Recall de personagens
Por Hermes Leal
Um bom momento para falar de dramaturgia para a TV é quando uma novela não “pega” logo que estreia e seus autores precisam se desdobrar para reverter o fracasso iminente de público. É aí que entram os aspectos da criação, como a história e os personagens são gerados, e que torna visível “o que está errado” e o “remédio” para transformar o erro em acerto, usando os recursos que a dramaturgia e os conhecimentos de roteiro oferecem. A bola da vez agora é “Babilônia”, novela das 21h da Rede Globo, nascida para dar certo, especialmente, porque foi escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, time que une gerações de autores consagrados. Este recall da novela é um bom exemplo para falar da importância do personagem, um assunto tabu para os autores, já que não conseguem perceber que a inclusão do personagem na narrativa ocorre através de sua passionalidade, da paixão em seu sentido filosófico e semiótico. Há mais de 30 anos, os teóricos franceses, especialmente A. J. Greimas, fez essa inclusão do personagem na teoria da narrativa. Mas parece que os autores globais não sabem disso.
Para reverter a rejeição da novela, que tem o pior índice de audiência para o horário na história, os autores anunciaram uma série de mudanças, todas elas com fórmulas mirabolantes de viradas na sua história, mas nada sobre personagens. Nunca se ouve dos autores, ou se percebe nestas mudanças, que são os personagens, e nem sempre a história, a raiz da questão. Se partirmos da personagem Inês (Adriana Esteves), de origem humilde, que tem um plano de vingança em curso contra sua amiga de infância Beatriz (Glória Pires), que no passado seduziu seu pai, jogando-o na prisão onde se matou por causa dela, é falho, porque a personagem não foi preparada para cumprir esse percurso vingativo. A novela começou sem esse programa narrativo de vingança em curso, apenas com Inês invejando a amiga Beatriz rica e bem casada, e a “inveja” é uma passionalidade bem diferente da “vingança”. A personagem apenas diz que ela matou o seu pai, e que não vai desistir de se vingar, mas não há autenticidade na sua fala. A fala é falsa, faz parte do parecer. A inveja é um passionalidade que no personagem não precisa de eventos anteriores para se processar, basta querer o que o outro tem. Já a vingança é diferente, é uma paixão mais complexa e precisa de eventos anteriores, em que ocorre um dano ao personagem, que afeta também sua passionalidade, e que servirá de mote para seu plano de liquidação desta falta ocasionada pelo dano. Esse é o núcleo do problema, e não reviravoltas sem perceber os personagens.
Se os autores não pensarem assim, em mostrar primeiro o dano, a falta que tornou o personagem vingativo, o plano do personagem vingativo ficará sem sentido. E é isso que ocorre com a personagem Inês, que deveria ser o centro das reviravoltas com seu percurso “sem volta” como foi o da personagem Nina (Débora Falabella) em “Avenida Brasil”. Como “Babilônia” começou sem mostrar o crescimento do ódio em vingança, o certo seria corrigir a personagem, inserir a força do dano, a intensidade da falta, para que o desejo de vingança seja uma causa única em sua vida. A fórmula de “Avenida Brasil” foi dedicar sua primeira semana somente para mostrar a origem do percurso de vingança de Nina que viria a seguir, e assim permaneceu até o último capítulo. O foco na personagem “passionalisada” elevou o nível da novela, um estouro de audiência, e foi exibida em mais de 100 países, exatamente, porque é essa passionalidade do personagem que é o “universal”, e é entendido por qualquer cultura.
Em “Babilônia”, parece que os autores esqueceram a fórmula de “Avenida Brasil”, ou não perceberam que ela estava no personagem e que era preciso essa fase dos “simulacros passionais” para dar rumo certo à história. Essa é uma regra geral; a personagem sempre tem um percurso passional a cumprir e que ocorre em paralelo ao plano da ação. Partindo de um programa narrativo de vingança, por exemplo, podemos dizer que a personagem se encontra “virtualizada” quando ocorrer a agressão, que vai gerar uma falta, e pela qual a personagem vai lutar durante toda a história para “liquidar essa falta”. Por causa do dano, a personagem da vingança parte inicialmente de uma “raiva”, que se transforma em “ódio”, e que se transforma em “rancor”, passionalidades que compõe o programa da vingança.
Sem essa força, Inês neutraliza todos em sua volta, o antagonista perde força e a novela desanda. Se não fosse a obstinação de Nina em “Avenida Brasil”, tomada de ódio, que passa por cima de tudo, até do amor necessário para reparar o dano pelo lado da afetividade, a novela não teria conseguido um centro. Toda personagem tem sua passionalidade, qualquer uma, até o Bob Esponja. É o que dá vida ao simulacro da existência.
Quando os teóricos inseriram a personagem na narrativa, lhe deram a passionalidade como corpo e os “simulacros passionais” como o lugar onde ocorrem essas passionalidades, e que ocorre na personagem em três fases: virtualizada, atualizada, realizada e potencializada. Em uma história, a personagem precisa passar de um estágio a outro para ganhar competência e para que possa vencer o opositor que tudo sabe e tudo pode. São fases idênticas ao do roteiro de cinema e que mostram as curvas do personagem por suas afetividades.
A primeira fase de uma personagem cumprindo um percurso narrativo de vingança, por exemplo, é chamada de virtualizada, quando a personagem só tem o querer, mas não sabe e não pode conseguir o que deseja. O estágio virtualizado é quando a personagem parte do zero para adquirir saber, como parte da estratégica para executar um programa de competência e performance necessário na execução da vingança. O estágio realizado é quando a personagem sanciona a vingança, já tem um saber e um poder. O potencializado é quando zera tudo. Liquidou a falta. É o estágio em que um noivo se casa, terminando um programa de personagem realizado enquanto noivo, se potencializa no casamento, mas a partir de então inicia um novo percurso, agora virtualizado, porque inicia uma novo programa narrativo de casado e vai executar as mesmas fases ao surgir novos acontecimentos nesse novo arranjo contratual que foi o “casamento”. Como os autores estão tratando os personagens, transformando Regina (Camila Pitanga) de orgulhosa a justiceira, só piora a situação, porque o orgulho não é uma passionalidade forte, recusa outra vida porque se orgulha da que tem, e a justiceira precisaria de um dano que lhe ocasionasse uma grande falta da qual não conseguiria viver sem liquidá-la.