Mostra de Ouro Preto premia “Paraíso”, filmensaio de Ana Rieper, que reflete com humor sobre mazelas brasileiras

Foto: Ana Rieper com o Troféu Vila Rica © Leo Fontes/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto (MG)

“Paraíso”, da carioca Ana Rieper, conquistou o Troféu Vila Rica de melhor filme da primeira mostra competitiva da Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, que encerrou sua vigésima edição em noite de muita festa e bom-humor. No caso, o de Charles Chaplin e seu eterno Carlitos, pois o público assistiu à exibição de um clássico da era silenciosa — “O Garoto”, com acompanhamento musical ao vivo.

Nem o frio da montanhosa Ouro Preto, em especial do Cine Praça, situado ao ar livre, entre estátua de Tiradentes e o imponente Museu da Inconfidência, desanimou a galera. A noite foi dominada pelo riso. O que era esperado, já que o tema desta edição do festival foi “O Humor das Mulheres no Cinema Brasileiro”

Ana Rieper recebeu o Troféu Vila Rica das mãos de Ângelo Oswaldo, prefeito, pela terceira vez, da primeira capital mineira. O júri que premiou “Paraíso” reuniu trio afinado, composto pelos pesquisadores Sheila Schvarzman, Alex Calheiros e Marcus Mello. Coube a Sheila, também professora universitária, ler a justificativa da escolha do documentário de Ana Rieper como o concorrente que “melhor ressignificou o uso de imagens de arquivo”.

Para os jurados, “Paraíso” é um filmensaio que “propõe interpretação do Brasil a partir de imagens cinematográficas de diferentes origens”, uma realização capaz de dialogar com “a rica tradição de pensamento crítico de intelectuais brasileiros”. E mais: além de trazer “rigorosa pesquisa em arquivos públicos”, o documentário aposta na “inventividade, humor, indignação e empatia” em seu instigante processo de organização de imagens.

Ana Rieper, diretora de “Vou Rifar meu Coração”, “Clementina” e “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina”, construiu seu novo filme a partir de quatro elementos constitutivos: 1. estudos (narrativas) de pesquisadoras que analisaram o Brasil a partir da vida doméstica, 2. rica trilha musical, 3. trajetória de personagens (uma obstetra afro-brasileira, um grande proprietário de terras, um casal de pastores evangélicos, uma devota de São Jorge, entre outros) e 4. intensa recorrência aos mais diversos arquivos brasileiros.

O ‘filmensaio’ de Rieper quer entender as razões da iniquidade brasileira. Por que o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do mundo? Por que fizemos tão pouco para superar a herança do colonizador, que fundamentou sua ação na brutal exploração do trabalho de escravo?

Para buscar resposta a questões tão complexas, a cineasta recorreu a fragmentos de filmes da era silenciosa (como o gaúcho “Os Óculos do Vovô”) e — sem cerimônia — a trechos de pornochanchadas. Recorreu, também, a cinejornais e, em especial — e com mais empenho — a materiais das TVs Câmara e Senado.

“Eu quis” — admitiu a cineasta em debate de seu longa-metragem na Cine OP— “apostar na estética do excesso, deslegitimar esses arquivos, buscar o desconforto e, até, o deboche”. Afinal, Rieper e muitos de seus personagens não acreditam na “miscigenação harmoniosa”, um dos conceitos que embasam a obra de Gilberto Freyre.

Em seu dia derradeiro, antes da festa de premiação de “Paraíso”, o núcleo reflexivo da Mostra de Cinema de Ouro Preto dedicou espaço nobre ao centenário de nascimento do cineasta argentino Fernando Birri (1925-2017) e debateu dois projetos de difusão do cinema do passado — o Cannes Classics, realizado há 21 anos pelo Festival Internacional de Cannes, e o Festival Lumière, criado em 2009, para projetar filmes antigos (“de patrimônio”) em Lyon, terra de Louis e Auguste Lumière. Considerados os criadores do cinema.

Fernando Birri, diretor do clássico “Los Inundados” (1961) e do vanguardista “ORG” (1979), foi — além de diretor, roteirista, poeta e titeriteiro (manipulador de bonecos) — um incansável educador de centenas de alunos cinematográficos. Ajudou na criação da Universidade do Litoral, em Santa Fé, sua cidade natal, na conceituação do curso de Cinema da Universidad de los Andes, na Venezuela, e estabeleceu as bases da Escola Internacional de Cinema e TV de San Antônio de los Baños, em Cuba, ao lado de Gabriel García Márquez.

