Contra a corrente

Há dez anos, Paulo Sacramento dirigia seu primeiro longa-metragem, o documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro”. A força de sua abordagem dos detentos do Carandiru, que filmavam a si mesmos, fizeram do filme um dos mais elogiados documentários da Retomada. Um dos grandes montadores de sua geração, com filmes de Sérgio Bianchi, Laís Bodanzky e Anna Muylaert no currículo, Sacramento levou dez anos para dirigir seu primeiro longa de ficção, “Riocorrente”. Mistura inquietante de narrativa tradicional com uma montagem sensorial que potencializa os sentidos das ações dos personagens, o filme foi premiado pela crítica na última Mostra Internacional de São Paulo. E promete ser um dos grandes filmes brasileiros, quando estrear em abril.

“Eu não estava com pressa em rodar meu segundo filme. Isso não era uma questão para mim. Continuei montando e produzindo outros filmes, e segui trabalhando aos poucos no roteiro. Depois de oito anos, percebi que a primeira versão do roteiro, mesmo com todas as suas arestas, era a que mais me interessava. Tinha uma energia descontrolada. As outras versões estavam muito organizadas, queriam explicar tudo na história”, relembra.

“Riocorrente” segue quatro personagens, cada um vivendo uma deriva diferente em sua vida. Renata é uma mulher casada com Marcelo, um jornalista, mas que sente uma incompletude no casamento. Ela preenche esse vazio com Carlos, um ladrão de automóveis. Marcelo completa seu lado mais intelectual, enquanto Carlos libera seu lado mais instintivo e sexual. Mas há uma quarta figura que de certa forma amarra o filme de modo misterioso: Exu, um menino de rua, amigo de Carlos, que vaga pela cidade como um para-raio das energias da cidade.

O ator Vinícius dos Santos, como Exu, em “Riocorrente”, personagem que alimenta o fluxo poético do filme. © Aloysio Raulino

Cracolândia e Rua Aurora

Com uma boa experiência como produtor – assinou a produção de “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, e “Encarnação do Demônio”, de Mojica –, Sacramento montou uma operação de guerrilha para levantar um filme de baixo orçamento. Com R$ 1,3 milhão – “podia ter feito o filme com o triplo desse orçamento, mas decidi não esperar mais” –, chamou uma equipe pequena e filmou durante cinco semanas apenas em locações naturais, sem estúdio. “Queria lugares nos quais eu vivi certas sensações que me inspiraram para o filme. Tinha que ter sujeira e outros elementos em cena. As pessoas que circulavam pelas ruas não podiam ser figurantes ensaiados”. Assim, Sacramento levou seus personagens para a Cracolândia, a Rua Aurora, as lojas de carro no centro; o Hangar, um clube punk na Barra Funda; e um trecho do caminho para Santos do qual se tem uma vista poderosa da Marginal Tietê, cenário do monumental delírio que encerra o filme.

Hoje, dividindo-se entre Rio e São Paulo, com apartamento na Vila Madalena, o diretor tira a fascinação por São Paulo das memórias de infância. Seu pai, o crítico de arte Enock Sacramento, costumava levá-lo para passear no centro quando ia fazer seus ternos. Entre outras tantas coisas, o menino ficava alucinado com a imensa quantidade de motos estacionadas que tomavam as calçadas da região. Mais tarde, cansou de ir comprar discos na Galeria do Rock.

Entremeando a história, ele insere imagens abstratas que de alguma forma potencializam o estado de espírito de seus personagens: um leão que rosna, um plano subjetivo de alguém numa montanha-russa em movimento, uma garrafa de água que se transforma, num momento de raiva, num coquetel molotov. “Eu tinha medo de explicar demais a história, de fechar demais os significados. Me policiava o tempo todo para não dar respostas. Mas confesso que foi um pouco angustiante ir jogando no filme esse monte de coisas não resolvidas”.

