Horror tupiniquim ainda vive

Existe uma certa noção de que o cinema brasileiro de horror é restrito ao José Mojica Marins, mais especificamente aos seus filmes com o personagem Zé do Caixão. Se a afirmação não podia ser mais falsa (a Boca do Lixo, por exemplo, produziu diversos exemplares), o cinema tupiniquim de horror atual esteve escondido, sem falta de espaço, devido ao preconceito ao gênero. Pois bem, “Mar Negro”, do capixaba Rodrigo Aragão, vem tentar mudar um pouco esse panorama. Após bem-sucedida carreira em festivais não-temáticos, como Rio, Londrina, Vitória, Indie, Janela, entre outros, no Brasil, e no maior festival de cinema fantástico do mundo, o Sitges, o filme estreou recentemente em circuito comercial. Aos cultores do horror, porém, o nome não é desconhecido. Aragão fez barulho com seus dois longas anteriores no circuito de festivais e na internet.

“Mar Negro” fecha a trilogia de eco-terror, iniciada por “Mangue Negro” (2008) e “A Noite do Chupacabras” (2011). Os filmes não têm continuação direta, mas trabalham com o mesmo universo: uma aldeia de pescadores no litoral do Espírito Santo, o Perocão, terra do diretor, num passado remoto, e que está em plena decadência. Seja por conta de uma rivalidade familiar que aguça os sentidos de um monstro mítico latino-americano, seja a morte da natureza contaminando o resto do ambiente. Em tempos em que a presciência ecológica figura nos principais noticiários e blockbusters hollywoodianos, Aragão transpõe a preocupação à realidade brasileira – seu horror, em suma, é essencialmente tupiniquim, coisa rara e para poucos. Em “Mangue Negro”, a vida do mangue morria, por conta da poluição, matando quem comesse seus animais. A morte não era uma simples intoxicação alimentar, mas a transformação do ser em morto-vivo, ou seja, a morte errante, que assombra os vivos. Em “Mar Negro”, Aragão repete a fórmula: o mar morre e transforma quem depende dele em zumbis – com toques de magia negra.

Os filmes, porém, são bem diferentes. “Mar Negro” é um produto da experiência. Aragão, um diretor multiuso (ele também assina o roteiro, a edição e os efeitos especiais, entre outros), sabe muito bem de suas limitações e já consegue extrair o máximo de seu baixíssimo orçamento, levantado sem leis de incentivo (“Mar Negro” custou R$ 250 mil, contra os R$ 60 mil de “Mangue Negro”): fotografia e arte com belo acabamento, efeitos especiais e maquiagem impecáveis etc. O domínio técnico da trupe de Aragão e sua Fábulas Negras evoluiu muito – e essa deve ser enfim a razão de seu filme conseguir um lugar ao sol, há muito merecido. A experiência também pesa no elenco, especialmente na dupla de protagonistas, Walderrama dos Santos e Kika Oliveira.

O diretor apostou também em outra vertente a partir de “A Noite do Chupacabras”, abusando da estética do exagero e da malícia. “Mangue Negro” era um filme ingênuo, que levava sua história em tom de seriedade. “Chupacabras” e agora “Mar Negro” são filhos dos filmes dos anos 1980, em que o humor é parte incrustada do horror. Aragão opera o humor através da malícia de seus personagens e de suas situações. Em “Mar Negro”, por exemplo, a grande cena se passa num cabaré, em que cafetina e dona é um travesti (Cristian Verardi mais uma vez roubando a cena), e o sexo é tônica. O exagero, seja de alguns personagens, seja de situações, também colaboram nessa mise-en-scène: sangue (na melhor tradição do gore), gosmas, criaturas de uma imaginação fértil (o filme começa com um baiacu-sereia), personagens deliberadamente caricatos etc.

Frente a tantos avanços, mesmo com tantas dificuldades, é uma pena que o roteiro seja deixado de lado e sua narrativa fique um tanto blocada e episódica. “Mar Negro” tem um fiapo narrativo que une seus diferentes momentos, mas não dá conta da trama, que já é bastante simples. Nada, porém, que estrague a diversão, afinal, Aragão sabe como poucos, no Brasil, conduzir uma história de gênero, com todas as convenções narrativas sim, mas também com muita liberdade criativa.

Mar Negro
(Brasil, 100 min., 2013)
Direção: Rodrigo Aragão
Distribuição: Petrini Filmes

 

Por Gabriel Carneiro

One thought on “Horror tupiniquim ainda vive

  • 10 de março de 2014 em 11:03
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    Orgulho do cinema de horror brasileiro, que venham mais filmes!

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