O universo obscuro feminino

Quando se passa os olhos em panorama pela cinematografia brasileira ao longo do tempo, a década de 1980 pode ser entendida como de transição – ou talvez de decadência em relação ao período anterior, tanto no que se refere à quantidade de filmes realizados, quanto ao valor artístico do que foi feito. Os anos de 1980 – em que o país saiu da ditadura – são acompanhados de grandes transformações, mas o cinema não foi a melhor caixa de ressonância daquele período: paulatinamente, a importância que teve entre intelectuais e segmentos ilustrados da sociedade nos anos de 1960 com o Cinema Novo – ou o Cinema Marginal – foi se esvaindo e com isso as produções se rarearam. O colapso do cinema nacional realiza-se, numa espécie de crônica de morte anunciada, nos anos do governo Collor, no início da década seguinte.

Principalmente, a partir da segunda metade daquela década, fazer cinema assemelhava-se a um investimento hercúleo, no qual os realizadores lutavam com adversidades de todo tipo. O contexto cultural dos anos de 1980 foi, de fato, pouco receptivo à ideia de cinema nacional. Exigia-se dos realizadores, então, uma grande dose de desprendimento, e a quase certeza de que o que faziam resultava de muito capricho pessoal, de iniciativa própria sem garantia de que houvesse a devida acolhida (os filmes daquele período praticamente refletem posturas individuais; por isso, acham-se dispersos, sem fio condutor que permita identificá-los num horizonte cultural amplo).

É nesse contexto assaz desfavorável que Suzana Amaral realiza “A Hora da Estrela” (1985), adaptação de novela de Clarice Lispector, lançado agora em DVD pela Versátil a partir de versão restaurada pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPBC). “A Hora da Estrela” é uma das abras mais marcantes dos anos de 1980. Trata-se de uma adaptação literária que se descola da obra de referência e se impõe como arte cinematográfica (ao ver o filme, os leitores da novela têm desta não mais que a sinopse, pois as imagens ganham autonomia e revelam sentidos das ações humanas que na literatura seriam preenchidas pela imaginação). Por isso, está entre as obras de nossa filmografia que mais profundamente perscrutam o onírico universo da intimidade de uma mulher: Macabéa, a protagonista.

Mesmo sendo o filme mais premiado no Festival de Brasília de 1986, mesmo sendo bem recebido e premiado num festival internacional do porte do de Berlim (Marcélia Cartaxo, que interpreta Macabéa, foi laureada como melhor atriz), “A Hora da Estrela”, como outros filmes também marcantes daqueles anos, ressente-se do clima desfavorável: com o tempo acabou caindo em certo limbo; é lembrado de modo vago, ocasional, sem que se lhe aquilate seu devido valor. Daí, então, que a nova cópia em DVD possa bem ser um pretexto para que se veja, ou reveja, e se reavalie em nosso contexto atual um dos grandes filmes de um período não tão prolífico, mas tampouco que se o ignore.

O que efetivamente se destaca no filme de Suzana Amaral não é propriamente a trama – tomada de empréstimo de Clarice Lispector –, mas a maneira como a câmara capta gestos, trejeitos banais em situações de indiscernibilidade entre o verossímil e o nonsense. Macabéa é uma jovem nordestina desengonçada, mal vestida, virgem, que trabalha de datilógrafa numa repartição de quinta categoria e divide espaço de dormida com outras três mulheres numa espelunca na cidade de São Paulo. Sem experiência em relacionamento amoroso, ela enamora-se de um rapaz igualmente nordestino. Assim como ela, ele se acha também imerso na grande metrópole: diante, pois, de uma realidade sórdida, mas perdido em fantasias.

Suzana Amaral aborda o casal com distanciamento. A câmara, invariavelmente, em plano médio flagra os dois em parques e praças da cidade, ondem entabulam conversas truncadas, sem laços afetivos ou de cumplicidade. Não há entreolhares do casal, tampouco se pode inferir o que cada um é, ou espera, em seus encontros fortuitos. Embora a trama seja centrada na figura de Macabéa, o distanciamento da câmara e a ausência de indícios destacáveis apenas permitem especular sobre seu universo de sentimentos.

Uma nordestina feia, ingênua, portanto, despreparada para as agruras de uma cidade que atropela sem dó nem piedade quem tem o coração puro? Uma mulher ensimesmada, esquisita – ou com alguma patologia mental que jamais se revela – como tantos que trafegam despercebidos, opacos na multidão insensível à estranheza ao lado? São questões assim que instigam especular sobre a Macabéa de Suzana Amaral. Mas “A Hora da Estrela” não oferece resposta a essas indagações. O que se tem é um filme que mantém até o fim uma zona de obscuridade em torno do caráter e do universo no qual circula a protagonista. Por isso, uma obra aberta, que não oferece chaves tanto quanto desafia quem dê respostas prontas a respeito do onírico universo íntimo de uma mulher.

 

Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)

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