“Estranhos Normais”
Gabriele Salvatores é um importante diretor teatral de vanguarda italiano dos anos 70. No final dos anos 80, com o nome estabelecido nos meios teatrais, Salvatores, deixa o teatro de lado e migra para o cinema. Em 1991 realiza “Mediterrâneo”, produzido entre outros por Silvio Berlusconi, que o projetou internacionalmente com a conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro. No cinema, contudo, Salvatores tem uma trajetória oscilante, com trabalhos que geram desconfiança crítica: os italianos não notam em seus filmes a ousadia vanguardista impressa em suas peças teatrais. Passados pouco mais de 20 anos no cinema, seu filme mais recente, “Estranhos Normais” (2011), tem como ponto de partida o diálogo com o teatro, com a adaptação de peça homônima de Alessandro Genovesi.
Da peça de Genovesi “Estranhos Normais” traz para o cinema um tema tratado e bem explorado na literatura e no teatro: o inextrincável fio que liga ficção e realidade e como este interfere no processo criativo. Enzio Colanzi (Fabio De Luigi) é um escritor que decide fazer o roteiro de um filme. Para tanto, ele precisa de uma história que lhe dê inspiração. Fechado em seu loft em Milão, ele se vês às voltas com uma crise criativa. Até que, casualmente, ele encontra duas famílias neuróticas que lhe dão o tema para o que deseja escrever.
As duas famílias de origens sociais distintas (uma de classe média com aspirações esnobes e a outra ascendente, mas segregada dos grupos sociais em destaque) se encontram quando seus filhos adolescentes resolvem subitamente se casar. Enzio, com isso, começa a explorar todas as possibilidades que a situação lhe oferece. Mas, importante no desenvolvimento que Salvatores dá à narrativa, se os universos sociais em que as famílias transitam são distintos, o universo no qual Enzio se insere também é distinto dos delas e isso acaba para interferir na maneira como ele concebe os personagens, que acabam por fugir às suas tentativas de caracterização.
O filme então passa a ser conduzido como um interessante exercício de metalinguagem, num estilo que se serve do método adotado pelo dramaturgo Luigi Pirandello: enquanto Enzio vê os personagens escaparem de seu controle, os personagens correm, em movimento inverso, atrás do escritor em busca de um universo ficcional. Da mesma forma que na peça de Pirandello, “Seis Personagens a Procura de um Autor” (1921), em “Estranhos Normais” pode-se bem trocar o mote de que a arte imita a vida pelo de que a arte imita a arte.
No script inicialmente escrito por Enzio, a ideia de apresentar uma história de amor entre adolescentes. Mas os personagens interferem em sua escrita em busca de melhores papéis. E isso é feito pela repetição de seus próprios comportamentos quando estão distantes de Enzio. Tudo se passa como se não houvesse qualquer separação entre os personagens que seriam retratados no roteiro e suas próprias vidas. Como Pirandello, Salvatores poderia ter colocado Enzio numa posição de neutralidade, mas ele não o fez: Enzio se envolve com os personagens ao mesmo tempo em que explica diante da câmera seus medos e que a vida é um filme na mesma medida em que o filme é uma vida.
O que se tem em “Estranhos Normais”, e na proposta de Salvatores, é a tentativa de colocar fronteiras imprecisas na separação entre arte e vida, entre ficcional e o real. Exercícios de metalinguagem não são novos no cinema. Lembro de “Os Olhos da Cidade São Meus” (1987), de Bigas Luna, “O Bebê Santo de Mâcon” (1993), de Peter Greenaway, ou mesmo no cinema italiano “A Volta do Capitão Tornado” (1990), de Ettore Scola. Esses experimentos cinematográficos, contudo, perderam espaço em nome de um cinema que se tornou cada vez mais “realista”.
A se destacar na proposta de Salvatores, portanto, a preocupação de retomar um tipo de cinema que escapa às convenções atuais. “Estranhos Normais”, de fato, parecer um objeto estranho. Em primeiro lugar é uma comédia italiana que escapa ao universo das comédias italianas. O cinema italiano, vale lembrar, se destaca pela força das comédias de costumes, como as de Mario Monicelli. Além disso, “Estranhos Normais” é uma comédia que dialoga com o teatro e o próprio cinema: Salvatores explora muito de Wood Allen, principalmente de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977), e a trilha de Simon e Garfinkel traz à lembrança “A Primeira Noite de um Homem” (1967).
Naquilo que oferece “Estranhos Normais” é um filme que não desagrada e, ainda, diverte com um humor inteligente. Uma sequencia noturna em preto e branco, na qual são exibidos rostos e lugares milaneses desconectados da narrativa central, tendo ao fundo uma melodia de Chopin, é o elemento mais belo que se pode destacar no filme.
Por Humberto Pereira da Silva