Relato de viagem
Premiado como melhor curta pelo júri oficial e pelo popular no 19º Cine PE, neste ano, além de levar como melhor roteiro, “Até a China” é a mais recente incursão de Marão, um dos principais animadores do cinema brasileiro contemporâneo. Bastante ativo na área, com uma série de curtas no currículo, como “O Anão que Virou Gigante” (2008) e “Eu Queria Ser um Monstro” (2009), é também responsável pela série de filmes coletivos “Engolervilha”, que trabalham com esquetes bizarras e escatológicas.
“Até a China” nasce de uma visão pessoal de outro país com cultura e hábitos completamente diferentes. O filme retrata a viagem de Marão para a China por conta de um festival de cinema infantil. “Já havia visitado vários países com outros filmes – incluindo Sérvia e Armênia –, mas a China foi uma experiência única. Tudo que é relatado no curta foi exatamente como aconteceu. Na verdade, o roteiro foi montado a partir dos textos dos e-mails que enviava para amigos e familiares enquanto estava lá: a opinião e percepção no texto da narração do filme é fielmente o texto que escrevi enquanto estava ainda na China, com minhas impressões imediatas, sem nenhuma modificação ou alteração posterior. Tudo aconteceu tal e qual é visto no curta de animação, inclusive os cenários: não pesquisei imagens na internet – ao invés disso, utilizei, como referência para desenhar os cenários, exclusivamente as fotos que bati enquanto estava lá, de modo a ser um relato efetivamente pessoal”, comenta o diretor, que fez o filme com R$ 70 mil, ganhos no edital estadual do Rio de Janeiro.
Por conta disso, um dos grandes diferenciais do filme é a maneira espirituosa e bem humorada que Marão faz desse choque de culturas. O personagem segue viagem narrando tudo o que lhe parece absurdo, desde reações ainda no Brasil que observa, até o trato do chinês para com o estrangeiro. É em um desses momentos que o filme tem sua melhor tirada: Marão tenta comprar bebidas alcóolicas, mas a barreira da língua e a não cultura de beber na China acabam lhe sendo um grande problema. Vale dizer que o cineasta, em momento algum, olha os chineses com desdém ou como motivo de piada. Os relatos de absurdos são contados com certo maravilhamento em conhecer outra cultura que lhe é tão díspar.
Feito com animação tradicional, lápis sobre papel, o filme é todo narrado com voz over pelo próprio diretor. “Gravei uma versão como voz guia, mas como é um relato muito pessoal, acabei mantendo a minha voz, com todos os erros, gaguejadas e sotaque. É como se a voz – assim como o traço, que é rabiscado a lápis – também fosse rabiscada, sem arte-final”, explica o cineasta, que passou um ano fazendo manualmente oito mil desenhos que compõem os 15 minutos de filme.
“A cultura chinesa é tão diferente – as atitudes, a lógica e o humor são tão distintos –, assim como nossa aparência, que me sentia como um alienígena. E o festival aconteceu em Jyangyin, uma cidade considerada de interior, sem muitos turistas. Quando estava acompanhado da menina argentina e da francesa, rodas de chineses se formavam ao nosso redor na rua. Para simbolizar essa disparidade tão contrastante, optei por deixar todos os personagens ocidentais em preto e branco, enquanto os orientais e os cenários são coloridos, porque essa era a sensação emocional de destaque que sentia, como se só eu fosse em preto e branco em um mundo colorido”, comenta.
Se não fosse esse olhar tão particular de Marão, “Até a China” poderia cair no lugar comum de filmes de viagens tão banais. Pouco importa, afinal, se a China é de fato daquele jeito, interessa a experiência.
“Até a China” mal começou sua carreira nos festivais. Em julho, está no Anima Mundi. Enquanto isso, Marão finaliza o coletivo “O Último Engolervilha” e pré-produz seu primeiro longa, “Bizarros Peixes das Fossas Abissais”.
Por Gabriel Carneiro