Três longas brasileiros participam do Festival de Guadalajara
Por Maria do Rosário Caetano
O Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, que realizará sua 32ª edição de 10 a 17 de março, selecionou três longas-metragens brasileiros para suas principais mostras competitivas. “As Duas Irenes”, de Fábio Meira, participa da competição de longas ficcionais, de alcance ibero-americano. “Curumim”, de Marcos Prado, disputa o troféu de melhor documentário ibero-americano. E “Corpo Elétrico”, de Marcelo Caetano, integra competição internacional que reúne filmes gays.
“As Duas Irenes”, filme que marca a estreia de Fábio Meira na direção de longas-metragens (foi selecionado para a mostra “Generation” do Festival de Berlim), centra sua narrativa no conflito de uma adolescente ao descobrir que seu pai tem outra filha de idade regulada com a dela e com o mesmo nome (Irene).
“Curumim”, o poderoso e subestimado documentário de Marcos Prado, diretor de “Estamira” e “Paraísos Artificiais”, além de produtor de “Tropa de Elite”, mergulha na história do amazonense-carioca Marcos Archer, o Curumim, primeiro brasileiro condenado à morte (e executado) na Indonésia.
“Corpo Elétrico”, longa de estreia de Marcelo Caetano, roteirista e assistente de direção (de “Tatuagem” e “Mãe Só Há Uma”), participou do Festival de Roterdã, na Holanda. O filme, uma ficção, conta a história de Elias, jovem que chega do interior para trabalhar numa fábrica de confecções femininas. Seu sonho é ter sua própria grife.
Na competição de curtas-metragens, que reúne 40 títulos de vários países, o Brasil concorre com o brasiliense “Rosinha”, o “Jules e Jim da terceira idade”, dirigido por Gui Campos (premiado em Gramado), e o paulistano “Pássaros na Boca”, de Gustavo Ribeiro.
Ofélia & Maria Novaro
O Festival de Guadalajara abrirá, este ano, espaço nobre para dois importantes nomes femininos de sua história cinematográfica: a atriz Ofélia Medina e a cineasta Maria Novaro. Ofélia receberá homenagem por sua longa e consagrada carreira cinematográfica, cujo momento mais luminoso é o filme “Frida, Natureza Viva”, de Paul Leduc. Maria Novaro, diretora do festejado “Danzón”, mostrará em sessão de gala, seu mais novo longa-metragem, “Tesoros”.
A mexicana Ofélia, que interpretou a pintora Frida Kahlo (1907-1954) também no teatro (com o monólogo “La Medina de Pasada por Fridonia” ou “Cada Quién su Frida”), deve incendiar, com discurso inflamado, a noite em que será festejada pelo festival. Afinal, seu país vive em transe desde que Donald Trump tomou posse como presidente dos EUA e prometeu construir muro fronteiriço de três mil metros de extensão, a ser pago com impostos do povo mexicano.
A atriz visitou o Brasil, em 2006, quando integrou o juri oficial da Jornada de Cinema da Bahia. Na ocasião, entrevistei-a. Eis o fruto de nossa conversa, centrada em suas recriações de Frida Kahlo, nos direitos das mulheres zapatistas, num grão especial (a amarula) e na saúde das crianças indígenas.
A paixão por Frida Kahlo:
Esta paixão começou quando eu tinha onze anos. Fui uma menina educada com muita liberdade. Meus pais, defensores e praticantes de educação livre, laica e popular, me levaram para visitar a casa de Frida. Havia, no México, naquele tempo, imenso orgulho e muito respeito pelo período dos grandes muralistas (Rivera, Siqueros, Orozco). Período que Frida viveu intensamente, pois foi companheira de Diego Rivera. Ao ver aqueles imensos murais, tive um choque. Eles me trouxeram uma inquietação até erótica, tocaram regiões de meu corpo com sensações que eu desconhecia. Tudo era tão colorido, tão forte, tão mexicano! Naquela época, minha casa já era de plástico.
Casa de plástico?
