Emília Silveira revisita trajetória do autor de “Quarup” e “Reflexos do Baile”

Por Maria do Rosário Caetano

“Callado”, um dos cinco documentários de Emília Silveira – nos cinemas a partir dessa quinta-feira, 21 de janeiro –, diz a que veio já em sua sequência de abertura. O jovem Jean-Pierre Léaud, ator-fetiche de Truffaut e de Godard, lê, com ar angelical, manifesto em defesa dos “Oito do Glória”.

Cena de um cinejornal? Não. O que o filme de Emília Silveira resgata é trecho de “Masculino, Feminino”, obra ficcional godardiana, na qual o cineasta dialoga politicamente com seu tempo. E o faz prestando solidariedade a oito brasileiros presos pela ditadura militar, quando realizavam protesto contra o governo do Marechal Castelo Branco. O então presidente do Brasil chegara ao poder, por golpe de Estado, dois anos antes. Em 1965, a OEA (Organização dos Estados Americanos) realizaria reunião de chefes de Estado no Rio de Janeiro, no tradicional Hotel Glória.

Os responsáveis pelo protesto, que acabaram encarcerados, eram os cineastas Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Carneiro, o jornalista Carlos Heitor Cony, o diretor de teatro Flávio Rangel e os escritores Thiago de Mello e Antônio Callado.

Depois do excelente uso das imagens nouvelle-vaguianas de Léaud/Godard, o documentário de Emília mostra Carlos Heitor Cony em momento de evocação irônica do episódio político que o uniu ao colega Antônio Callado. Eles eram companheiros de ofício no Correio da Manhã, então um dos jornais mais influentes no país.

“Esperávamos” – relembra o jornalista, também escritor dos mais produtivos – “milhares de pessoas em frente ao Hotel Glória para o protesto. Acreditamos nos líderes da oposição que garantiram mobilizar milhares de manifestantes. Na hora mesma do protesto, só estávamos nós lá, com uma faixa na qual se lia ‘OEA – Queremos Liberdade’”. Resultado: “fomos presos”.

O Correio da Manhã apoiara o golpe civil-militar de 1964, mas se arrependera quando as liberdades civis começaram a ser combatidas às custas de atos institucionais. A dona do jornal, Niomar Muniz Sodré, permitiu à sua equipe, composta com quadros da qualidade de Callado, Otto Maria Carpeaux, Antonio Houaiss, José Lino Grunewald e Cony, escrever textos com pesadas críticas ao governo militar. Antônio Callado (1917-1997), o personagem de Emília Silveira, seria o “único jornalista brasileiro proibido de escrever em qualquer jornal editado no país”.

A atriz Tessy Callado, filha do escritor, é responsável – junto com a intervenção goddardiana de Jean-Pierre Léaud e a deliciosa leitura de trecho do “Quarup” pelo jovem Domingos Guimaraens – por alguns dos melhores momentos do filme. Parentes costumam edulcorar a trajetória de seus mortos, transformando-os em seres perfeitos. Com franqueza amorosa, a atriz traz à tona alguns dos momentos mais dolorosos da vida do pai, da mãe (a inglesa Jean Maxine Watson) e da irmã Antônia, a Tony.

“Meu pai” – conta Tessy – “conheceu minha mãe em Londres, durante a Segunda Guerra. Ele trabalhava no serviço de rádio da BBC. Ela quis logo casar-se com ele, que não queria saber de casamento, nem de ter filhos. Ele tinha, na família, caso de esquizofrenia (Callado era filho de médico) e sabia que podia ter filho portador de tal distúrbio”. Jean Maxime acabou dobrando Callado e os dois tiveram três filhos, Tessy, Paulo e Tony. E viveram um longo matrimônio, até que Callado deu um ultimatum: queria separar-se, viver outras experiências, mudar de vida.

“Minha mãe” – relembra Tessy – “disse que, então, regressaria à Inglaterra e nos levaria junto com ela”. Para não perder a convivência com os filhos, o escritor aceitou manter um casamento no qual cada um cuidaria da própria vida afetiva.

Coube à bela e jovem Tony, irmã de Tessy, portar o mal que tanto atemorizava Callado. Os primeiros sintomas apareceram na juventude. Um dia, em 1980, sete anos depois da morte de Jean Maxime, o escritor teve um compromisso social e pediu a Tessy que cuidasse da irmã. Tony, que passara por processos de sonoterapia e outros tratamentos, recorreu ao suicídio. Tinha 28 anos.

