Festival de Brasília aposta na força do cinema feminino e black

Ano passado, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo e tradicional do país, comemorou sua quinquagésima edição com intenso – e necessário – debate sobre a representação e o espaço do negro no cinema brasileiro. Um dos filmes concorrentes – “ Vazante”, de Daniela Thomas – canalizou discussões das mais beligerantes. Outro – o baiano “Café com Canela”, de Ary Rosa e Glenda Nicácio – simbolizou, com sua generosa representação de personagens afro-brasileiros, o lado mais afetivo do debate.

Este ano, a seleção da quinquagésima-primeira edição do festival candango demonstra que a representação das mulheres e dos negros se faz notar com maior nitidez. E que a questão das regionalidades (sendo Brasília o centro geopolítico do país) continua sendo parâmetro dos mais significativos.

Nove longas e 12 curtas-metragens, selecionados entre 742 filmes inscritos, serão exibidos entre os dias 14 e 23 de setembro, no Cine Brasília, tradicional palco do festival. Os longas (ficcionais e documentais) disputarão o Troféu Candango e prêmio em dinheiro no valor de R$200 mil (dado pela Petrobras para serem usados no lançamento comercial do escolhido pelo público). Registre-se: acabou-se o tempo em que o festival candango distribuía, além do belo e cobiçado Troféu Candango, imensas quantias em dinheiro. Seguindo generosa sugestão do cineasta Adirley Queirós, cada um dos nove concorrentes receberá cachê de R$15 mil. Os curtas receberão R$10 mil (cada).

A representatividade feminina continua crescendo e pode ser constatada com imensa facilidade. Há mulheres dirigindo ou codirigindo seis dos nove longas selecionados.

A carioca Susanna Lira traz à Brasília um filme – “Torre das Donzelas” – que tem tudo a ver com a história de Dilma Rousseff, a presidenta deposta por “golpe parlamentar”. Afinal, este documentário revive lembranças de ex-presas políticas, como Dilma, que foram encarceradas, no final dos anos 1960 ou começo dos 70, na ala feminina do Presídio Tiradentes, em São Paulo. As cem presas (elas mesmas), apelidaram o lugar como “Torre das Donzelas”. Susanna, que já dirigiu mais de dez documentários (entre eles, “Damas do Samba” e “Clara Estrela”), busca, com este filme, “a sororidade” entre as encarceradas. Ou seja, não construiu um filme calcado em torturas e outras formas de violência, mas sim sobre as formas coletivas (e generosas) encontradas pelas prisioneiras para enfrentar tamanhas adversidades. A cineasta entrevistou 30 das contemporâneas de Dilma (ela, inclusive).

A baiano-paulistana Gabriela Amaral Almeida vai mostrar aos brasilienses seu segundo longa – “A Sombra do Pai”. Quem viu seus filmes anteriores (o festival exibiu e premiou alguns de seus curtas – “A Mão Que Afaga” e “Estátua!”) e seu sangrento longa “Animal Cordial” sabe que Gabriela é cultora do horror. “A Sombra do Pai” coloca uma menina de nove anos, Dalva (Nina Medeiros), órfã de mãe, sob os cuidados de uma tia, Cristina (a ótima Luciana Paes), já que seu pai Jorge (Júlio Machado) anda cada dia mais silencioso e distante. Só que a tia vai casar-se e partir. Sozinha com o pai, a menina, que acredita ter poderes sobrenaturais, tentará trazer a mãe de volta do além. Duas mulheres poderosas – a diretora de fotografia uruguaio-brasileira Bárbara Alvarez, e a montadora Karen Akerman – reforçam a alma feminina do filme.

A paulista Beatriz Seigner, terceiro nome feminino a assinar sozinha a realização de um longa – “Los Silencios” – selecionado para esta edição do Fest Brasília, concretizou parceria entre o Brasil, a Colômbia e a França. Seu novo filme (obra sintética, de apenas 88 minutos) é uma ficção que dialoga em profundidade com o documentário. Se antes ela realizara seu primeiro filme (“Bollywood Dreams”) em solo estrangeiro (a Índia), agora situa sua narrativa em território híbrido (na fronteira amazônica, entre Brasil e Colômbia). Lá, vive uma mulher (Marlene Soto) e seu marido (Enrique Diaz). Só que ele desaparece, levando consigo uma das filhas. A mãe segue em frente, em região conflagrada pela guerrilha das Farc, com mais dois filhos, uma menina e um menino. Para sobreviver, ela busca o complexo e difícil status de refugiada.

Uma dupla – Glenda Nicácio e Ary Rosa – volta a Brasília um ano depois de conquistar o Prêmio Petrobras-Júri Popular com “Café com Canela”. Formados em Cinema pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, os dois jovens cineastas revisitam, com “Ilha”, o universo afro-brasileiro. O filme conta a história de ilhéu periférico, que sequestra um cineasta, para que esta narre sua vida. Um ponto de partida metalinguístico, portanto. Conseguirão os realizadores mineiro-baianos a mesma empatia conquistada com “Café com Canela”? Aguardemos.

A paulistana Cláudia Priscilla soma-se ao cineasta Kiko Goifman na realização de “Bixa Travesti”. Trata-se de documentário de rara ousadia. De um mergulho no universo (e no corpo político) da cantora transexual negra, Linn da Quebrada. Ela, em companhia de amigas (ou da mãe), é vista em sua intimidade e em seu ofício de performer, empreendendo esforços para desconstruir estereótipos de gênero, classe social e raça.

