O tédio e o mundano

O cinema de Jim Jarmusch sempre foi algo pós-punk. Quer dizer: um cinema não mais exatamente revoltoso ou militante, mas melancólico, algo mais para um tédio (neo) existencialista. Seus personagens se veem sem rumo, cansados, desinteressados, embora não exatamente derrotados ou deprimidos. Eles vão buscar alguma coisa, alternativas, certo reencontro com uma mundanidade.  Os filmes fazem então retratos, contextualizações, se promiscuem com o pop, o artifício, diversas formas de entretenimento; incorporam o enfado de um olhar atento e até certo ponto desejoso, porém incapaz, ao menos inicialmente, de se fascinar com o mundo.  De “Flores Partidas” (2005) para o novo “Amantes Eternos”, passando pelo pouco conhecido “Os Limites do Controle” (2009), este olhar jarmuschiano talvez esteja ao mesmo tempo mais entediado e melancólico, de um lado, e atento ao mundano, do outro.

Jarmusch agora nos apresenta o reencontro de dois amantes: Eva (Tilda) e Adão (Tom Hiddleston, o Loki de “Os Vingadores”). Eles são vampiros. Amam-se há séculos. Eva estava em Tânger, no Marrocos, um local marcado pelos expatriados do Novo Mundo que ali se estabeleceram em busca de uma existência mais livre. Adão fez carreira na indústria fonográfica, entre Paris e Detroit, berço da industrialização automobilística americana em vias de sucateamento – aliás, ambas as cidades, românticas, embora decadentes, ajudam Jarmusch a intuir o tom da trama. Adão é um fastio secular e ambulante. Eva retruca: “não adianta ficar assim, no final das contas, o que vale é dançar”. O reencontro entre eles tem gosto de recomeço.

O filme tem um jeitão de thriller, mas requer um tipo diferente de envolvimento do espectador. “Amantes Eternos” é um filme de ação sem ação. Não interessa o enredo. Tampouco sua resolução. É neste sentido bem curiosa a relação que Jarmusch alimenta com o cinema de gênero. Se, por um lado, os códigos já amplamente assimilados dos filmes de vampiro estão todos por lá, do outro, não só não se mergulha no gênero por inteiro, como parece por vezes rechaçá-lo. Talvez seja ainda mais complicado. Quer dizer, não se trata de um movimento que nos traz para mais perto e depois, sorrateiramente, nos tira o chão. Não é bem isso. Nunca nos sentimos realmente em casa em “Amantes Eternos”. Tampouco nos sentimentos verdadeiramente desconcertados.

Aos poucos, uma estranha dicotomia de mortos prevalece. Os zumbis são mortos reanimados, sem rumo, sem vida. Para Adam, somos todos zumbis, e, como tal, merecemos sua aversão. Os vampiros são eternos sobreviventes, seres humanos transformados, imortais, porém, atados ao mundo, ao vício do sangue. Adão e Eva são personagens que enxergam a história em uma linha temporal justamente porque passaram por tudo, embora a partir das margens, das sombras, em segredo. A imortalidade, contudo, nada mais é do que o amargo privilégio de já ter visto tudo. O amargo fica, claro, por conta de Adão. Sua imortalidade é como a constante reafirmação de uma impotência diante das grandes questões, e da crescente corrosão (moral, artística, social etc) do mundo contemporâneo. Eva tenta confortá-lo. Ela é mais serena e ainda consegue ater-se ao instante, à fruição de prazeres efêmeros. A arte, sobretudo a música, emerge quase sempre como única escapatória.

É tudo bem, realmente, jarmuschiano. Mais do que isso. É tudo bem metafórico, a começar pelo nome dos personagens – que o cineasta insiste não ter como inspiração a “Bíblia”, mas um livro de Mark Twain. Tudo neste filme simboliza outra coisa, maior, mais profunda. Um certo esquematismo se faz transparente. “Amantes Eternos”, apesar da vibração poderosa de algumas de suas locações, das comoventes interpretações de seus protagonistas, da beleza plástica de suas acinzentadas imagens, de seus momentos de poesia sobre o nada, mostra-se excessivamente cauteloso na administração de seus temas e proposições formais.

Amantes Eternos / Only Lovers Left Alive
EUA, 106 min., 2013)
Direção: Jim Jarmusch
Distribuição: Paris Filmes
Estreia: 14 de agosto

 

Por Julio Bezerra

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