Noite de muitos aplausos para o longa “Piedade” no Festival de Brasília

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

Depois de uma abertura tensa, com protestos e vaias, o 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro encontrou, ao exibir o longa-metragem “Piedade”, do pernambucano Cláudio Assis, e os curtas femininos e feministas “Alfazema”, de Sabrina Fidalgo, e “Carne”, de Camila Kater, plateia calorosa e muitos aplausos.

A primeira equipe a subir ao palco do Cine Brasília foi a da carioca Sabrina Fidalgo, que apresentou “Alfazema”, segunda parte de trilogia concebida para homenagear o carnaval brasileiro, festa da carne e dos sentidos. Além da diretora, subiram no palco as atrizes Shirley Cruz, Bruna Linzmeyer e Bianca Joy Porte, e a diretora de fotografia Júlia Zakia. Um quinteto 100% feminino.

Sabrina, antes de apresentar filme e colaboradoras, registrou contundente protesto contra “o cerceamento à liberdade de manifestação do pensamento verificado no palco do festival na noite anterior”, definiu o governo federal como “autoritário, homófobo, machista e racista” e criticou o desmonte das políticas públicas para o audiovisual. Em seguida, convidou a todos a fruírem um filme realizado por uma diretora negra que não “cultiva o sofrimento, mas sim a alegria dos corpos nos festejos do carnaval”. E arrematou: “estamos cansados de ver filmes nos quais corpos pretos existem para serem supliciados”.

Em seguida, em nome da equipe feminina de “Carne”, subiu ao palco o montador Samuel Mariani. De saída, avisou que era um contra-senso ele, único crédito masculino do filme, representá-lo. Disse ao público que assistiríamos a um híbrido de animação e documentário, que dava voz a cinco mulheres, representando cinco fases (ou situações) vividas no feminino. No debate de “Carne”, Samuel explicou a razão da ausência de Camila Kater, diretora desta inventiva e ousada viagem pelo universo da mulher (o quanto é difícil ser uma criança gorda, a chegada da menstruação, o ser mulher transexual, o climatério e o envelhecimento). “Carne” foi selecionado para o Festival de Documentários de Amsterdã, e sua diretora está lá, na Holanda, participando desta que é considerada a maior competição do gênero, no mundo.

Cláudio Assis subiu ao palco sem contar com a aguardada presença de Fernanda Montenegro, uma das protagonistas de seu quinto longa-metragem, o poderoso “Piedade”. Mas estiveram com ele dois atores que são verdadeiros parceiros de vida cinematográfica (Matheus Nachtergaele e Irandhir Santos), e outros que Cláudio foi conquistando desde que estourou no mesmo Festival de Brasília, com o fascinante “Amarelo Manga” (2002).  Em “Piedade”, os novos parceiros são Cauã Reymond, Gabriel Leone e Mariana Ruggero. Júlia Moraes é a diretora-assistente e, no elenco, está o filho de ambos, o adolescente Francisco de Assis Moraes, bisneto do poeta Vinícius, que estreara em “Big Jato”. Representando a equipe técnica, dois colaboradores muito caros ao diretor nascido em Caruaru: a roteirista Anna Francisco (que trabalhou em parceria com Hilton Lacerda e Dillner Gomes) e o produtor Marcelo Ludwig Maia, da República Pureza.

“Piedade” é um filme que tem muito a dizer. Ele constrói-se sobre três pilares. Primeiro, as trágicas consequências da construção do Porto de Suape, no Recife, que alterou de tal forma o equilíbrio ecológico, que tubarões passaram a atacar banhistas na praia. Segundo: o desalojamento por grandes grupos empresarias (no caso, a Petrogreen) de populações pobres para dar lugar a grandes empreendimentos imobiliários (ou industriais). E, por fim, o universo da pornografia, representado por um cinema pornô, marcado pelo cheiro do sexo barato. De cada um destes núcleos, sai um conjunto de personagens, que veremos em suas complexas relações afetivas.

O executivo paulista Aurélio (Matheus Nachtergaele) chega do Sudeste para trabalhar na Petrogreen. Sua principal missão é retirar de uma praia a família de Dona Carminha (Fernanda Montenegro), composta com os filhos Omar (Irandhir Santos) e Fátima (Mariana Ruggero) e o neto Ramsés (Francisco Moraes). No mundo do sexo, vive Sandro, o personagem de Cauã Reymond, dono de um cinema pornô, que, apesar de jovem e bonitão, é pai de Marlon (Gabriel Leone), integrante de grupo performático e rebelde. O rapaz grava, com seu núcleo de ativistas, protestos visuais, inventivos e desconcertantes, sempre tendo como alvo temático os tubarões que comprovam o desarranjo ecológico no oceano que banha Piedade. Sim, o filme traz no nome uma metrópole fictícia, mas que lembra, em muito, a grande Recife.