Sim, pois meus pais, mesmo sendo modernos e cultores de uma educação avançada, acabavam contaminados pelos modismos de então. E a moda era ter jarros com flores de plástico, coisas “modernosas” que chegavam de fora. Já na casa de Frida, todos os objetos eram orgânicos. Fiquei tão tocada pela visita à casa da pintora, que minhas amigas começaram a dizer que eu me parecia com ela. Chegavam a emendar, com lápis, minhas sobrancelhas, seguindo o modelo Frida. A casa de Frida & Rivera passou a ser meu obscuro objeto do desejo. Sempre que podia, fugia da escola para visitar aquela casa tão fascinante. Aos 16 anos, eu era uma jovem cheia de ideias. Ao mesmo tempo em que ingressava na Escola Preparatória, me filiei ao Partido Comunista. Com minhas amigas, falava grosserias e palavrões, como só costumavam fazer os homens. Fumava cigarro comum e até marijuana. Só beber, nunca bebi. Minha formação era de bailarina, mas aos 18 anos, deixei a dança. Queria novos desafios. Queria ser como Frida, uma mulher à frente de seu tempo, uma mulher que enfrentou o patriarcalismo do marido Diego Rivera, que se relacionou amorosamente com outras mulheres. Ela me fascinava.
O convite de Paul Leduc para “Frida”
Não foi Paul quem me convidou. Fui eu quem o procurou e propus que dirigisse o filme. Ele, que tem uma cultura social muito grande e era um homem de esquerda, aceitou com entusiasmo. Não fez coro, em momento algum, à imagem com que muitos a viam. Sim, porque no México, ainda hoje, há quem veja Frida com grandes restrições. Para estes, ela nunca passou de uma mulher enferma, comunista, lésbica, masoquista e drogadita. Esta visão redutora vem de cabeças que não querem compreender a riqueza da vida dela, uma mulher livre, que experimentou tudo o que a vida lhe oferecia, sem se entregar às limitações impostas por sua saúde frágil.
Prêmios internacionais
Há duas informações que julgo relevantes. Antes de fazer “Frida, Natureza Viva” eu era uma atriz bastante conhecida no México, pois fui rainha das telenovelas (risos). Quanto ao filme de Paul Leduc, há que se destacar que ele foi realizado em processo cooperativo e em 16 milímetros. Só depois foi ampliado para 35 mm. Em termos financeiros, foi uma produção muito modesta. Quando o filme estava em fase de finalização, todos – menos Paul Leduc e eu – venderam sua participação ao produtor Manuel Barbachano Ponce (1924-1994). O filme estreou no México e foi recebido com comedimento. Depois do estouro no Festival de Havana (1985), quando ganhamos o Gran Coral Negro e fui escolhida a melhor atriz, a crítica mexicana passou a demonstrar interesse. Ganhei, também o Prêmio Ariel (o Oscar mexicano) e o prêmio de melhor atriz em Cartagena, na Colômbia. Ainda hoje o filme tem boa procura nas locadoras mexicanas. Mas fora de nosso país, ele é propriedade de Ted Turner. A família Barbachano o vendeu para o dono da CNN. Repito sempre que falo da produção de “Frida, Natureza Viva”, que Barbachano entrou com a película (os negativos), com a câmara 16 milímetros e com oitocentos dólares. Nunca neguei a importância dele para o cinema mexicano, pois produziu filmes como “Raíces” (Alazraki/1953) e “Nazarín” (Buñuel/58), mas lamento muito que pouco antes de morrer, ele tenha vendido todo seu acervo, inclusive “Frida”, para a CNN americana.
Fridomania
Não sei dizer exatamente em que medida nosso filme contribuiu para o interesse internacional por Frida. O que sei é que depois que Madonna e Jennifer Lopez disseram que queriam interpretar Frida no cinema, teve início uma verdadeira febre, passamos a viver uma “fridomania”. Hoje, as obras dela chegam a custar mais caro, nos leilões, que as de Diego Rivera. Ela é cultuada nos EUA, no Japão, na Holanda. Mas no México ainda há quem a veja como uma “bigotona marijuana” (uma bigoduda maconheira). Por sorte, seus diários ganharam edições em espanhol e muitas outras línguas e nos revelaram a riqueza de sua vida & obra, principalmente de sua militância política. Ela militou apaixonadamente, relacionou-se com Leon Trotsky (1879-1940), enfim, fez tudo que pôde para enfrentar os desmandos políticos em meu país.