O ator Lee Taylor, em “Riocorrente”, como um ladrão de automóveis que divide o amor de uma mulher com um jornalista. © Aloysio Raulino

Exu é o porvir

Nesse fluxo entre cinema de prosa e cinema de poesia, como definiria Pasolini, o improviso tinha papel importante. Numa cena, Exu é pego por policiais. Numa das “sobras” de montagem, havia um plano em que o menino, ao ouvir o barulho de um helicóptero que passava, levantava a cabeça e olhava para o céu. Já na finalização, Sacramento foi atrás da imagem de um helicóptero para introduzir na sequência – “como mais um elemento de opressão na vida do garoto”.

O menino Exu, de certa forma, é o condutor desse fluxo poético que habita o filme. “Ele é por onde não passa o racional. É sensação, potência, possibilidade, o vir a ser. É o discurso e a energia do filme”. O menino, Vinícius dos Anjos, tinha oito anos quando rodou o filme. Mora no Bixiga e estuda numa escola pública. “Riocorrente” foi o segundo filme que viu no cinema. “Nos testes, ele era sempre muito atento, olhava no olho o tempo todo. Foi assim que nos cativou.”

Sua preferência pela verdade da rua surgiu com “O Prisioneiro…”. “Quando você filma um banheiro em estúdio, é apenas um banheiro. Quando você filma num banheiro de verdade, tem as bordas que acabam invadindo o quadro, objetos inesperados que dão mais riqueza. No ‘Prisioneiro…’, eu tinha uma lista de assuntos dos quais eu precisava que o filme falasse. Mas o mais interessante era quando estava filmando um pastor de igreja e ele começava a falar sem querer do PCC. É muito interessante quando a realidade chega até você de forma inesperada”.

Cena do premiado documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de 2003, a estreia de Sacramento na direção

Espírito de Carlão

“Riocorrente” vem sendo apontado como um retrato involuntário da insatisfação popular que tomou as ruas de São Paulo este ano, primeiro para impedir o aumento das tarifas de ônibus e depois polarizando uma série de outras insatisfações. “Algumas pessoas criticaram esses protestos por não terem uma pauta clara. Mas acho que esse é o verdadeiro diferencial em relação a outras épocas. Tem uma energia represada que é impossível conter. É mais uma questão de sentir do que de organizar ou verbalizar aquilo que sente”. Uma definição que cai como uma luva também para “Riocorrente”.

Esse senso do risco veio da época em que dirigiu seus primeiros curtas-metragens, “Ave” e “Juvenília”, no início dos anos 90. “Eu queria colocar todas as dúvidas e riscos no filme. O mecanismo das leis de incentivo domesticou demais a produção brasileira nos últimos anos”. Por isso, ele dedica o filme a Carlos Reichenbach, um de seus mentores, que morreu em 2012 – “o primeiro roteiro que li na vida foi de ‘Filme Demência’”, conta.

Para construir seu primeiro longa de ficção, Sacramento usou a experiência e a reputação que ganhou como montador exigente, que leva o tempo que for para encontrar o ritmo de um filme. Para Laís Bodanzky, levou oito meses para entregar a versão final de “Chega de Saudade” (2007). Para montar “O Prisioneiro…”, levou um ano e sete meses. “Não tem fórmula, é como se cada novo trabalho fosse o primeiro. Não dá para chegar com ideias prontas, querendo impor, brigar com o filme. Tem que esperar o próprio material falar, impor o seu ritmo. O começo é sempre rápido, o fim é sempre lento…”.

Seus dias como produtor parecem encerrados. “Não é uma atividade que me dá prazer. Você precisa comprar muitas brigas, e o retorno é pequeno. É preciso criar um personagem para encarar as batalhas, e eu simplesmente não consigo. Sou frágil e transparente”.

“Riocorrente” passou na frente de outro projeto que Sacramento tem há quatro anos: “O Olho e a Faca”. Ele revela apenas que a história se passará numa plataforma de petróleo. “Resolvi soltar meus fantasmas numa plataforma. De certa forma, será um filme irmão de ‘Riocorrente’”. Se seguir impregnando seus filmes com um saudável experimentalismo, há muito o que esperar ainda de seu cinema.

 

Por Thiago Stivaletti

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