Males da contemporaneidade
“Expresso do Amanhã”, que chega com certo atraso aos cinemas brasileiros, é o que há de melhor no cinema contemporâneo de ficção científica. O sul-coreano Bong Joon-Ho, em seu quinto longa, soube muito bem reciclar um dos mais antigos preceitos do gênero, a luta de classes e o embate de poder dentro da sociedade, em uma roupagem nova e uma impressionante construção atmosférica. Cultuado por aqui por obras como “O Hospedeiro” (2006) e “Mother – A Busca pela Verdade” (2009), Joon-Ho faz de “Expresso do Amanhã” seu projeto mais ambicioso até o momento, quase todo falado em inglês, repleto de astros do cinema hollywoodiano – elenco liderado por Chris Evans –, orçamento de US$ 40 milhões e buscando comunicação global.
O ponto de partida é um tema caro ao gênero hoje em dia: as especulações em torno de um futuro, fruto das consequências do mau trato do meio ambiente pelos seres humanos, em que o aquecimento global se torna o horror do apocalipse. No longa, os devaneios da ciência para reverter o calor iminente e as mudanças ambientais é um dispositivo que esfria os locais. Desmesurado e mal utilizado, a ferramenta leva a Terra a uma nova era glacial, em proporções desconhecidas pela humanidade. Nada sobrevive ao frio, que destruiu os seres vivos. Bong Joon-Ho agrega a esse mundo distópico outra convenção do gênero: a ideia da arca de Noé moderna. Os únicos sobreviventes entre os homens estão dentro de um trem, inventado por um visionário, cuja ponta destrói o gelo e o transforma em água, amplamente utilizado em seu sistema interno. Há 17 anos dentro do trem que nunca para, rodando o globo em alta velocidade, a população interna cresce e a situação piora. Porém, não apenas os convidados do inventor Wilford incursionaram na viagem, como também uma série de penetras.
A premissa científica que explica a situação fantástica do filme tem caráter presciente e incisivo, quase como um alerta aos múltiplos problemas que enfrentamos. Se a questão ambiental é uma desculpa para adentrarmos àquele universo, o diretor se aterá mais profundamente às questões de classe que se configuram – prospecto que vemos transposto para a ficção científica desde “A Máquina do Tempo”, escrito por H. G. Wells, em 1895. Enquanto o inventor e seus associados estão à frente do trem, dispondo de ambientes diversos, água, alimentação rica e variada e um mínimo de estrutura, como janelas, os penetras vivem no setor de cargas, amontoados como numa pensão de quinta, recebendo uma barra de proteína de procedência duvidosa como alimento e sendo brutalizados e abusados como convém aos dominantes.
Assim como outros filmes contemporâneos do gênero, que apontam para os malefícios do capitalismo, em que o dinheiro e a classe de origem justificam o menosprezo pela vida humana – os dominadores se veem como benevolentes por terem mantido os penetras vivos –, “Expresso do Amanhã” é muito feliz em seu dispositivo narrativo, o trem. O espaço limitado traz bastante fluência aos movimentos e à tomada do poder pelos revoltosos, em que cada vagão é uma questão diferente. Como sair do trem é impossível – ao menos dizem os poderosos –, resta encontrar a melhor solução dentro da restrição. O trem funciona assim como um microcosmo do mundo, que não consegue superar, mesmo no apocalipse, as questões mundanas que levaram o planeta à sua falência, no caso, a ganância humana e a lógica bárbara de superioridade e subjugação – inclusive da natureza.
Trabalhando entre a ação, o melodrama e o fantástico, Bong Joon-Ho é mais uma vez feliz ao questionar também o próprio papel da rebelião dentro do sistema. Foge assim do panfletário barato e abre para outras reflexões, essas sim mais atuais do que nunca. Em tempos de extremismos políticos aflorados com as redes sociais, o cineasta parece entender que tudo faz parte de algo maior – não de uma conspiração, claro, mas de uma lógica muito cara à configuração de um mundo perverso, em que as mais singulares ações só fazem sentido porque estão dentro de um todo. Assim como o percurso do trem, o papel daquelas pessoas é cíclico, acalentado e revigorado de tempos em tempos por conta de uma necessidade maior que justifica o sistema. Para Joon-Ho, só há libertação uma vez que quebrada essa lógica. Ou seja, o caminho para a libertação da opressão das classes dominantes não é a revolução. No microcosmo do trem, encontram – cabe ao mundo real descobrir a equivalência.
Expresso do Amanhã | Snowpiercer
(Coréia do Sul/República Tcheca/EUA/França, 126 min., 2013)
Direção: Bong Joon-Ho
Distribuição: Playarte
Estreia: 27 de agosto
Por Gabriel Carneiro