A arte popular de Rosemberg Cariry

Em agosto, o cineasta cearense Rosemberg Cariry completou 60 anos de idade e a marca dos doze longas-metragens, entre ficções e documentários. Seu mais novo filme, “Os Pobres Diabos”, estreia no 23º Cine Ceará, no dia 14 de setembro, depois será exibido no 46º Festival de Brasília. Filósofo de formação, Antônio Rosemberg de Moura assumiu o nome artístico Cariry como maneira de simbolizar a região em que cresceu. Não à toa, claro, sua obra, como cineasta, escritor e pesquisador, percorre a temática da cultura popular e oral do Nordeste, sendo muito influenciado pela literatura de cordel. “Os Pobres Diabos”, rodado em janeiro de 2013, ao longo de 26 dias, na cidade de Aracati/CE, não é diferente. “O filme é uma expressão das artes dramáticas e poéticas populares e traduz toda uma realidade dos artistas populares, no Brasil, que lutam arduamente para sobreviverem”, conta Rosemberg, que estreou na direção com o documentário “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” (1986) e concluiu dois em 2012, “Cego Aderaldo – O Cantador e o Mito” e “O Nordeste de Ariano Suassuna – Ceará”.

O filme, que retoma a parceria de Rosemberg com os atores Chico Diaz e Everaldo Pontes, somado a nomes como Silvia Buarque e Gero Camilo, retrata o Gran Circo Teatro Americano, que perambula por pequenas cidades dos sertões, até chegar a Aracati, onde monta uma peça teatral. A representação de textos de cordel se dá, também, de forma metalinguística, como encenações do grupo – caso de “Auto de Lampião no Além”, de José Gomes Campos, e de “A Chegada de Lampião no Inferno”, cordel de José Pacheco. A inspiração também revela outra estrutura presente no filme, a do auto teatral, trazendo personagens típicos, que representam o bem e o mal, de teor cômico e satírico. “O longa usa toda a tradição da dramaturgia e da literatura oral e mescla tudo isto com as influências estéticas contemporâneas”, aponta o diretor. Não à toa, o título anterior do filme vinha do texto de Gomes de Campo, “Auto do Lampião do Além”.

O universo popular também se faz presente na trilha musical, assinada por Hérlon Robson, que teve os circos populares como base. “Nestes circos, alguns dobrados e fanfarras eram brasileiríssimos, mas tinham também muito dobrados europeus e canções latino-americanas. Outras músicas da trilha são valsas, boleros, mambos e rancheiras mexicanas. O filme faz uma homenagem apaixonada ao México. Lembro, no filme, o tempo em que a cultura mexicana era muito presente na cultura popular dos sertões nordestinos”, comenta o cineasta, responsável por filmes como “A Saga do Guerreiro Alumioso” (1993), “Corisco & Dadá” (1996) e “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio” (2002).

Trabalhando com a representação da arte popular, sem deixar de lado uma erudição, Rosemberg não tem problemas em assumir o regionalismo de seu cinema, que recorta o sertão nordestino. “O Nordeste é uma cal essencial no amálgama da cultura brasileira, por ser um processo vivo, contraditório, violento, vigoroso, e para sempre inconcluso, de construção identitária nacional, a partir dessa multiplicidade. O sertão herdou mundos em transe e um processo de construção cultural tão visceral, que vai além da antropofagia modernista, pois o modernismo no Brasil já nasceu velho, como expressão de uma elite cansada e marcada pelas feridas da monocultura cafeeira e da escravidão. No tempo da Semana de Arte Moderna, de 1922, o povo nos sertões já reinventava a sua própria pós-modernidade, com suas heranças universais, multirraciais e multiculturais”, brada, assumindo que sua única preocupação ao filmar é com a obra, já que não há espaço para filmes como os seus.