Para homenagear Birri, a Cine OP exibiu dois de seus filmes — o média-metragem “Tire Dié” (“Atire Dez Centavos”), projeto coletivo que ele comandou com 88 estudantes em 1957-1958, lançado em 1960, e o curta “Fernando Birri – Aprender Fazendo”, de Pablo Rodriguez Jáurequi, produção recente. E reuniu, em debate moderado por Maíra Norton, da Rede Kino, a pesquisadora argentina María Sílvia Serra, da Universidad Nacional de Rosario, e o brasileiro Cleber Eduardo, um dos curadores do festival mineiro.

Sílvia concentrou sua análise no trabalho cinematográfico de Birri e seus discípulos na criação de “Tire Dié” e sua imensa contribuição à formação de futuros cineastas e roteiristas. E lembrou que o santafesino conseguiu, em seu primeiro intento, produzido de forma coletiva, alcançar resultado espantoso. “Tire Dié” é “um filme simples e complexo, caloroso e belo, realista e poético, capaz de mostrar a pobreza e a dignidade”. Enfim, “um filme de denúncia, um manifesto que deu voz a quem não tinha voz”.

Cleber Eduardo lembrou que Birri lançara uma primeira versão de “Tire Dié” em 1959, com 59 minutos. O som captado num velho gravador Geloso, marca italiana, era tão deficiente que ele resolveu remontar o filme e correr atrás de solução para a precariedade técnica dos depoimentos (de crianças e adultos de miserável favela de Santa Fé). A narrativa foi reduzida a 33 minutos e os testemunhos narrados por duas vozes (uma masculina, outra feminina).

O documentário de Birri encantou o mundo e passou a figurar em antologias de filmes dedicados à infância pobre e desassistida, ao lado de “O Garoto”, de Chaplin, “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica, e “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rossellini. Cleber filia “Tire Dié” à tradição do “realismo cruel” de Rossellini. Birri teria optado pelo diálogo com essa matriz, e não pelo “realismo redentor” de De Sica.

No encontro com o francês Gerald Duchaussoy, atividade integrante do calendário do Ano Brasil-França, o público da Cine OP ouviu do programador de Cannes Classics e do Festival de Lyon narrativa realista sobre as inúmeras dificuldades enfrentadas por quem se dispõe a resgatar e programar filmes do passado. Os chamados “clássicos do cinema”.

José Quental, um dos curadores da Mostra de Cinema de Ouro Preto, colocou para Duchaussoy duas questões-chave: “Como dar visibilidade ao Cinema de Patrimônio?”, Ele constitui-se como “Vitrine Cultural ou Mercado Real?”

O Cannes Classics e o Festival Lumière têm servido (junto com Veneza Classics e Berlim Classics) como importantes plataformas de relançamento de filmes antigos. Mas as dificuldades, na compreensão do francês, continuam imensas. Exceção para os filmes hollywoodianos, pois a preservação audiovisual nos EUA sempre foi a mais eficiente e organizada. E eles, os filmes, contam com admiradores fiéis e numerosos.

Nesse ano, uma das ‘majors’ da poderosa indústria audiovisual estadunidense ofereceu cópia tinindo de nova de “Em Busca do Ouro”, de Charles Chaplin, ao segmento de Cannes destinado à memória do cinema. O filme está comemorando seu centenário de lançamento. A exibição foi um sucesso. Mas produções vindas de outros países não costumam atingir êxito semelhante.

Exibição de “O Garoto”, de Charles Chaplin © Leo Lara/Universo Produção

“Na maioria dos casos”, lembrou Duchaussoy, “faltam cópias restauradas e — o que constitui o maior desafio — esses títulos não conseguem mobilizar o interesse do público, que os desconhecem”. São, afinal, produções oriundas de cinematografias não-hegemônicas. Caso de apostas recentes feitas por ele em títulos clássicos do Sri Lanka, Colômbia, Iraque e até mesmo do Brasil.