A pernambucana Victória Alves soma-se ao franco-brasileiro Quentin Delaroche (diretor de “Camocin”) no comando de “Bloqueio”. A dupla realizou um documentário, do qual pouco se sabe. Por foto e pelo nome do filme, intuímos tratar-se de narrativa sobre bloqueios de vias públicas (ou estradas) em prol de (alguma) causa político-social.

De Minas Gerais, chegam dois filmes: “Luna”, de Cris Azzi, e “ Temporada”, de André Novais Oliveira, de quem Brasília conhece os inventivos (e bem-humorados) “Quintal”, de curta duração, e “Ela Volta na Quinta”, longa protagonizado por seus familiares, incluindo seus pais (recentemente, o cineasta perdeu sua mãe, Dona Zezé). Ela brilhou, ao lado do Sr. Norberto, em seu longa-metragem de estreia. Agora, o papel de protagonista está nas mãos da atriz mineira Grace Passô (protagonista de “Praça Brasil”, de Lúcia Murat). Em “Temporada”, ela interpreta Juliana, uma mulher interiorana, que deixa sua Itaúna natal rumo à periferia de Contagem, na grande BH. Sua missão consiste em combater endemias. Ela viverá, enquanto enfrenta crise matrimonial, novas e transformadoras experiências. No elenco, estão, também, Russo APR, Rejane Faria e Renato Novais (ator e irmão do cineasta).

“Luna”, de Cris Azzi, autor de episódio do longa “5 Frações de uma quase História”, de séries, telefilmes e do documentário “O Dia do Galo” (sobre o triunfo do Atlético Mineiro na Libertadores da América, em 2013) situa-se em meio jovem. Seu foco ilumina duas adolescentes, interpretadas por Eduarda Fernandes e Ana Clara Ligeiro.

O representante do Distrito Federal na competição é André Carvalheira, mais conhecido como diretor de fotografia (inclusive de “Comeback”, “Repartição do Tempo” e “O Último Drive-in”). Em sua estreia na ficção longa – “New Life S. A.”, que reúne atores bem conhecidos no teatro e cinema brasilienses, como Renan Rovida, Wellington de Abreu, Murilo Grossi e André Deca – Carvalheira aborda temas candentes (especulação imobiliária, violência etc). Seu protagonista, Augusto, é um arquiteto bem-sucedido que assina a planta de promissor condomínio em Brasília. Um condomínio que vende a utopia de uma vida aprazível e sossegada. Esta utopia, porém, entrará em choque com a realidade.

A força black da edição número 51 do festival não alcança a magnitude do poder feminino, cada dia mais visível. Mas nomes como o dos diretores Glenda Nicácio e André Novais, da atriz Grace Passô e da cantora Linn da Quebrada chegam com peso significativo e dentro de novos códigos. Em sintonia fina com nossos tempos, que não aceitam mais, de forma alguma, a hegemonia do homem branco-heterossexual.

No aspecto geográfico, já que Brasília sempre apostou na descentralização cultural, não assistiremos à apoteose do ano passado, quando foram selecionados filmes de todos os Brasis. Persiste, este ano, significativa diversidade geográfica, mas São Paulo comparece como força maior, com três filmes (“Bixa Travesty”, “A Sombra do Pai” e “Los Silencios”) e MG com dois (“Temporada” e “Luna”). Rio de Janeiro (“Torre das Donzelas”), DF (“New Life S.A.”), Pernambuco (“Bloqueio”) e Bahia (“Ilha”) com um cada.

Na categoria curta-metragem, foram selecionadas várias produções paulistas, pernambucanas e cariocas. Minas, DF e Ceará aparecem com um concorrente cada.

Os escolhidos são: “Aulas que Matei”, de Amanda Devulsky e Pedro Garcia (DF), “Plano Controle”, de Juliana Antunes (MG), “Boca de Loba”, de Bárbara Cabeça (CE), “Eu, minha Mãe e Wallace”, dos Irmãos Carvalho, “Sempre Verei Cores no seu Cinza”, de Anabela Roque, “Br3, de Bruno Ribeiro (os três do RJ), “Conte Isso àqueles que Dizem que Fomos Derrotados”, de Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Brito, “Guaxuma”, de Nara Normande, e “Reforma”, de Fábio Leal (os três de PE), “Kairo”, de Fabio Rodrigo, “Liberdade”, de Pedro Nishi e Vinícius Silva, e “Mesmo com tanta Agonia”, de Alice Drummond (os três de SP).

A Mostra Brasília, que distribuirá prêmios atribuídos pela Câmara Legislativa do DF (no valor de R$240 mil), mais Prêmio Petrobras (R$100 mil ao escolhido pelo Júri Popular), selecionou 21 filmes entre 92 inscritos (só produções candangas). Os filmes serão exibidos no Cine Brasília, em sessões vesperais, de 17 a 21 de setembro. E, também, no Auditório da Câmara Distrital e em salas de cinema de três satélites (Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho).

Três dos 21 concorrentes são longas-metragens: “O Outro Lado da Memória”, documentário de André Luiz Oliveira, “Marés”, ficção de João Paulo Procópio, e “New Life S.A.” (este, selecionado também para a competição nacional). Completam a programação, 18 curtas e médias-metragens.

Por Maria do Rosário Caetano

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