Visual fantástico
O cinema brasileiro recente é caracterizado por uma diversidade fílmica que, praticamente, não encontra paralelo em sua história. Das comédias globais, que inundam o mercado e fazem bilheterias na ordem dos milhões de espectadores, a filmes “irrelevantes”, na contramão do sucesso de público, uma gama de realizações que exige a lembrança para certas produções que correm o risco de diluição no rolo compressor da indústria cultural. Esse é o caso de “Sudoeste” (2012), de Eduardo Nunes, lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles.
“Sudoeste” é um filme que merece ser visto e revisto com a calma e a compassividade de suas imagens. Qualquer avaliação rápida dos propósitos de Eduardo Nunes pode levar a incompreensões, a juízos que mais revelam desconhecimento ou má vontade crítica. Primeiro, e principalmente, porque “Sudoeste” é uma realização que escapa ao que “normalmente” se vê e se espera de filmes nacionais. Claro, aqui se inclui hoje a filmografia autoral de diretores que caminham do lado de fora do mainstream. Ou seja, o longa de Eduardo Nunes, a considerar os caminhos da produção nacional com a Retomada, carrega traços que o permitem compará-lo a “Lavoura Arcaica” (2001), de Luiz Fernando Carvalho.
Desgarrado, de diálogo pouco poroso, mesmo com a produção “irrelevante” dos anos recentes, “Sudoeste” – como em grande parte ocorreu com “Lavoura Arcaica” – corre o risco de gerar certo culto. Mas, justamente por isso, que esse culto camufle as dificuldades de inseri-lo devidamente no contexto das questões presentes do cinema nacional. Trata-se, e o plano de abertura assim o revela com a maior evidência possível, de uma obra esteticamente ambiciosa; portanto, a exigir do espectador compreensão do que está em jogo nas imagens para além do fluxo das sequências. Vale dizer: Eduardo Nunes supõe um espectador iniciado, que possa ter em vista o quanto sua fita está em débito com o russo Andrei Tarkovsky.
Mas essa é uma situação que, creio, ocorreu com Luiz Fernando Carvalho e seu “Lavoura Arcaica”, a obra de Tarkovsky pesa e Eduardo Nunes fica na ambição, no maneirismo estético. “Sudoeste”, de fato, é um filme visualmente belo; a fotografia, em preto e branco, é esplendorosa, os infindos plongés despertam a atenção do mais desavisado espectador, o enquadramento fechado do rosto de um personagem na tela em formato Scope causa sensação de esmagamento… Ocorre que o uso abusivo desses recursos visuais deixa a sensação de exibicionismo, de que se trata de uma obra que prima pelo virtuosismo na forma de conceber imagens, pela excessiva ornamentação.
Ora, não se toma Tarkovsky por referência impunemente. A base filosófica e o fundo místico religioso impregnam praticamente todos os seus filmes. De modo que, para Tarkovsky, esculpir o tempo tem dimensão existencial, metafísica. Os recursos de estilo com que joga estão a serviço de composições que exibem a condição humana diante do imperscrutável, do inalcançável pela via racional. Quando essa base filosófica e esse fundo religioso não são suficientemente acoplados às imagens, o que se tem é um filme presunçoso, o qual em certa medida fica na superfície daquilo que impregna as grandes questões que acossam o realizador russo.
O fio narrativo de “Sudoeste” resume-se a uma trama que transcorre num dia, em uma vila do litoral. No plano inicial, uma carroça carrega uma grávida para uma pousada. Ela morreu no parto, mas o bebê, uma menina que recebe o nome de Clarice, sobreviveu. Ao longo do filme, acompanha-se Clarice crescer e chegar à velhice, enquanto a realidade ao seu redor continua no mesmo dia em que uma grávida morreu durante o parto.
O que pode frustrar o espectador que tenha em mente o cinema de Tarkovsky é que “Sudoeste” se afasta da dimensão filosófica e mística que poderia ter e adentra numa esfera similar ao do realismo fantástico. O roteiro envereda em confusões com personagens que entram e saem sem propósito definido, mas que, principalmente, tornam vazios os sentidos possíveis da separação entre a realidade circundante e a realidade vivida por Clarice. O resultado final é que a intenções de Eduardo Nunes parecem ter se sobreposto àquilo efetivamente realizado.
Mas afirmei acima que um filme como “Sudoeste” pode levar a juízos que revelem má vontade crítica. Sim, mas porque ele se expõe a esse risco quando procura adaptar à nossa realidade cultural uma maneira de conceber arte, filosofia e religião como instâncias interconectadas. Na medida em que, guardadas as diferenças de cultura, Eduardo Nunes encontrou obstáculos para fazer essa síntese, ele ficou com a superficialidade, com a pátina do que em Tarkovsky é tão somente estilo. A má vontade crítica no meu caso, então, decorreria mais da ambição no jogo de referências do que no reconhecimento de que “Sudoeste” merece ser lembrado como um filme visualmente belo, com uma narrativa fantástica.
Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado).