Terceira noite do Festival de Brasília tem “A Febre” e novos protestos

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

Os protestos voltaram a dar o tom na terceira noite do 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Ao apresentar o longa-metragem “A Febre”, de Maya Da-Rin, o produtor Leonardo Mecchi leu, na íntegra, “Carta dos Artistas Brasilienses”, que o ator Marcelo Pelúcio lia no palco, na noite inaugural, quando seu microfone foi cortado e emudecido.

Mecchi explicou que “a equipe de filme (“A Febre”) se posicionava contra todo e qualquer cerceamento à liberdade de manifestação do pensamento”. Antes dele, as equipes dos dois curtas da mostra competitiva — o pernambucano “Caranguejo Rei”, de Enock Carvalho e Matheus Farias, e o paraense “Ari y Yo”, de Adriana de Faria — já haviam registrado seus protestos contra “o desmantelamento das políticas públicas de fomento ao cinema brasileiro empreendido pelo Governo Federal”.

Maya Da-Rin, diretora, produtora (em parceria com Mecchi, pelo Brasil, e coprodutores da França e da Alemanha), também registrou seus protestos contra “as tentativas de desmantelamento do audiovisual brasileiro”, para agregar, já que os protagonistas de seu filmes são indígenas da etnia Desana, o quanto preocupam as novas diretrizes do atual governo ”abertamente contra os povos indígenas”.

“A Febre”, segundo longa-metragem de Maya Da-Rin, filha dos cineastas Sandra Werneck e Sílvio Da-Rin, é uma das produções brasileiras que mais atenção vem despertando em festivais internacionais (e nacionais). Ficção com forte pegada documental, o filme estreou em agosto último no Festival de Locarno, na Suíça, no qual conquistou três prêmios (Fipresci, da Crítica Internacional, de organismo ambiental e o Leopardo de melhor interpretação masculina para seu protagonista, o indígena Regis Myrupu).

Mypuru, que não é ator profissional, interpreta o indígena Justino. Demitido de trabalho, ele torna-se vigia no porto de cargas de Manaus. Viúvo recente, ele vive com a filha Vanessa (jovem auxiliar de enfermagem, interpretada pela indígena Rosa Peixoto). Ela passa no vestibular de Medicina da UnB (Universidade de Brasília) e prepara-se para deixar a família (e sua Manaus) e seguir para a capital federal. Enquanto isto, Justino é tomado por uma estranha febre. O filme, de pegada sensorial, dialoga com realizações que têm em Apichatipong Weerasethakul seu nome mais emblemático.

O segundo longa-metragem de Maya segue, em dezembro, para mais dois festivais: o de Marraquesh, no Marrocos, e Havana, em Cuba. O que significa que, no prazo de cinco meses, ele foi exibido em 30 festivais. Ganhou dez prêmios, incluindo o de melhor filme em Biarritz, na França, e de Pingyao, na China (festival criado pelo cineasta Jia Zhang-Ke). Em Chicago, foi premiado pela melhor direção. Em Mar del Plata, melhor ópera-prima (filme de jovens estreantes), dividido com produção chilena.

“A Febre” é fruto de longas pesquisas, iniciadas por Maya Da-Rin em 2006, quando ela realizou o média-metragem “Margem”, e sequenciadas em 2009, com seu primeiro longa, “Terras”. A cineasta e roteirista apaixonou-se pela Amazônia e, em especial, pela cidade de Manaus, “onde se verifica convivência muito próxima entre a indústria e a imensa floresta”.

A jovem diretora se aproximou de muitas famílias indígenas ao longa dos sete anos consumidos na escrita do roteiro de “A Febre” (que contou com a colaboração do antropólogo Pedro Cesarino e do cineasta Miguel Seabra Lopes). Uma das famílias com as quais conviveu era composta com pais e duas filhas, uma, técnica de enfermagem, e outra, policial.