O programador de Cannes Classics contou que esta mostra francesa recebe, anualmente, oferta de 200 longas-metragens de ficção e de 80 documentários. Estes contam a história do cinema, de um filme ou de um realizador.  Na edição de Cannes 2025, que teve o Brasil como país homenageado (no Mercado de Filmes), nossa representação no segmento “Classics” se deu com o documentário “Para Vigo me Voy”, sobre a trajetória do cineasta Carlos Diegues. “Temos mantido” — assegurou Duchaussoy — “ótimo diálogo com o produtor Diogo Dahl, responsável pelo filme selecionado”.

A Revista de CINEMA perguntou ao programador de Cannes Classics por que nenhum dos filmes do soviético Sergei Eisenstein fôra programado para a mostra deste ano, já que “A Greve” e “O Encouraçado Potenkin”, ambos lançados em 1925, estão comemorando seu centenário. Assim como “Em Busca do Ouro”, de Chaplin.

Seria a exclusão dos dois filmes, momentos luminosos do Construtivismo Soviético, fruto do embargo à Rússia, em guerra com a Ucrânia? Assim sendo, ao invés de punir Putin, o festival francês não estaria punindo Eisenstein?

Duchaussoy não deu muita trela ao assunto. Ou seja, à injusta ausência do genial Sergei Eisenstein (1898-1948) da edição 2025 de Cannes Classics. Foi seco em sua resposta: “Nenhuma inscrição de filmes russos foi submetida a nós”. Além do mais, “não temos espaço para comemorar todos os centenários ocorridos a cada novo ano”.

Anos atrás, o Festival de Veneza transformou seu segmento dedicado aos clássicos em poderosa vitrine de relançamento de “Vá e Veja”, de Elem Klimov (1984). O épico soviético foi eleito “a melhor obra restaurada” daquela edição. E, em seguida, eleito como “um dos melhores e mais inovadores filmes de guerra da história do cinema”.

Gerald Duchaussoy também não deu muita trela ao feito da mostra Veneza Classics. Só esclareceu que “Cannes Classics não premia o melhor entre os filmes restaurados que programa”. Em compensação, reafirmou, é defensor juramentado do resgate de filmes clássicos. “Vou às escolas, em especial às de Lyon, converso com os alunos sobre a importância das obras do passado, os estimulo a irem ao cinema para vê-los, estejam em nossas seleções ou num cinema de arte e ensaio. Ou mesmo na TV ou no streaming”.

Para admitir, por fim: “os filmes que esgotam a capacidade plena de suas sessões, tanto em Cannes Classics, quanto no Festival Lumière, costumam ser aqueles que trazem astros em seus elencos. Ou contam com diretores famosos. Um Kubrick, por exemplo”. Como se vê, a poderosa indústria hollywoodiana domina o mercado de filmes novos e, também, o mercado de filmes do passado.

FLASHES OURO-PRETANOS:

. SALA JOAQUIM PEDRO – Durante a XX Mostra de Cinema de Ouro Preto, a cineasta Alice de Andrade e o diretor do Museu da Inconfidência, Alex Calheiros, comemoram o batismo da nova sala de cinema da antiga capital mineira (e sede do festival). O charmoso cineminha, de 90 lugares, funciona no Anexo do Museu, dedicado à chamada Conjuração Mineira. A partir dessa edição da Cine OP, ela passa a se chamar Sala Joaquim Pedro de Andrade, pois foi na cidade de Ouro Preto que o cineasta carioca, filho do mineiro Rodrigo Mello Franco de Andrade, criador do IPHAN, filmou “Os Inconfidentes” (“La Congiura”, 1972), coprodução com a RAI italiana. Alice presenteou o diretor do Museu da Inconfidência com o pôster italiano do filme inconfidente e com cartazes de “Macunaíma (1969) e da primeira retrospectiva da obra integral de Joaquim Pedro. A histórica retrospectiva foi realizada após a morte prematura do cineasta, nascido em 1932, ocorrida em 1988. Ele tinha apenas 56 anos.

. VILA RICA E O CURSO DE CINEMA — O prefeito Ângelo Oswaldo (coadjuvado por Raquel Hallak, diretora geral da Cine OP) garantiu que a Sala Joaquim Pedro vai servir à cidade, ao longo do ano, e ao festival, em junho. O evento, criado durante sua primeira gestão, vinte anos atrás, tornou-se um êxito e só faz crescer. Ângelo e Raquel garantiram que a reforma do Cine Vila Rica, um dos mais antigos do país, será implementada pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) em breve tempo, pois parte dos recursos finalmente foi liberada. Raquel lembrou, inclusive, que salas localizadas no subsolo do cinema serão usadas como laboratórios para os alunos do anunciado curso de Cinema e Preservação, a ser implantado pela mesma UFOP. O prefeito, em pessoa, anunciou que suas tratativas com o reitor da instituição, Luciano Campos, vão de vento em popa. Em seu terceiro mandato, Ângelo Oswaldo, um dos homens de confiança de José Aparecido de Oliveira, titular do MinC na era Sarney, é defensor juramentado do patrimônio histórico e artístico de sua cidade e de todo o Brasil. “Quero lembrar” — disse na festa de encerramento da Cine OP — “que, aqui em Ouro Preto, há exatos 130 anos, nasceu o Arquivo Público Mineiro”.

. INFRAESTRUTURA AQUÉM DO SUCESSO — Raquel Hallak fez substantivo e realista balanço da vigésima edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto e garantiu que a competição de longas-metragens de arquivo chegou para ficar. E que, 20 anos atrás, quando realizou a primeira edição da Cine OP, a cidade dispunha de poucos leitos (em hotéis e pousadas) para abrigar os convidados. Fez-se necessário, também, estimular a vida noturna da cidade, que não contava com restaurantes habilitados a funcionar até mais tarde. Investimentos foram feitos e a rede hoteleira (acompanhada pela de alimentação) cresceu de forma exponencial. Mas, passados 20 anos, os restaurantes já não conseguem atender à demanda. Filas imensas se formam, principalmente no sábado e no domingo, o que prejudica a imensa e concentrada programação de debates, seminários, workshops, masterclass e exibição de filmes da Cine OP. Já parece chegada a hora de um novo upgrade.

. SUCESSO FEMININO – Feliz com a participação hilária de Marisa Orth, a Magda do “Sai de Baixo”, na Mostra de Cinema de Ouro Preto, Raquel Hallak não escondeu o sufoco que passou para mobilizar nome estelar do humor nacional para esta vigésima edição. “Queríamos ter trazido a Ouro Preto, além de Marisa, algumas de suas colegas de ofício, Ingrid Guimarães, Glória Pires, Marieta Severo, Carla Camurati, entre outras, pois nosso tema esse ano foi a presença feminina no humor brasileiro. O imenso sucesso de cada uma delas nos impediu de trazê-las. Estão todas ocupadas com filmes ou montagens teatrais. Até Marisa Orth teve que se virar e concentrar pesada agenda ouro-pretana em um dia e meio (debates, centenas de entrevistas e fotos com fãs entusiasmados). Afinal, tinha que dar seguimento, em São Paulo, à temporada da peça “Barbara”, na qual recria livro autobiográfico de Barbara Gancia. Mas deu tudo certo. Marisa “Magda” Orth nada tem de burra. Inteligente, articulada e muito bem-humorada, ela causou frisson. E foi a peça de resistência de substantiva matéria (sobre a Cine OP) apresentada no Jornal Nacional.

. CARNAVAL OU CORTEJO FÚNEBRE? – Uma das sessões mais divertidas da Mostra de Cinema de Ouro Preto aconteceu justo no Anexo do Museu, agora Sala Joaquim Pedro. Representantes das Cinematecas de Curitiba (50 anos), da Cinemateca Capitólio de Porto Alegre (10 anos), do CTAv (Centro Técnico Audiovisual) e do projeto de restauro empreendido por William Plotnick apresentaram suas raridades. O representante paranaense avisou ao público, em tom de brincadeira, que seria exibido um filme sobre o Carnaval curitibano, realizado, em 1920,  pelo pioneiro Aníbal Requião. E que ninguém esperasse algo parecido com o carnaval da Bahia, do Rio ou de Ouro Preto. Depois de “Ópera Sidéria” (1912) e “Panorama de Curityba” (1913) começou a exibição de documentário no qual eram vistas pessoas em charretes puxadas por cavalos ou carros da época (começo do século XX). Homens ricos, de fraque e cartola, e mulheres, com vestidos de gala, eram vistos num cortejo. De repente, por causa de raro arremesso de uma insinuante serpentina, os espectadores notaram que estavam vendo o “Carnaval de Curityba”. Na plateia, para gargalhada geral, alguém comentou: “pensei que era um cortejo fúnebre”. Tratava-se, isto sim, de um Corso dos endinheirados da capital paranaense, realizado 105 anos atrás. Ah, bom!

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