane lembrou, em seu pronunciamento, que as coproduções da Gullane são fruto de verdadeira troca cultural e artística e não apenas de investimentos financeiros. Tanto que “O Traidor” mobilizou atores, técnicos, cenários e muitas diárias de filmagens em solo brasileiro. Além da Gullane, aparecem nos créditos o logotipo da Ancine, do Telecine e do Canal Brasil.

Quando a equipe de “O Traidor” desceu do palco, o rapaz que não fora apresentado, usou o microfone para ler documento com reivindicações do movimento cultural brasiliense. Ele lembrou que o Audiovisual em Brasília teve redução de 95% das verbas, que, em 2018, edital investira R$12 milhões no setor, mas que, neste ano de 2019, os investimentos haviam caído para apenas R$510 mil. Um segurança subiu ao palco para retirar o rapaz, mas foi convencido por uma jovem, que dirigia a cerimônia, a deixá-lo concluir seu discurso”. O rapaz continuou até que o som do microfone fosse cortado. A plateia protestou aos gritos de “Censura, censura”. Só no final se soube que o “infiltrado” na equipe brasileira de “O Traidor” era Marcelo Pelúcio, ator e produtor brasiliense.

As primeiras imagens de “O Traidor” foram então projetados na tela do Cine Brasília. A história de Tommaso Buscetta (1928-2000), integrante da Mafia siciliana e delator de seus companheiros, resultou em um filme potente e perturbador. O palermitano Tommaso ligou-se à Cosa Nostra na adolescência, cometeu muitos crimes, imiscui-se no tráfico de droga (inclusive de heroína), teve oito filhos (alguns deles com a brasileira Maria Cristina, advogada carioca) e morreu, de câncer, nos EUA, na condição de “testemunha sob proteção” do governo norte-americano.

Duas sequências do filmes, das mais impactantes, tiram o espectador do prumo. Numa delas, vemos Cristina, a personagem de Maria Fernanda Cândido, pendurada num helicóptero em vôo nervoso, sob ameaça de ser arremessada no Oceano Atlântico. Em outro helicóptero, Buscetta assiste a tudo, com o rosto deformado por espancamento da polícia brasileira (isto nos Anos Médici). O objetivo de tal operação seria arrancar dele a confissão de que era o procuradíssimo mafioso italiano, e não o cidadão que, sob nome falso, desposara a advogada brasileira. Tudo acontece com trilha dissonante (e atordoante): o romântico bolero “Historia de un Amor”, do panamenho Carlos Ereta Almarán.

Noutro momento, uma explosão na tela nos tira da cadeira. Um atentado a bomba, a mando da Máfia siciliana, mata o juiz Giovanni Falcone, chefe da operação que desbaratou a Cosa Nostra, colocando seus principais chefes no cárcere.

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