O caminho à sabedoria

Eugène Green é um cineasta particular. Desde “Toutes les Nuits” (2001), quando, aos 53 anos, estreou no cinema, o realizador americano – radicado na França –, com passagem marcante por Portugal, vem construindo uma obra (até à data, cinco longas e três curtas) não apenas inspirada no barroco, particularmente, no teatro barroco, como também um estilo cinematográfico ao mesmo tempo bastante característico e pouco variável: as entradas e saídas de quadro, os planos e contraplanos frontais embalados em monólogos, a crença fervorosa no poder das palavras, a ideia da câmera cinematográfica como um aparato revelatório, a aposta em uma energia imaterial que brota de corpos materiais etc. Seus filmes conseguem um equilíbrio particular e curioso. São obras difíceis, densas, complexas, autoconscientes, porém arejadas, com diversos tropos de contos de fada (lobisomens, cavaleiros e ogros), quase sempre à flor da pele. Ou seja: sentimo-nos distantes e íntimos, ao mesmo tempo, imersos em uma espécie de jogo de representação. “La Sapienza”, o longa mais recente de Green, talvez seja uma versão mais maturada do estilo e das crenças do realizador.

O filme nos traz a história de um arquiteto utilitarista francês, Alexandre (Fabrizio Rongione), que, infeliz no seu trabalho e em meio a um complicado momento no casamento, busca se renovar mergulhando na obra do arquiteto barroco italiano Francesco Borromini. Ao lado de sua esposa, Aliénor (Christelle Prot Landman), Alexandre segue na trilha das obras de Borromini. Em Stresa, no norte da Itália, eles cruzam com Goffredo (Ludovico Succio), um aspirante a arquiteto, e sua frágil irmã mais nova, Lavinia (Arianna Nastro). Alexandre concorda em levar Goffredo em sua turnê, enquanto Alié-nor permanece com Lavinia. O que se segue é um filme de uma tranquilidade lírica, algo de uma beleza revelatória bem característica do cinema de Green.

Este, talvez, seja seu filme mais acessível, embora Green continue o mesmo no que diz respeito à encenação. Segue capturando a energia que vem da ausência, ou melhor, que vem da ausência pós-presença: somos, a todo o momento, levados a experienciar a transformação da matéria inerte, quando, embora não seja mais visível, ainda é possível sentir a energia de quem estava ali. Os monólogos no olho da câmera também estão lá e talvez jamais tenham seguido tão radicalmente as rigorosas leis de pronúncia do realizador. Não há aquela musicalidade da declamação típica do teatro barroco. O que vemos é uma certa interiorização dos diálogos e uma espécie de exteriorização de um mundo através da palavra.

Em Green, quando um personagem fala, o mundo ganha vida através da palavra que anima seu corpo. Um elo definitivo e continuado com o mundo é estabelecido. Tornar sensível esse elo é a missão maior da mise en scène desse cineasta. E assim, “La Sapienza” ultrapassa o corpóreo e mesmo, podemos dizer, o terreno, e esbarra em cheio no misterioso e no mitológico. Sendo que o mítico, em Green, não se faz em uma oposição ao factual, como nosso senso comum às vezes tão apressadamente nos faz querer ver. O mito, ao contrário, como acreditavam os gregos, é um espaço de verdades na forma de uma história. Uma história que, ao ser contada, expressa verdades.

Sapienza é o nome da obra-prima de Borromini. Significa também sabedoria ou o conhecimento que nos leva à sabedoria. E este é o caminho que percorremos com os personagens deste filme. Pois se, no início, vemos Alexandre e Aliénor como que prostrados, como se estivessem sedados, mergulhados em conversas esporádicas e funcionais, o que se afirmará ao longo do filme é a possibilidade, através de comiseração com os outros e/ou com obras de arte, de aliviar a depressão, a solidão, as longas noites escuras da alma. Alexandre se apercebe que seus conhecimentos são meramente funcionais, que sua famosa arquitetura é absolutamente baseada em preceitos de extrema funcionalidade. Ele se dá conta de que seus conhecimentos são, em última instância, inúteis. Em Torino e Roma, o personagem e o filme nos entregam, então, uma das lições mais visualmente precisas da obra de Borromini: pois, no fim da estrada, há luz e uma sempre renovada aceitação da vida.

 

A Sapiência | La Sapienza
França/Itália, 104 min., 2014
Direção: Eugène Green
Distribuição: Supo Mungam Films
Estreia: 10 de setembro

 

Por Julio Bezerra

One thought on “O caminho à sabedoria

  • 11 de setembro de 2015 em 02:02
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    Na verdade um filme pretensioso e chato. Desperta em alguns “viagens na maionese” como a crítica acima.
    Vi numa sala de cinema em Paris, onde haviam dois espectadores, além de mim. Recomendado para quem busca genialidade onde não existe.

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