Reflexões sobre a industrialização do audiovisual brasileiro
Por Raphael Bicesto
Esse artigo tem por objetivo apontar alguns dos fatores que fizeram dos Estados Unidos um dos mercados de maior produção de filmes no mundo, e traçar paralelos com a tentativa do Brasil de se criar uma indústria consistente e autossuficiente, com políticas públicas de fomento a produção audiovisual e regulamentações do setor.
Os Estados Unidos possuem uma característica fundamental no entendimento de sua política externa: o ultranacionalismo. Não é por acaso que muitos conteúdos cinematográficos e televisivos produzidos em seu continente possuem temas ligados à sua história, sua cultura e seu modo de viver. O egocentrismo aliado com seu poderio econômico e a mentalidade empreendedora transformaram a indústria do audiovisual do país em uma ferramenta poderosa de domínio cultural. Isso porque, diferentemente do Brasil, que possui suas produções focadas para dentro de seus territórios, os Estados Unidos tem no mercado consumidor estrangeiro o filão de seu negócio.
A primeira e grande diferença entre os dois mercados está na fonte de financiamento dos projetos audiovisuais. Enquanto que no Brasil os principais recursos são advindos de incentivos fiscais de ordem federal, estadual ou municipal, ou de transferência direta de órgãos públicos através de editais e fundos; nos Estados Unidos a iniciativa privada é predominante no fomento às produções com patrocínio direto, que são encaradas como um negócio com todos os riscos. Portanto, o patrocinador americano é visto como um parceiro do negócio, e o investidor brasileiro, muitas vezes, acaba virando um simples mecenas.
O modelo de produção norte-americano é regido pelo produtor executivo. A cadeia gira em torno dele, sendo as funções técnicas e artísticas contratadas de acordo com cada projeto, inclusive o diretor, evidenciando o resultado a ser atingido com o produto finalizado. Paralelamente, já são fechados acordos de distribuição e exibição, o que faz com que se tenha prazo para que o filme entre em circuito comercial, e seja distribuído pelas salas de cinema. No modelo brasileiro, costuma-se focar apenas o processo de financiamento da produção e de sua execução, direcionando a quase totalidade dos recursos para essa etapa[1]. Isso faz com que muitos filmes produzidos sejam literalmente arquivados e não tenham sequer uma exibição pública, o que é desastroso porque, como já vimos, o modelo principal de fomento à produção brasileira é alimentado por incentivos fiscais concedidos pelo governo. Isso sem levar em consideração a ótica do investidor, que por vezes designa recursos a um produto sem nenhuma visibilidade.
A grande verdade é que o cinema brasileiro ainda não se configura como uma indústria de fato, e sim como aglomerados de produtores independentes que procuram se articular como podem para produzir seus filmes. Tentativas não faltaram para que esse cenário fosse revertido durante sua construção: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1950), foi a primeira a tentar investir no cinema tendo como base o modelo americano dos grandes estúdios, com a construção de diversos parques cinematográficos na cidade de São Bernardo do Campo, indo à falência após quatro anos de existência e 22 filmes de longas-metragens rodados. A Embrafilme (1969), empresa criada pelo governo federal, surgiu como órgão de financiamento, distribuição e regulação do setor audiovisual, mas a inabilidade administrativa culminou com sua extinção durante o governo de Fernando Collor de Mello. Na tentativa de regulamentação e estímulo do setor audiovisual, foi criada em 2001 a Agência Nacional do Cinema, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Tendo em vista a necessidade de se fomentar novas produções frente à instabilidade financeira governamental, principalmente pelo prematuro surgimento do Plano Real, foram instituídas formas de a iniciativa privada auxiliar o governo na viabilização de um mercado audiovisual. Surgiram assim as políticas de incentivos fiscais, que transferiram para o mercado a tarefa de fomentar o cinema brasileiro, utilizando as deduções fiscais como estímulo aos contribuintes que podem destinar parte de seus impostos para a produção cultural, dentre elas o audiovisual. Como não há exigência de que os projetos aptos a utilizar os incentivos captem efetivamente, no ano de 2010, apenas 20% do total dos projetos aprovados nas leis receberam algum tipo de investimento, segundo a ANCINE, sendo a grande maioria reservada apenas ao arquivo morto dos órgãos competentes. Dentre os projetos que recebem os aportes financeiros estão, em sua maioria, produtores estruturados e capazes de se articular com o mercado, gerando assim desigualdades. Há ainda a preferência por parte das empresas patrocinadoras de investir em projetos tidos como comerciais, que possibilitem uma maior bilheteria e visibilidade publicitária.
