A equação existencial
Em seus romances, o escritor Milan Kundera declarou que buscava apreender a situação fundamental de um personagem, que revelaria a essência de uma problemática existencial. Kundera batizou essa essência de código existencial do personagem.
O escritor tcheco não chegou a transformar sua intuição em um conceito. De qualquer forma, o termo é sugestivo para a compreensão do personagem audiovisual. Falar de uma questão existencial é tratar de algo abstrato, impalpável, sublime, porém etéreo. Por outro lado, a ideia de código nos remete a forma, lógica, coerência. É como se a alma do personagem tivesse uma geometria. O código existencial nos oferece, de saída, um sentido para o personagem: de toda sua história, da infinidade de grandes e pequenos momentos, de todos os infindáveis conflitos que uma vida pode abarcar, o que estará impresso na tela é, ao fim, o que se relaciona com o código existencial do personagem.
A analogia com o código pode ir mais longe. É possível dizer que, ao longo de uma narrativa, o que se desenrola diante dos nossos olhos é uma equação existencial. O começo do filme expõe um problema com todas as suas incógnitas e variáveis. A narrativa nada mais é do que o desdobramento dessa equação. A lógica narrativa, porém, não lida com números, mas com a variedade das situações humanas. Os termos da equação são angústias e afetos, medos e alegrias, desafios e dilemas.
Nas cenas iniciais de “O Filho da Noiva”, vemos um prólogo em que o garoto Rafael é destemido, desafiando os meninos mais velhos da rua. Assim que a situação se complica, Rafael corre em disparada, até encontrar refúgio no lanche da tarde e no aconchego oferecidos pela mãe.
O garoto observa a mãe fascinado, e daí um corte direto nos leva aos mesmos olhos, agora de adulto. O olhar é apagado e vazio, encoberto pela fumaça do cigarro do insone Rafael. A grande incógnita da equação aparece: o que terá acontecido para aquele garoto ter virado este adulto?
Na manhã seguinte, Rafael chega agitado e ofegante para tocar os negócios. O restaurante da família está a perigo, Rafael atende duas ligações ao mesmo tempo, atravessa a rua sem olhar, fuma um cigarro atrás do outro, prova os pratos, tenta encontrar seu contador. Como observa um personagem secundário, ele parece um malabarista chinês que precisa correr para lá e para cá para girar os pratos e não os deixar caírem.
Ao mesmo tempo, em menos de dez minutos, descobrimos que ele não tem uma relação muito calorosa com a namorada, que ele não confia nos funcionários, que vive em conflito com a ex-mulher, que é distante da filha. Um inventário de relações esgarçadas. Eis então que a equação existencial se completa na tela. O pai surge para chamar Rafael para visitar a mãe. Ela está no asilo, com Alzheimer. Rafael diz que não pode, tem problemas a resolver. O pai lembra que faz um ano que o filho não visita a mãe, e naquele dia é aniversário dela. Rafael explode sua raiva contra o contador desaparecido, que chega justamente neste momento.
Estamos diante, portanto, de uma situação existencial. O garoto que podia tudo, tinha para onde correr; hoje ele corre para um lado e para o outro, perdido. Antes ele corria para o acalanto da mãe, hoje ele corre para fugir do laço desfeito. Por ter perdido o vínculo original, todos os vínculos do Rafael adulto são frágeis, incompletos.
Compreender a equação existencial do personagem, ser capaz de enunciá-la com uma ou duas metáforas essenciais revela mais sobre o personagem do que extensos perfis recheados de psicologismo. O personagem tem muitos aspectos e muitas camadas, mas, ao fim, todos eles emanam do mesmo lugar, que é seu código existencial. Nada do que irá preencher as páginas em branco se relaciona com outra coisa senão com essa questão de fundo.
Pode ser uma equação de primeiro grau, para um filme simples e palatável, ou uma lousa coberta de colcheias, sinais, parêntesis, letras e números em profusão. Uma equação no estilo Einstein, que para os simples mortais são apenas rabiscos incompreensíveis, mas para um físico faz todo o sentido. Um personagem de série dramática, com o tempo de narrativa para o desenvolvimento de suas mil camadas, muitas delas ambíguas, é uma equação desse tipo.
A origem etimológica da palavra narrar tem a ver com conhecer. Da infinidade de aspectos da nossa existência, cada narrativa elege um problema para jogar luz. O narrador estabelece: agora vamos nos deter nisso. O número de problemas, combinado com os inúmeros ângulos de abordagem, tornam o jogo potencialmente infinito.
Nenhum de nós, por mais intensa e agitada que seja a vida, tem condição de experienciar tantas questões existenciais. As narrativas existem justamente para ampliar nosso espectro de compreensão. Contar e ouvir uma história é uma forma de sabedoria.
Por Ricardo Tiezzi, escritor e professor