Pense pequeno

Por Ricardo Tiezzi

O carteiro está com um caderno em branco à sua frente. Ele precisa preencher as páginas com poesia. A ansiedade toma conta do carteiro, ele precisa de poesia para conquistar a garota que ele ama (afinal, como diz a sábia tia repressora da garota, “quando um homem toca uma mulher com palavras, ele está prestes a tocá-la com as mãos”). As palavras não vêm em seu auxílio, mas o carteiro enfrenta um obstáculo ainda maior. Seu pai, na mesa da sala minúscula, toma sopa direto da panela, produzindo um ruído irritante. Um ruído que é o contrário da poesia.

Essa cena curta e simples do filme “O Carteiro e o Poeta” – uma cena sem palavras, como o caderno do personagem – é suficiente para dar conta dos conflitos que afligem o carteiro. O conflito interno consiste no drama de um homem simples que precisa aprender a fazer poesia. E como conseguir isso se o seu ambiente externo é feito de rotina, conformismo e limitações?

Na criação de um roteiro, é muito mais fácil olhar para o horizonte do que para as pedras ao redor dos pés. O impulso primeiro da criação tende a procurar soluções criativas naquilo que é grande: brigas, tiros, beijos, mortes, reencontros, explosões. Perceber o que está perto, o drama cotidiano, exige uma sensibilidade mais afinada. Na arte de contar histórias, pensar pequeno é para os virtuosos.

Personagens repletos de humanidade podem nascer dos gestos mais prosaicos. Quem consegue esquecer o deslumbramento da personagem Skyler, em “Breaking Bad”, ao admirar suas unhas dos pés no reflexo do piso de mármore do banheiro de seu amante? Não por acaso, o próprio criador da série, Vince Gilligan, cuidou da cena, para conseguir o tom exato do esmalte, o reflexo perfeito e a excitação da personagem nos leves movimentos dos dedos.

No filme “O Enigma Chinês”, o personagem do ator Ricardo Darín (quem mais?) conta parafusos. E nós, na plateia, ficamos ansiosos com ele durante a contagem e lamentamos quando há menos parafusos na caixa do que o prometido. Um senso de justiça, aliás, que fala a respeito de uma sociedade. Alguém acredita que em alguma caixa virá, um dia, parafusos a mais?

Mais uma vez, entra em campo a rivalidade entre Brasil e Argentina no cinema. Um dos elementos da superioridade argentina está justamente nessa capacidade de criar uma humanidade grandiosa nas menores coisas. Na máquina de escrever do personagem de Ricardo Darín (quem mais?), em “O Segredo dos seus Olhos”, falta a letra A, e isso é mais explosivo que mil explosões. Nossos roteiros, ao contrário, têm a tendência de pensar grande, de buscar significado em eventos extremos, muitas vezes, sem encontrar nada. Isso não se refere somente aos roteiros filmados, mas também aos que circulam em produtoras, editais, concursos e oficinas.

Como transmitir a angústia e o desespero de um pai cuja mulher foi embora, deixando para ele a missão de cuidar do filho? O impulso poderia nos levar a este homem à beira da janela do 15º andar, aos gritos no telefone enquanto o filho berra, a um choro copioso diante da criança assustada. O filme “Kramer vs Kramer” resolveu o problema com um café da manhã, em uma cena que se tornou clássica.

Alguns capítulos dos manuais de roteiro deviam apresentar um manual de autoajuda ao inverso. Se na vida, se deve pensar grande, nas histórias para as telas, pensar pequeno pode levar a grandes realizações. Reparar e aplaudir o pôr do sol é banal – qualquer um pode fazer isso – o difícil é reparar no chiado da sola do lutador sobre a lona encerada, como Heming-way defendia.

Ou, talvez, seja o caso de os roteiristas consultarem menos os manuais e mais os escritores. “É necessário se apegar aos detalhes minúsculos”, Tchekhov aconselha. Meio século depois, Samuel Beckett estabeleceu uma sentença definitiva: “No particular, está contido o universal”. O criador visionário não é aquele que enxerga longe, mas aquele que vê o que está diante dos nossos olhos.

 

Ricardo Tiezzi é escritor e professor

6 thoughts on “Pense pequeno

  • 3 de setembro de 2015 em 13:02
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    Na veia. Tirar todo o barro e chegar no simples, sem ser simplista.
    Tarefa difícil para um contador de histórias, mas chegamos lá.

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  • 6 de setembro de 2015 em 16:35
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    Ótimo texto, ótima nota para criações!
    ótima reflexão para a própria vida (:

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  • 16 de setembro de 2015 em 12:57
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    Excelente texto. Parabéns e obrigado pela ótima reflexão.

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  • 28 de novembro de 2018 em 21:06
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    ….. PENE PEQUENO …. Tem-se aqui um leque de direcoes IMPORTANTES. EM TODAS AS EXPRESSOES ARTISTICAS OS MINIMOS PEQUENOS DETALHES SAO AQUELES QUE CONSTITUEM UMA GRANDE OBRA.

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  • 3 de novembro de 2020 em 03:26
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    O bom de se fazer um roteiro simples é que ele tende a ser mais barato, portanto, mais factível para uma produção audiovisual, e ainda nos proporciona o desafio de criarmos uma história simples e ao mesmo tempo intrigante, com o emprego de mensagens que estão dispostas nos pequenos detalhes minunciosamente rebuscados, dentre outros recursos elementares que porventura possam ser implementados.

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  • 14 de novembro de 2022 em 18:09
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    Concordo. Pude entender na prática de estudo de dramaturgia, dirigida ao cinema, e em textos jornalísticos: o particular é um espelho do todo e uma boa história vem de uma ideia simples.

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