Audiovisual e política
Após a Copa do Mundo, as atenções dos brasileiros estão voltadas para a eleição presidencial. Desde 1994, a Copa do Mundo e a eleição presidencial acontecem no mesmo ano; nisso, nenhuma novidade, senão que neste ano o evento esportivo ocorre justamente no Brasil, o que cria nesses dias um hiato que será quebrado no fim da competição. Aí todos acordarão para a disputa eleitoral. Uma boa oportunidade, então, para ver ou rever “Entreatos”, documentário de João Moreira Salles sobre os trinta dias que antecedem a eleição de Lula em 2002, e que será lançado em DVD duplo pela Videofilmes.
O documentário de Moreira Salles permite de início lembranças com referência à utilização do cinema como elemento de propaganda política, à exaltação de um líder em um momento de contato com as massas. No caso da filmografia brasileira, a lembrança mais marcante é a que remete a “Maranhão 66”, de Glauber Rocha, sobre a campanha de José Sarney ao governo do Maranhão no ano do título. Ambos se centram na figura do candidato, no séquito ao redor deste, no contato direto com o povo e na locução constante que faz ver as mazelas do país.
No filme de Glauber, apesar do apoio financeiro do próprio Sarney para sua realização, há um tom nitidamente irônico. Nele realça-se o aspecto retórico da fala do candidato e seu distanciamento do povo. Isso não ocorre em “Entreatos”, cujo acento é apologético. A figura de Lula é moldada de forma a se ter um divisor de águas na política brasileira, num clima de otimismo e esperança de que com sua eleição o povo teria sua vez no poder. Assim sendo, João Moreira Salles não escapa à ideia de que propôs um filme “chapa branca”, que se serviria como elemento de culto à personalidade do líder político.
Outras lembranças podem ser invocadas. Tenho em mente “Outubro” (1927), de Sergei Eisenstein, realizado com a finalidade de comemorar a Revolução Russa de 1917, e “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefensthal (1935), que cobre o Congresso do Partido Nazista em 1934, em Nuremberg. Assim como nesses filmes, “Entreatos” traz à baila o pressuposto de que o cinema pode se servir como registro de um dado momento a ser catalogado posteriormente nos anais da história.
É claro que João Moreira Salles tem plena noção desse dado, que seu filme suscitará interpretações diversas e, para o bem ou para o mal, suas imagens trariam discussões posteriores, com eventuais ressignificações do momento filmado. À luz da história, um momento que retrata estruturas de poder pede o sentido embutido em gestos e movimentos que sinalizam mais do que aparentemente poderia ser percebido. Nesse sentido, em contraponto com as cenas em que Lula tem contado direto com o povo, as de bastidores, de conversas supostamente triviais ou de reuniões para encaminhamento da campanha e que dão sentido ao título “Entreatos”.
O que se tem, então, é o retrato de um homem que nos trinta dias que antecedem a eleição está inequivocamente seguro de que não só será eleito, como cumprirá o papel histórico de efetivar mudanças na mentalidade política do país. A ênfase em sua fala, justamente, é que com as condições de base dadas pela singularidade do PT com respeito a qualquer outro partido no mundo civilizado, ele teria respaldo para dar voz ao povo pela via democrática e não pela revolução armada.
Ao flagrar instantes “relaxados” em que Lula assim se expressa reside um dos grandes méritos do filme, pois são essas declarações aparentemente espontâneas que depois seriam reavaliadas. Qual a distância entre o mero exercício de retórica e as circunstâncias do jogo de poder? Assim, hoje, impossível para qualquer espectador ver “Entreatos” sem que venha à mente o escândalo do mensalão, o aparelhamento do Estado e o projeto petista de poder.
Mas se “Entreatos” carrega nas entrelinhas algo de verdade sobre os bastidores do poder às vésperas de uma eleição presidencial, como por exemplo, em resposta ao publicitário Duda Machado, José Dirceu afirma que tudo está começando e não terminando com a eleição, também é certo que se trata de um inegável exercício de encenação. Seria clichê afirmar que a edição passou pelo crivo da direção do partido. Quanto a isso, óbvio, não há dúvida. Desconsideradas situações artificiais com Lula no cabeleireiro, ou na carona que dá a um desconhecido em Florianópolis, a falsa desconfiança de José Dirceu numa reunião, quando expressa categoricamente que não estava a par das filmagens.
É esse dado de encenação, de falseamento, que hoje enriquece “Entreatos” e torna indispensável revê-lo hoje, às vésperas de nova eleição presidencial, com o PT há doze anos no poder e, por ironia, Dirceu preso em razão do escândalo do mensalão. As eleições deste ano antecipam um clima tenso como não tem havido no país desde 1989, que opôs Lula e Fernando Collor. Para as eleições deste ano se entrincheiram petistas e antipetistas. Com Lula dominando a cena, Dilma Rousseff tenta a reeleição. Olhar para os bastidores da disputa que colocou Lula e o PT no poder oferece elementos para se pensar ao mesmo tempo nos complexos caminhos da política, tanto quanto do significado de gestos e movimentos que só o futuro pode desvelar com maior nitidez.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)