Em contrapartida, o mercado norte-americano possui na produção independente um alicerce importante para a configuração de seu mercado cinematográfico. Os produtores independentes possuem liberdade artística e conceitual em seus filmes desprovidos da necessidade de gerar bilheteria. Esses novos produtores atraem os olhares dos produtores executivos das majors que, acostumados com histórias e conteúdos reciclados, estão ansiosos por novas ideias e acabam por inserir esse novo produtor independente na indústria hollywoodiana. Verdade que muitos transitam entre os dois universos, como Woody Allen, Quentin Tarantino, Martin Scorcese, dentre outros, mas são inegáveis suas referências do cinema mais autoral.
Há inclusive um circuito alternativo chamado de “pequenas majors”, formado pela Sony Classics, Miramax, Fox Searchlight, New Line e Fine Line, especializadas em produzir filmes independentes, o que está acabando por aumentar os orçamentos dos filmes e até de certa forma descaracterizar um pouco a produção independente, mas isso revela que há sempre a preocupação em se concretizar o setor como uma indústria, com diversos segmentos que se intercomunicam e, até certo ponto, dependem entre si para existirem.
A complexidade da indústria do cinema americano se vê ainda mais presente quando analisamos os produtos por ela gerados. Filmes como “Guerra nas Estrelas” (George Lucas, 1977), “Matrix” (Andy Wachowski e Larry Wachowski, 1999), “Senhor dos Anéis” (Peter Jackson, 2001), tiveram suas receitas incrivelmente aumentadas pela venda de souvenirs, bonecos, jogos eletrônicos, livros, brinquedos, licenciamento de personagens e outros tipos de derivações. A ideia é que se crie uma cultura ao redor do produto gerado pelo filme, que seja reciclada de acordo com o avanço de novas tecnologias e os novos interesses das gerações futuras.
No Brasil, a indústria do entretenimento está muito atrelada ao que se consome nos Estados Unidos, tanto no audiovisual quanto nos subprodutos gerados por ele, sendo difícil existir uma ação de marketing global como vimos no caso dos grandes filmes americanos. Isso se dá pelo simples fato de os brasileiros não consumirem o filme brasileiro de forma a se criar uma cultura a ser explorada comercialmente. No ano de 2011, por exemplo, a bilheteria de filmes brasileiros lançados nos cinemas do país vendeu quase 18 milhões de ingressos, faturando cerca de 163 milhões de reais de renda bruta. Ao mesmo tempo, foram vendidos 143,9 milhões de ingressos com faturamento de 1,27 bilhões de reais pelo cinema estrangeiro, sendo grande parte deles de origem americana. Os números de arrecadação em bilheteria dos filmes nacionais em 2011 representam cerca de 7,8% do valor arrecadado no mesmo período pelos filmes estrangeiros, o que representa um forte indicativo dessa cultura consumidora.
Foi também pensando no consumo que as majors americanas classificaram os filmes em gêneros: drama, comédia, terror, suspense, ação, aventura etc., e isso foi feito para facilitar a identificação de cada tipo de filme de acordo com o gosto do espectador. Essa ideia é tão difundida mundo afora, que é difícil classificar um filme sem seguir essas denominações, que já estão impregnadas no imaginário coletivo.
