Afinal, o que é a narrativa? (parte 2)

Dois grandes desafios são colocados diante dos roteiristas quando ele começa o trabalho de escrever um roteiro de ficção. Esses dois desafios são colocados de forma objetiva; um trata do desenvolvimento da história, como ela será concisa em cenas e diálogos, e o outro é a forma como essa história será mostrada, que discurso terá.

Como expliquei no primeiro artigo, a tão falada Narrativa é formada exatamente desses dois níveis de trabalho e análise, o da história e outro do discurso. Ela é formada pelo cruzamento entre esses dois níveis, tendo o tempo como o eixo central dessa cisão. É no manuseamento dos tempos que conseguimos distinguir o que são os elementos do tempo da história que serão utilizados na escritura do texto. De um lado, o roteirista tem em suas mãos ferramentas do discurso, que determinam a estrutura, a duração e velocidade da obra, como a divisão de cenas e sequências. E do outro, um lugar por onde os personagens transitam, agem e se relacionam em um campo diegético e enunciativo, que é a historia e seus tempos internos da ação.  Esses dois níveis possuem elementos que, juntos, formam o corpo do texto do roteiro. Daí a necessidade de descobrirmos quais são essas principais ferramentas e para que servem à carpintaria do roteiro.

Neste artigo, vamos tratar de um elemento muito importante no nível da história; a Manipulação. O que é a manipulação na narrativa e qual a sua importância para o conhecimento e o desenvolvimento da história e de seus personagens? A manipulação está inserida dentro do nível narrativo do Percurso Gerativo do Sentido – o aspecto global de teorias de um texto, que tem outros elementos do nível da história, como a Ação e a Sanção (que iremos tratar em outros artigos) –, e trata diretamente da relação entre os personagens. A manipulação é a forma com se dá a relação de um personagem sobre o outro. Toda ação, presente em cena ou não, é uma forma de manipulação. Todo contrato e seus desdobramentos é realizado através da manipulação de um personagem sobre o outro.

Em filmes como “Central do Brasil”, a manipulação entre a senhora Dora e o garoto Josué acontece ao longo do texto, do primeiro encontro à cena final, de maneira muito sutil. É a relação entre os dois, a manutenção do contrato entre eles, que move a história e o discurso de todo o texto do roteiro. Dora é uma senhora sozinha, sem família, e encontra um motivo para deixar sua vida sem sentido no Rio de Janeiro e parte com Josué, um garoto que perde a mãe e fica sem ninguém, e precisa realizar uma jornada em busca de seu objetivo. Os dois estranhos partem para a busca do pai do garoto no nordeste do Brasil, em um grande embate de aproximação e repulsa entre os si. A manipulação perfeita só é bem-sucedida quando há um jogo de valor e cumplicidade entre o manipulador e o manipulado. Tanto Dora quanto Josué irão mostrar um ao outro seus valores para se conquistarem mutuamente.

A manipulação é um elemento da narrativa que permite ao roteirista analisar a performance de seus personagens de outra forma que não seja pela história ou pelo seu arquétipo. Na estrutura narrativa existe uma maneira de observar os elementos da história através de um jogo de desejos e poderes em relação a um sujeito e um objeto ou objetivo, onde forças de conjunção e disjunção irão movimentar a ação. E nesse jogo insere-se a manipulação. Segundo os teóricos, esses aspectos estão presentes em qualquer texto de ficção. Em filmes como “Estômago”, por exemplo, essa manipulação é explícita: o principal programa narrativo é a necessidade de o personagem principal conquistar as pessoas, e o poder através da comida que ele prepara. Ele manipula os outros pelo estômago.

Existem algumas formas clássicas e explícitas de manipulação: sedução, intimidação, provocação e tentação. Tanto em “Central do Brasil” como em “Estômago”,  temos diferentes níveis de manipulação, passando da provocação e intimidação, para uma de sedução e obrigação com o contrato firmado. A quebra de contrato entre Nonato e a prostituta que o trai com seu patrão em “Estômago” é o que o torna assassino, é o motivo de ele estar preso. Assim como ele manipula os presos para obter privilégios, e a prostituta para obter uma parceira, ele também é manipulado por eles, tanto a prostituta quanto os presos tiram proveitos de seus talentos culinários. No caso de “Central do Brasil”, a manipulação acontece no nível emocional, onde uma criança e uma “velha” podem ceder, para serem úteis um ao outro. Essa análise da manipulação fica mais precisa quando dominamos a noção do que seja o Esquema Narrativo, uma área onde a história se organiza em forma de percurso e programa narrativo, e onde estão classificados os papéis de cada personagem, os motivos de suas ações e da busca de seus objetivos. É um estudo realizado primeiro por Propp e depois atualizado por Greimas, que tenta mostrar que o sentido buscado no texto com essas teorias é o mesmo sentido da vida. Enquanto a filosofia estuda o sentido da vida, a narrativa vista dessa forma estuda a vida do sentido, o ser do sentido.

 

Hermes Leal é escritor e documentarista, Mestre em Cinema pela ECA/USP, especialista em roteiro e semiótica, e autor do romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros livros.

4 thoughts on “Afinal, o que é a narrativa? (parte 2)

  • 20 de outubro de 2011 em 21:12
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    Legal Hermes essa proposta de artigos sobre narrativa e roteiro. São como aulas à distância. Li os dois agora e salvei para repassar pros meus alunos.
    Um abraço,
    Bertrand

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  • 1 de novembro de 2011 em 02:05
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    Muito bacana os dois textos sobre narrativa. Aprendi bastante.

    Gracielle

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  • 1 de novembro de 2011 em 04:32
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    Muito bom! Mas onde tem o link da primeira parte?

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    • 1 de novembro de 2011 em 12:40
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      A primeira parte do artigo de Hermes Leal está em Colunas > Artigos > Hermes Leal

      Resposta

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