Para contar partes da história de Antônio Callado, que morreu dois dias depois de completar 80 anos, Emília Silveira recorreu à ajuda de profissionais de grande competência e talento. O mais importante deles é o editor Vinícius Nascimento, responsável pela sintética e inventiva montagem do filme.

Os depoimentos que integram a narrativa são, também, de muita qualidade e não transformam o filme num “cabeças falantes”. Destaque para as intervenções de Davi Arrigucci, professor da USP, e do filósofo Eduardo Jardim. Cabe a este reunir grupo literário interessado na obra do escritor para sarau que nada tem de anacrônico. Aliás, graças à leitura do jovem Domingos Guimaraens, de trecho do “Quarup” – o que celebra o éter e prega a carnavalização de nossos seres e sentires –, o filme atinge um de seus melhores momentos. E dali caminha para seu formidável desfecho: sons indígenas, recompostos como música tecno-rock-carnavalizada, animam a trilha sonora e valorizam a criatividade da diretora e de seu montador.

Emília, em debate do filme realizado no Festival Aruanda, na Paraíba, explicou a criação coletiva da música final: “fizemos um arranjo, em estúdio, em cima de ritual dos Bororo, que encontramos no Museu do Índio. Nossa ideia era ilustrar o ‘germe anárquico’ do Callado com esse tema indígena original em ritmo contemporâneo. Misturar épocas”.

“Callado” traça um instigante retrato das duas faces mais notáveis do niteroiense, que estudou Direito sem que tivesse o mínimo interesse por leis. Queria, isto sim, viver da escrita. E foi o que fez pela vida inteira. Seja como jornalista, seja como romancista ou dramaturgo. O filme relembra seus grandes livros-reportagens (“Esqueleto na Lagoa Verde”, sobre o sumiço do britânico P.H. Fawcett, “Tempo de Arraes”, sobre o governador Miguel Arraes, “Vietnã do Norte”, com sua cobertura da guerra do país de Ho Chi Min contra os EUA), sua passagem pelo Correio da Manhã e pela Folha de S. Paulo. E, claro, sua dedicação à literatura, que – como lembra Arrigucci – soube usar muito bem, em seus romances, o material que colhera de sua profissão-repórter.

Alguém poderá sentir falta de outros aspectos da trajetória de Callado ou de aprofundamento de sua relação com a política, com o teatro ou com o cinema (muitos de seus livros foram adaptados por cineastas como Ruy Guerra, que levou seu “Kuarup” a Cannes). Mas um documentário, quando é bom (e sintético!) como este de Emília Silveira, serve de estímulo para que, ao sairmos do cinema, queiramos (re)visitar páginas dos melhores livros do cinebiografado (para uns, “Quarup”, para outros, “Reflexos do Baile”). Aliás, ambos transformados em projetos cinematográficos por Glauber Rocha, que não chegou a concretizá-los. Arnaldo Jabor, por muitos anos, planejou uma lisérgica versão cinematográfica de “Reflexos do Baile”. Que também ficou no papel.

 

Callado
Brasil, 73 minutos, 2017
Em preto-branco e vermelho
Direção: Emília Silveira
Depoimentos: Tessy Callado, Carlos Heitor Cony, Davi Arrigucci, Wilson Figueiredo, Ana Arruda, Sérgio Augusto, Matinas Suzuki, Maurício Stycer, Fuad Atala. Com participação de grupo literário composto com Eduardo Jardim, Júlio Diniz, Daniel Castanheira, Domingos Guimaraens, Ana Kiffer, Mariana Fernandes e Victor Paiva)

 

FILMOGRAFIA

2013 – “Setenta” (documentário sobre exilados políticos brasileiros no Chile)
2016 – “Silêncio no Estúdio” (cinebiografia documental da apresentadora de TV Edna Savaget)
2016 – “Galeria F” (sobre Theodomiro Romeiro dos Santos, último preso político brasileiro a ser anistiado)
2017 – “Callado” (sobre a trajetória jornalístico- literária de Antônio Callado)
2019 – “Tente Entender o que Tento Dizer” (documentário sobre soropositivos)

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