Além disso, temos que levar em conta toda a cadeia de distribuição e exibição desses filmes nas diferentes mídias, pois, para determinada empacotadora de conteúdos televisivos, por exemplo, é muito mais vantajoso direcionar os filmes de determinado gênero aos seus públicos específicos, distribuindo-os em canais diferentes e podendo mensurar o seu nível de audiência. Para que essas empacotadoras não comprem apenas aqueles conteúdos de maior visibilidade, as majors distribuem seus filmes em pacotes, com filmes chamados blockbusters, mas também outros de menor expressão e nível técnico inferior que devem ser comprados juntos e, na medida do possível, inseridos na programação dos canais em horários de menor audiência.
Concluímos com essa breve análise dos mercados americano e brasileiro, que são muitos os fatores que distinguem uma indústria audiovisual consolidada de uma política de incentivo de crescimento mercadológico: primeiramente, para que haja uma indústria atuante, é necessário fortalecer a cadeia como um todo, e não somente fomentar produções sem expectativa de retorno comercial. Vimos que no mercado americano se concebe a obra audiovisual como um negócio, que seus diversos nichos se autoalimentam com conteúdo e mão de obra e fazem a engrenagem girar.
As políticas públicas auxiliam no sentido de estruturação do mercado, mas a força motriz vem das iniciativas privadas, que enxergam no cinema um potencial econômico a ser explorado. O entretenimento, setor do qual se encaixa o audiovisual, é encarado de forma global e intermidiática, com desenvolvimento de subprodutos que proliferam toda uma cultura em torno de determinados filmes. A distribuição e a exibição são partes inerentes a qualquer projeto audiovisual, seja ele independente ou não, e seus realizadores por vezes estão conscientes disso, o que acaba gerando maiores resultados e credibilidade perante os investidores.
Planos de negócios são estrategicamente elaborados para dar vazão a todos os produtos produzidos, como no caso dos pacotes vendidos pelas majors às empacotadoras de conteúdo, mesmo que no final das contas alguns de seus filmes não tenham dado o resultado financeiro esperado. Neste sentido, a recém regulamentada Lei 12.485, que estabelece a veiculação de conteúdos brasileiros e independentes na programação das emissoras de televisão por acesso condicionado, se torna uma esperança para o mercado brasileiro que se vê ainda dependente de incentivos fiscais, e oferece perspectivas para que este mercado se estruture ao ponto de se autossustentar. A questão está também intrínseca à forma de pensamento dos produtores que, nesse sentido, têm ainda muito o que aprender com os americanos.
Raphael Bicesto é aluno do curso “Produção Audiovisual: Projeto e Negócio” e Produtor Executivo na B6 Projetos Audiovisuais
Excelente reflexão, vem a calhar com o momento de profissionalização pelo qual passa o mercado da produção independente em função da Lei 12.485, aprovada no final do ano passado.
Artigo excelente, parabéns!
Tudo muito legal li a pagina, mas quanto aos produtores independente, acho que esta na mesma, pois achei um produtor que custeou meu filme, terminei esse filme mas não acho distribuidores, e agora?
O filme não é ruim, acho que tem mercado e direcional e então, você pode me ajudar?
veja o trailer: YOUTUBE/ O ULTIMO LANCE DE UM LEILÃO
CONTATO: oridesvicente@ig.com.br / oridesvicente@gmail.com
Ótima perspectiva sobre o setor!
Muito se fala sobre produção audiovisual, especialmente, sobre técnicas e qualidade. No entanto, é importantíssimo refletir sobre o mercado e a competitividade das produções nacionais, de forma a propor estratégias para tornar atrativa e, principalmente, rentável os produtos do setor. O marketing e a economia podem contribuir bastante para esse tipo de análise.
Gostei demais do artigo! Creio que já passou da hora de avançar o nosso cinema para um outro estagio.
Nosso cinema é muito noveleiro e os empresários não acreditam nele.