Ouvindo roteiristas

A política de fomento à produção e à veiculação audiovisual promovida pela Ancine e a regulamentação da TV paga ocorrida em 2011 expandiram de maneira significativa o mercado de trabalho do setor. Hoje, a demanda é bem maior do que três anos atrás pelos muitos profissionais necessários à feitura de obras cinematográficas e televisivas. Por motivos que, espero, fiquem claros ao longo deste texto, os roteiristas estão, particularmente, tocados por esse avanço da atividade, que incide não apenas no aumento das possibilidades de trabalho, mas também na qualidade dos roteiros e na relação do roterirista com diretores e empresas produtoras.

Luis Bolognesi (“Bicho de Sete Cabeças”, “Chega de Saudade”, “Uma História de Amor e Fúria”, “BirdWatchers”) calcula que, entre 300 e 350 roteiristas, estão trabalhando profissionalmente no Brasil, um recorde. Estão contratados para projetos de realização (cinema e TV) contemplados nos editais, respondem a ofertas de trabalho oriundas de editais específicos como os da linha Prodav 4 (laboratórios de desenvolvimento) e dos Núcleos Criativos, além da novidade de empresas estarem montando setores de desenvolvimento de projetos, com roteiristas como diretores de criação. Bolognesi: “O trabalho do roteirista é a base, o fundamento da cadeia produtiva do audiovisual. Empregar autores roteiristas em larga escala, pelo país inteiro, é o investimento mais sensível na melhoria da qualidade de toda a cadeia produtiva. É o cerne do maior salto qualitativo que o audiovisual brasileiro já deu em sua história.”

Poder de decisão

“Todos perceberam a importância do roteiro, mas poucos, a importância do roteirista”. É o que diz Newton Cannito (“9mm: São Paulo”, “Cidade dos Homens”, “Quanto Vale ou É por Quilo?, “Bróder!”). Ele levanta um aspecto mencionado por todos os entrevistados, que é a relação do roteirista com a produção e a direção. As artes audiovisuais são um trabalho coletivo, todos são autores e existe um grupo de autores determinantes, geralmente, produtor, diretor e roteirista. Na grande indústria televisiva, tanto nas telenovelas da Globo como nas telesséries americanas e europeias que estão bombando, o roteirista detém a decisão final. Em Hollywood, compartilha esse poder, em igualdade de condições, com diretor e produtor. Nos cinemas independentes de muitos países, incluindo o Brasil, o roteirista tem pouco poder de decisão. Newton acredita que, com o crescimento da produção, essa perigosa distorção será percebida com clareza pelo mercado, que dará mais poder ao roteirista.

Ricardo Hofstetter (“Malhação”, “Escolinha do Professor Raimundo”), presidente da Associação de Roteiristas – AR, afirma que as providências da Ancine “deram uma enorme aquecida no mercado, fato que nunca aconteceu antes”. Acredita que o novo cenário produtivo “vai melhorar a qualidade de nossos roteiros, o que já está acontecendo”, e defende investimentos ainda mais focados no roteirista. Critica: “ainda há um ranço forte de que o investimento deve ser feito em produção, até nos Núcleos Criativos produtores abocanham a maior parte do dinheiro, o que acho um absurdo”. Voltando a Newton Cannito, ex-presidente da AR e ex-Secretário do Audiovisual, ele diz que até entende a lógica do foco na produção, mas estranha o fato de “os editais permitirem que Núcleos Criativos tenham diretores e produtores como líderes”.

Qualidade e formação

Roteirista de “Transeunte”, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, “A Floresta que se Move” e das séries em produção “Ligações Perigosas” e “Justiça”, Manuela Dias concorda que a atividade vive um momento inédito, mas se preocupa com a qualidade: “Não acho que o mercado produza bons profissionais. Escolas, cursos, intercâmbios culturais, horas de voo em frente ao computador e, sobretudo, ter o que dizer é o que forma um roteirista.” Não basta saber escrever e conhecer o assunto. “Por exemplo, uma pessoa achar que, por ter experiência na favela, pode escrever um filme sobre a favela. Transformar uma experiência pessoal em arte, seja ela qual for, é um talento especial e demanda muita inteligência emocional, distanciamento, ou anos de análise”. E apresenta uma resposta para sua preocupação: “O mesmo mercado que está criando essas oportunidades vai filtrar os talentos, é um processo natural. A democratização dos meios de produção audiovisual gera, em contrapartida, uma exigência maior de bons produtos”.

Segundo Lucas Paraizo (“O Rebu”, “O Caçador”, “A Teia”), autor do documentário “O Roteirista” e do livro “Palavra de Roteirista” (Senac SP), “Vale mais desenvolver roteiros e, eventualmente, descartar alguns do que produzir filmes sem a maturidade suficiente para sair do papel”. Como Manuela, Lucas se refere à busca da qualidade e à formação. Apesar do crescente número de escolas de cinema e TV no país, “o problema é a carência de bons professores e de uma estrutura de estudos que alie teoria e prática”. Considera-se sortudo por ter estudado durante três anos na Escola de Cuba, dedicando oito horas diárias ao roteiro. Segue: “Formação, não apenas universitária ou técnica, mas também a formação humana, de ponto de vista, de visão de mundo, de saber olhar para o nosso redor de maneira diferenciada. Um roteiro não se sustenta apenas com uma boa ideia, é sua premissa e o desenvolvimento dela que permitem que sua estrutura ganhe camada e relevância”.

Como engenheiros

Em 2013, Nizan Guanaes, expoente da publicidade brasileira, publicou na “Folha de São Paulo” um artigo que deu o que falar no mundo corporativo. Intitulado “Precisa-se de Roteiristas”, o texto dizia que “assim como os engenheiros, eles serão essenciais para formar o novo país”. Ele se referia ao novo país que deve se organizar no século XXI, em decorrência das grandes transformações que a humanidade e o planeta estão vivenciando, e à suma importância do audiovisual nos acontecimentos que nos aguardam no futuro. Importância estratégica, econômica, cultural, comportamental, espiritual. E tendo em conta que, na velocidade de nosso tempo, o futuro está logo ali.

 

Por Orlando Senna, escritor e cineasta

One thought on “Ouvindo roteiristas

  • 2 de fevereiro de 2016 em 20:54
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    Muito bom o texto. Toca no ponto mais importante da indústria audiovisual brasileira atual.

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