A Frida de Salma Hayek
Não vi o filme norte-americano, nem quero ver. Mas deixo claro que não compartilho das críticas feitas ao filme pelo fato de ele se passar no México, com personagens mexicanos, e ser falado em inglês. Acho que o cinema nos permite este tipo de liberdade. Jesus Cristo e Spartacus falam inglês nos filmes de Hollywood. Além do mais, Frida falava, além do espanhol, sua língua materna, o inglês e o alemão. O pai dela, o fotógrafo Willelm Kahlo (1872-1941) era alemão. Ela escrevia em inglês para Nicolas Murray.
Embaixadora do Movimento Zapatista
Em 1985, ano em que “Frida, Natureza Viva” ganhou o mundo, participei da fundação de um grupo de Defesa dos Povos Indígenas. Não sei se você sabe, mas o México se dizia e se sentia (se diz e se sente, ainda) um país europeu, espanhol. No máximo, admitia-se que viviam por lá uns cinco mil índios. Depois, por pressão de organizações como a nossa, o Estado passou a admitir que nós, mexicanos, que somos mais de 100 milhões, contamos com 15% de índios. Mesmo este dado é falso, pois escora-se em variável muito discutível: “só é índio, para o Estado, quem fala sua língua materna, ou seja, uma língua indígena que não seja o espanhol. Pode ser bilíngue, mas se não falar uma língua indígena, deixa de ser índio”. Só que temos milhões de mexicanos-índios que não lêem, nem escrevem, em nenhuma língua. Antes de nosso trabalho, que ganhou ressonância, índios eram presos por qualquer problema. Como não falavam espanhol, os jogavam nos cárceres. Começamos, então, a defender os falantes das 56 línguas indígenas que continuam vivas no México. As mais importantes são a língua nahua, falada no centro do país, a maia (falada na Península e em Chiapas) e a otomi (ñhañhue). O que concluímos? Que a Constituição do México não entende os índios. Por isto, traduzimos a Constituição para as línguas indígenas, e estruturamos ajuda que unia advogados e jesuítas. No estado de Vera Cruz, fui ameaçada de morte pela Polícia, em 1990. Amigos me aconselharam a cuidar só de crianças indígenas, pois corria mesmo risco de vida. Fui ao Presidente Salinas e disse a ele que crianças indígenas viviam em situação gravíssima de desnutrição e abandono. “Me prove que isto acontece, me traga dados”, disse ele. E ofereceu dinheiro à nossa instituição para que fizéssemos um diagnóstico. Duzentos médicos foram treinados e, durante, um mês, estudaram todas as etnias. Resultado: constatamos altos índices de mortalidade infantil e que 67% das crianças indígenas estavam desnutridas. Diarreias matavam milhares de crianças. Me obcequei por esta situação. Nossa instituição passou, então, a estudar o assunto em profundidade e descobrimos que na época da Conquista, o amaranto, um cereal originário da América Central e importantíssimo na alimentação dos povos indígenas, caiu no índex da Igreja. O Papa, em 1560, declarou seu extermínio.
Amaranto, o grão alucinógeno?
Esta é a história da infâmia que não é contada em nossas escolas, nem em nossos livros de história. O amaranto era o principal alimento dos índios da América Central e era cultivado ao mesmo tempo que o milho. Ele era plantado em setembro e colhido em novembro. Os festejos do Dia dos Mortos, tão importantes na cultura mexicana, tinham a pequena semente do amaranto como objeto de rituais. Ele era misturado com sangue sacrificial e melaço e servido em pequenas caveiras. A Igreja achou que aquilo era alimento do demônio. Mandou colocar fogo nas plantações de amaranto, pois, na avaliação dos colonizadores católicos, os índios tinham que cultivar o Deus do Cristianismo. O amaranto, que formava com o milho e o feijão a base proteica da alimentação dos povos pré-colombianos, foi (quase) exterminado em três anos. Sobrou o amaranto silvestre. Um de nossos intentos é recuperar seu cultivo. A questão da alimentação é muito séria. Eles dão Leite Nestlé (em pó) para os índios. Só que os índios não têm dinheiro para comprar água (três pesos cada garrafa de água mineral) e dissolver o leite. Acreditamos que a recuperação do amaranto vai ajudar (já está ajudando) no combate à desnutrição. Há 14 anos cuidamos e estimulamos seu cultivo.