Depois de intensas pesquisas in loco e da estruturação da base ficcional de sua narrativa, Maya mobilizou pessoas interessadas em atuar no filme. Um total de 500 mulheres e homens se apresentaram para testes. Foram feitas as primeiras seleções e deu-se, ao final, processo de imersão durante três dias, em que atores potenciais interpretavam determinados personagens, recorriam a improvisos e davam sua colaborações ao roteiro.

Regis Myrupu não veio a Brasília, pois está representando o filme em festival na Europa. Mas sua “filha” (na ficção) Rosa Peixoto veio e contou que foi “difícil concentrar-se nas cenas realizadas com seu pai ficcional, pois Regis é muito brincalhão, fazia graça com tudo”. Para agravar, “Manaus é um cidade muito barulhenta, o que perturba nossa concentração”. Mas, no final, “deu tudo certo”.

Para transformar “A Febre” em um filme de muitas qualidades e ousadias, Maya Da-Rin contou com a expertise de Leonardo Mecchi (do também inventivo “Los Silencios”, de Beatriz Seigner) e de profissionais de primeira linha, caso da fotógrafa uruguaia (radicada no Brasil) Bárbara Álvarez (colaboradora de Lucrécia Martel), da montadora Karen Akerman, da diretora de arte Ana Paula Cardoso e dos operadores de som Felippe Schultz e Breno Furtado.

O filme deve estrear no primeiro semestre de 2020, mas Maya e Mecchi aguardam liberação de recursos oriundos de edital de distribuição, no qual foram aprovados, mas cujos recursos ainda não foram liberados pela Ancine. Faz parte do plano de distribuição do filme, sob responsabilidade da Vitrine, promover pré-estreia nas comunidades indígenas do Alto Rio Negro, que participaram do filme, e em Manaus. “Só poderemos fazer isto”— explica Maya — “se contarmos com apoio de distribuição, devido ao custo do transporte de equipamentos para as longínquas comunidades indígenas”.

Os dois curtas da noite chamaram atenção pelo contraste. “Caranguejo Rei” dialoga com o cinema de horror. Na cidade do Recife, a especulação imobiliária destrói o meio-ambiente e transforma caranguejos em seres mutantes (eles saem do ambiente úmido do mangue para o asfalto e interior de prédios). Numa empresa, um executivo vê uma ferida misteriosa crescer em seu braço. Outro homem, interpretado pelo ator (e diretor de “Batguano” e “Sol Alegria”) Tavinho Teixeira, sofre significativa metamorfose. Com trabalho de som vertiginoso, o curta dialoga com filmes de monstros, como “O Hospedeiro”, o primeiro blockbuster de Bong “Parasita” Joon-ho.

No caminho oposto, caminha o documentário “Ari y Yo”, que tem em sua diretora, a jovem Adriana Faria, uma verdadeira “faz-tudo”. Ela, que formou-se em Publicidade, resolveu fazer um curso de Cinema na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Recebeu como tarefa acadêmica empreender prospecção no entorno da instituição utilizando o mínimo de equipamento possível. Tal empreitada a levou a Pueblo Textil, um pequeno povoado, outrora sede de grande fábrica de tecidos norte-americana.

Sem falar espanhol, Adriana resolveu praticar o idioma com uma menina de 9 anos, a esperta e agitada Ari (Arislay Hernández González). Além de aprender um pouco de castelhano, a brasileira queria ensinar algumas palavras em português à menina. Saiu com uma câmera de filmar e um aparelho de captação de som (que acabou sendo manipulado pela inquieta Ari). Por isto, além de diretora, Adriana assina a fotografia, a operação de câmera, o roteiro e a produção de seu primeiro curta-metragem.

A menina cubana é um dínamo, bicho solto, que entra em cavernas e descobre saídas, corre pelas ruas e pelos pátios dos prédios, anda de patins com as colegas, leva a paraense para conhecer os rosados porcos locais (o gado suíno é uma das bases da alimentação na Ilha). Enfim, vive infância que moradores de grandes cidades foram proibidos de viver. Ari é muito inteligente, falante, articulada. É capaz, até, de definir, com rara síntese, conceitos abstratos como o de “imaginação”. Um filme singelo e tocante, que foi muito aplaudido.

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