Para amarrar estes núcleos, existem as relações familiares ou os novos afetos que vão aparecendo. Aurélio fará sexo com Sandro. No debate, Cláudio Assis, com sua fama de durão, chorou a ponto de embargar a própria voz, ao relembrar fato de sua vida apresentado (a seus três roteiristas) como um dos pontos centrais do argumento de “Piedade”: tivera um irmão (recém-nascido) raptado na maternidade. Este acontecimento marcou profundamente sua vida familiar. No novo filme, algo semelhante se passa na vida de Sandro, personagem de Cauã.

Bicho cinematográfico, Cláudio Assis não é de muita conversa, nem de verbalizar discursos. Dá respostas lacônicas aos jornalistas e não é nem bom narrador de histórias orais, curiosas ou divertidas. Por sorte, tem a seu lado o ator com quem mais trabalhou, o articuladíssimo Matheus Nachtergaele, soma de inteligência reflexiva e bom-humor. Coube ao intérprete do ganancioso Aurélio contar detalhes da escalação de Fernanda Montenegro, na ocasião das filmagens com 87 anos, para o papel da viúva Carminha, dona de um bar na cobiçada praia piedosa.

“Quando Claúdio me apresentou a história de ‘Piedade’ e os personagens do filme”— lembrou —, “eu sugeri que ele convidasse Fernanda Montenegro para interpretar Dona Carminha”. Na hora, Claudião retrucou — “como é que eu vou chegar a ela?”. Deixa comigo, propôs Matheus.

Cláudio Assis e Matheus Nachtergaele no debate de "Piedade" © Mayangdi Inzaulgarat

“Como fiz vários trabalhos com Fernanda”— justificou —, “procurei-a para explicar o desejo de Cláudio Assis de tê-la no elenco de seu novo filme”. E, “para meu espanto, ela não pediu tempo para ler o roteiro, nem nada. Disse que conhecia os filmes do Cláudio, que tinha enorme respeito pelo trabalho dele e que aceitava fazer o filme”. E mais: “queria se integrar à equipe de forma horizontal, sem nenhum privilégio, ficar no mesmo hotel (“Sem nenhuma frescura, sem motorista particular”, explicou Claudião, em breve interrupção no relato de Matheus). “Ela sabia”— prosseguiu o ator — “do caráter social do trabalho do Cláudio e fazia questão de vivenciá-lo com (e como) os outros atores”.

Matheus Nachtergale fez, ainda, registro que julga fundamental: “Fernanda Montenegro é uma dessas raras atrizes que tiveram o privilégio de fazer todos os grandes textos do teatro, os nacionais e os internacionais. Ela, Nathalia Thimberg e Laura Cardoso desfrutaram deste privilégio que outras gerações não tiveram, nem terão”.

O ator, que pela primeira vez foi convocado por Cláudio para fazer não o papel marginal (como o Dunga, de “Amarelo Manga”), mas sim de “um executivo ultracapitalista”, resolveu, depois de animada gargalhada, avançar em seu relato: “Dona Fernanda adora ‘trabalho de mesa’. Sempre fez isto no teatro e no cinema. Cláudio Assis nunca usou ‘trabalho de mesa’ em seus filmes. Entusiasmei-o a aceitar esta prática, já que para ela, Dona Fernanda, era tão importante. Iniciamos o trabalho com o roteiro na mão, não numa mesa (risos), mas sim numa varanda. Ela de lápis na mão, fazendo anotações. O Claudião ali, fazendo de conta que estava muito interessado. Como o processo era longo, ele saía, ia beber um uisquinho, voltava e o trabalho de mesa (ou de varanda) continuava”.

O fecho desta história leva Matheus a momento de intensa alegria: “quando o trabalho de mesa terminou, Dona Fernanda se virou para o Cláudio e perguntou: então, senhor diretor, o que achou?” Ao que ele respondeu: “fulano está ótimo, sicrano também, e tal… Mas a senhora, Dona Fernanda, tem que melhorar o sotaque” (todos caíram na gargalhada, incluindo o cineasta).

“Piedade” foi filmado em 2017, sua finalização iniciada, mas teve seu processo de conclusão e lançamento adiados. Cláudio Assis explicou por que: “tive um AVC e paramos tudo”. Agora, em parceria com a Arthouse, distribuidora de seu produtor Marcelo Ludwig Maia, ele lançará seu quinto longa-metragem em abril de 2020.

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