Atenção às crianças indígenas
Durante um bom período, pesamos todas as crianças e começamos a alimentá-las com amaranto. Em seis meses, notamos a diferença. E desenvolvemos um trabalho de reeducação da mulher indígena, que é estimulada por uma medicina mercantilizada a dar leite em pó aos filhos, pois teriam o “leite fraco”. Este absurdo é fruto da ganância de empresas que querem vender seus produtos. É sabido que a mulher que alimenta seu filho produz determinados hormônios, que isto faz parte do processo natural da vida. Mas a indústria do leite em pó não quer saber. Quer vender grandes carregamentos de sua mercadoria. Com o Instituto de Saúde do Governo, durante quatro anos, atuamos em quatro regiões críticas: Chiapas, Vera Cruz, Yucatan e Guerrero. Mas aí veio 1994…
O Movimento Zapatista
A rebelião Zapatista colocou os governantes contra nós, pois fomos lá ajudar aquele movimento reivindicatório tão importante. Nossa organização perdeu todo o apoio estatal. E sabe que um de nossos maiores problemas foi o Comandante Marcos?! Defendíamos o amaranto e uma alimentação balanceada. Ele achava um absurdo. Dizia que queríamos convencer os pequenos criadores de gado da região a abandonar suas vacas. Dizia que – pelo nosso modo de pensar – queríamos forçar os moradores de Chiapas a transformarem-se em vegetarianos. Discutimos muito com ele. Até entendermos que não adiantava falar com os homens do Exército Zapatista. Nosso trabalho só daria certo se sensibilizássemos as mulheres zapatistas. E foi o que fizemos. Criamos cozinhas coletivas. O Estado de Chiapas tem 3 milhões de habitantes, dos quais, uns 500 mil vivem nas comunidades zapatistas.
“Vozes Inocentes”(2005), de Luis Mandoki
Quando Mandoki me deu o roteiro de “Vozes Inocentes” para ler, fiquei muito tocada com o tema, a história de um menino de doze anos que lutou na guerra civil de El Salvador (1980-1992). Só que o roteiro me pareceu falso. Sozinha e sem autorização dele, comecei a reescrevê-lo. Ele gostou da ideia e me deu liberdade total. Dezesseis cenas que estão no filme foram escritas por mim. O filme teve enorme repercussão, foi indicado ao Oscar, pelo México, concorreu a seis ou sete prêmios Ariel, e teve lançamento internacional.
Militância política e o espaço da atriz
Houve um momento, entre 1998 e 2001, no qual tudo se tornou realmente muito difícil. Tão difícil, que, temendo pela vida dos meus filhos, aceitei ajuda econômica do grande ator mexicano Pedro Armendáriz Jr. Graças e ele, meus filhos foram estudar em Vermont, nos EUA. O prefeito de San Cristobal de las Casas, cidade situada na região de Chiapas, me expulsou e me colocou na condição de persona non grata. Todos temiam que, ficando no México, meus filhos fossem sequestrados para que eu parasse de defender as causas que defendia. Mas o pior já passou.
Americanos?
Não aceito que os habitantes dos EUA se definam como americanos. Eles precisam arrumar um nome para o país e para a nacionalidade deles. Estados Unidos da América não é nome de país. Mas, mais que isso, nós precisamos assumir nossa condição de índios. Quando os colonizadores espanhóis e portugueses vieram para cá, eles não trouxeram mulheres. Nascemos todos, por isto, de mães índias. Somos ameríndios. Nosso continente devia se chamar Ameríndia. Por que só queremos valorizar a matriz europeia do colonizador-homem? Países como México, Peru, Equador e Bolívia contam com fortíssima presença indígena.
Negros no Brasil, Colômbia, Venezuela e Cuba
Que índios e negros sejam valorizados em nossas culturas, história e nos planos de políticas públicas. Não podemos, eternamente, imaginar que somos europeus.
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