Silvia Buarque, Chico Diaz e Gero Camilo são atores de uma trupe circense, em “Os Pobres Diabos”, inspirado na narrativa de cordel. © Claudio Lima

Processo criativo

“No filme, improvisamos bastante. Gosto de fazer um cinema de improviso, assim como os cantadores”, conta Rosemberg, sobre como funciona a dinâmica no set. “Escolho um tema da minha vivência cultural, estudo esse assunto e faço um roteiro para seguir as exigências formais. Depois, no set, improviso a partir das condições de produção e também do acaso. Meu lema sempre foi: realizar com o que se tem nas mãos; com o dinheiro possível, com a câmera possível, com a realidade possível, soltando as amarras da imaginação e do improviso. Quando estou filmando, improviso tudo e incorporo cada dificuldade, cada chuva, cada dia de sol, cada capacidade ou idiossincrasia do ator. Tudo vira novos diálogos, novas ações, novas poesias. Para mim, o fato de realizar, o momento de fazer o filme, é tão importante quanto o resultado final – o filme pronto”, explica o diretor, que rodou “Os Pobres Diabos” com R$ 1,2 milhão e uma câmera Red One MX.

Todo feito no Ceará, o longa trabalha com uma equipe e um elenco pequeno, composto por pessoas locais e de outros pontos do Nordeste. Na equipe, Rosemberg conta com seus dois filhos, o também cineasta Petrus Cariry, diretor de “O Grão” (2007) e “Mãe e Filha” (2011), que se prepara para rodar “Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois”, como fotógrafo e como comontador, e Bárbara Cariry, produtora executiva e de elenco. “Petrus e Bárbara são meus parceiros de longa data. A Bárbara participou dos meus filmes como atriz, desde a infância, e o Petrus acompanhou muitos dos meus filmes no set. Até que os dois estavam preparados para alçar voos próprios e também colaborarem comigo. Foi o que aconteceu agora. A Bárbara, que já tinha produzido um longa do Petrus, resolveu produzir o meu filme. O Petrus, que já tinha fotografado, aceitou o convite de fotografar ‘Os Pobres Diabos’. A Bárbara imprimiu uma nova dinâmica e um desenho de produção que viabilizou e otimizou os poucos recursos captados. Devo muito do resultado final a essa intervenção dela. O Petrus fez uma fotografia muito bonita. Conversávamos muito no set sobre soluções de produção e possibilidades estéticas. Sobretudo, mantínhamos uma coisa fundamental no cinema: a cumplicidade, a solidariedade, a vontade de fazer”, conta.

Folia de Reis e o futuro

Enquanto se prepara para lançar “Os Pobres Diabos”, Rosemberg monta um filme rodado antes, em 2012, “Folia de Reis”, a sair em 2014, feito com baixíssimo orçamento e uma toada bem experimental. O longa conta a história de um grupo de Reisado de Congo indígena que vai se apresentar no palácio do governador de um país chamado Jenipapoaçu e termina sequestrando um embaixador, trazendo os olhos do mundo sobre si e desvendando os horrores das guerras contemporâneas e suas tentativas de construir justificativas absurdas. “O tom é de farsa que se transforma em tragédia, e faço uso de imagens ficcionais e de arquivos de TV e da internet, compondo uma espécie de caleidoscópio. Trabalho com atores profissionais, amadores e com pessoas do povo”, comenta o diretor, que após colocar o filme em alguns festivais, pretende colocá-lo diretamente na internet, legendado em vários idiomas.

Além de “Folia de Reis”, Rosemberg já trabalha em “Os Escravos de Jó”, que pretende rodar em Buenos Aires/Argentina. O roteiro foi escrito nos tempos em que viveu em Estrasburgo, na França. “É a história de um amor impossível entre dois jovens: Samuel e Yamina. Eles se encontram uma única vez, durante uma festa na cidade e, a partir daí, seus caminhos vão se cruzar sem que eles possam novamente se reencontrar”, simplifica, apontando como referências a mitologia e a tragédia grega, a narrativa medieval e Nietzsche. “É um filme que trata de questões políticas e existenciais”, conclui.

 

Por Gabriel Carneiro

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