“Downton Abbey” é a telenovela do futuro
Por Newton Cannito
Para explicar melhor, vale entender a diferença entre formato e gênero. Formato é um conjunto de características formais que se repetem. Ele é construído pelas especificações mais técnicas da narrativa. Por exemplo: a quantidade de capítulos, o tempo deles, as regras do episódio, a forma da linguagem audiovisual. Seriado é um formato. Minissérie é outro. O folhetim de jornal era um formato. Mesmo características de linguagem audiovisual (quantidade de cenários, tipos de enquadramento etc.) são parte do formato.
O gênero é mais estético. É um tipo de enredo e a relação desse enredo com a audiência. O gênero é também um pacto entre a obra e o público. A grosso modo, os gêneros são: comédia, tragédia, farsa e melodrama. Também existem os subgêneros, como policial, sci fi, terror etc.
Temos hoje uma crise do formato da telenovela padrão. Apesar do evidente talento de autores da televisão brasileira, a telenovela tem caído de audiência. Duzentos capítulos podem ser muito para um universo. Isso exigia histórias muito multiplot, com muitos personagens e com pouca concentração dramática. “Game of Thrones” faz isso, pois consegue construir um universo muito coeso, tal como conseguiu “Roque Santeiro”. Não é fácil. Outra opção é concentrar mais. “Avenida Brasil” conseguiu fazer uma telenovela longa apenas com poucos núcleos e poucos personagens. Essa concentração dramática lembra as minisséries, como “Revenge” e “Downton Abbey”. O problema é que é realmente difícil sustentar tantos capítulos sem ter uma infinidade de personagens. E é difícil fazer um multiplot que tenha um universo tão forte que dê unidade a várias histórias (como “Game of Thrones”).
O formato telenovela também foi criado e faz sucesso por ser uma obra aberta, que vai sendo escrita enquanto está no ar. Isso exige uma imensa genialidade dos autores e permite algo maravilhoso: o diálogo entre autores e audiência. Por outro lado, isso faz com que as histórias sejam escritas com velocidade e fiquem numa linguagem muito baseada em diálogos. Essa velocidade também exige um desenho de produção que permite gravações diárias, cinquenta minutos de dramaturgia por dia. O resultado disso é um padrão estético de direção muito repetitivo, que já dá sinais de esgotamento com o público. Os talentosos diretores da televisão brasileira começaram a procurar soluções inovadoras, mas geralmente elas são para os primeiros capítulos. Pois é realmente muito difícil gravar tantas horas sem ter um padrão rígido de direção. Tudo isso, obviamente, restringe a criatividade da telenovela. No formato de telenovela diária, o conteúdo é todo passado em diálogo. Não existe subtexto, não existe sutileza. Isso acontece, pois não tem como a direção construir subtexto gravando cinquenta minutos diários. Isso exigiria pensar a decupagem, ensaiar mais os atores etc.
Por fim, o hábito do público tem mudado e se acostumado ao on-demand, que prescinde do “horário da novela”. Tudo isso coloca em cheque o formato de telenovela tal como o conhecemos hoje. Claro que ainda existe um público fiel, mas tudo indica que seja um público que está envelhecendo.
“Downton Abbey”, no entanto, provou que, apesar do formato estar em crise, o gênero telenovela continua possibilitando obras-primas. A série tem poucos capítulos por temporada, com grande concentração de enredo por episódio. A direção tem sutileza e o silêncio diz tanto quanto o diálogo. Os atores interpretam num padrão menos novelesco e isso nos dá mais empatia. Tudo isso afasta a série de uma telenovela tradicional. No entanto, o enredo é muito parecido com o de uma telenovela comum. Temos o núcleo pobre e o núcleo rico muito bem definidos. No núcleo rico, temos o famoso tema de conseguir um casamento, um arranjo para construir uma família, um tema típico do melodrama. Acompanhar as peripécias das irmãs tentando arrumar um bom casamento é, até hoje, fascinante. Num momento de suposto desprestígio do tema, ficou claro, para mim, que ele ainda pode ser atual. Temos também a questão de herança. As disputas de cotidiano do núcleo pobre, algumas poucas tratadas em chave cômica (como a disputa entre as cozinheiras). Em termos de inovação em relação ao melodrama tradicional, temos a pouca importância dada aos vilões. A minissérie quase prescinde deles. Temos, no início, o personagem do lacaio Thomas, que é movido pela inveja. Mais tarde, temos a ex-mulher do valete Bates que consegue atuar como vilã. Mas o interessante é que são em núcleos paralelos e têm papéis menores. A figura do vilão, tão presente no modelo tradicional de telenovelas, perde a importância. Em telenovela, quem tem feito isso é a autora Lícia Manzo (“Sete Vidas”). Outra coisa importante em “Downton Abbey” é a preocupação com o que podemos chamar de uma “fidelidade” histórica ao espírito do tempo. Mais do que a fatos históricos, a fidelidade é a ética da época. Um exemplo que isso se evidencia: imagine uma telenovela sem beijo. “Downton Abbey” é assim. Sabemos que o “ficar” virou tendência nos últimos anos. Mas “Downton” constrói histórias de amor e paquera onde o beijo só acontece ao final da segunda temporada. As pessoas pedem as outras em casamento antes de beijá-la. Também a descrição da ética dos empregados e sua relação com o patrão é fascinante. São éticas muito diferentes das nossas. O detalhamento dessas éticas faz com que entremos em um novo universo. Isso é boa dramaturgia. O que define uma boa série hoje é ter um novo universo. Um novo universo tem que ter regras próprias, diferentes das que estamos acostumados a ver na “realidade”. Isso fica mais evidente num universo fantástico (como “Game of Thrones”). Mas também é maravilhoso quando percebemos que a descrição realista de um universo pode se tornar fantástica, como acontece em “Downton Abbey”. Isso é algo pouco construído na dramaturgia tradicional de novelas, onde todos os universos seguem regras muito parecidas com a da sociedade atual e/ou do padrão de comportamento defendido como hegemônico nos dias de hoje.
Mas, apesar dessas sutis inovações, “Downton Abbey” é, antes de tudo, um melodrama familiar, com curva longa e temas tradicionais de uma boa novela. O formato é diferente, mas o gênero ainda é o mesmo. O sucesso mundial da série mostra como podem ser as novelas do futuro.
Newton Cannito é roteirista
Alguém da Rede Globo , por favor, que esteja lendo esse artigo e renove nossa dramaturgia, pois temos de continuar sendo a melhor do mundo.