Festival Olhar de Cinema investe em filmes híbridos

O Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba) chega à sua sexta edição fiel ao cinema contemporâneo, sem abrir mão do diálogo com momentos luminosos do passado. Por isto, escalou filmes independentes, como o vigoroso drama social venezuelano “A Família”, de Gustavo Rondón (convidado para noite de abertura), e “Baronesa”, de Juliana Antunes (no encerramento), organizou mostra retrospectiva de F.M. Murnau e reuniu, em “Olhares Clássicos”, filmes de Renoir, MacLaren, Joaquim Pedro, Tonacci e Edward Yang.

A mostra retrospectiva de Murnau soma dez filmes, sendo oito produções realizadas na República de Weimar (incluindo os clássicos “Nosferatu”, “A Última Gargalhada” e “Fausto”) e duas em sua fase norte-americana (“Aurora” e “Tabu”, este em parceria com Robert Flaherty).

Desta quarta-feira, 7, até o dia 15 de junho, serão exibidos, em vários cinemas curitibanos, 125 filmes oriundos de países da Ásia, Europa, Américas e Oriente Médio. O Brasil participa de várias das mostras competitivas e informativas.

A competição principal reúne onze longas-metragens (quatro ficções, cinco documentários, um deles, experimental, e dois “híbridos”). O conceito “híbrido”, ou seja, “filmensaios” que misturam diversas linguagens, são a definição dos dois concorrentes brasileiros: “Fernando”, de Igor Angelkorte, Júlia Ariani e Paula Vilela, e “Navios de Terra”, de Simone Cortezão.

Completam a competição os ficcionais “Corpo Estrangeiro” (Raja Amari, França/Tunísia), “Grande Grande Mundo” (Reha Erdem, Turquia), “Newton” (Amit Masurkar, Índia) e “Rey” (Niles Atallah, Chile), os documentários “300 Milhas” (Orwa Al Mokdad, Síria), “Soldado” (Manuel Abramovich, Argentina) e “Vangelo” (Pippo Delbono, Itália), que se somam ao documentário experimental “El Mar La Mar (Bonnetta & Sniadecki, EUA).

Na competição de curtas, o Brasil marca presença com seis filmes, que se somam a produções do Canadá-Haiti, França, Espanha, Grécia, Colômbia-Suíça, México e Portugal-Bulgária. Os títulos brasileiros são os ficcionais “Acaiaca” (Leonardo God God), “Estado Itinerante” (Ana Carolina Soares), “O Porteiro do Dia” (Fábio Leal), “Regresso de Saturno” (Bianca Muniz e Marcus Curvello), e os documentários “Na Missão com Cadu” (Freitas, Benfica & Brito) e “Nunca É Noite no Mapa” (Ernesto Carvalho).

No segmento “Outros Olhares”, dedicado a filmes de experimentação estética ainda mais evidente, serão exibidos onze longas e treze curtas. O Brasil marca presença como os documentários “Meu Corpo É Político”, de Alice Riff, e “A Casa de Lúcia”, de João Marcelo e Lúcia Luz, e o ficcional “O Homem Livre”, de Álvaro Furloni. Completam a mostra longas vindos das Filipinas, Rússia-Polônia, Alemanha, Butão-Hong-Kong, Austria-Suécia, China (dois títulos) e Coreia do Sul.

Pequenos Olhares

Este ano, além das diversas mostras, seminários, debates, oficinas, masterclass e reuniões de negócios em torno de coproduções, o festival vai apostar, também, na formação de público, acreditando no ditado popular “é de pequenino que se torce o pepino”. Ou seja, vai apresentar doze filmes (onze curtas e um longa-metragem) às crianças e pre-adolescentes. O longa escolhido é o espanhol “Psiconautas, as Crianças Esquecidas”, de Alberto Vazques e Pedro Rivera, finalista ao Prêmio Platino/Animação (entrega em 22 de julho, em Madri).

Os curtas infanto-juvenis são “A Piscina de Caíque” (Raphael da Silva), “Caminhos dos Gigantes” (Alois di Leo), “Desmonte” (Mariana Cavalcanti), “Garoto VHS” (Carlos Reichel), “Médico de Monstro” (Gustavo Teixeira), “Taylor” (Cali dos Anjos), “Dois Trens” (da russa Svetlana Andrianova), “Lago de Cristal” (Jenniffer Reeder, dos EUA), “O Horizonte de Bene” (Eloic Gimenez e Jumi Yoon, da França), “Ringo” (Adrià Pagès, da Espanha) e “Teddy Tranquilo” (Tomeslav Greg, da Croácia).

A produção do Estado que sedia o Olhar de Cinema será mostrada na “Mirada Paranaense”. Serão exibidos oito curtas-metragens: “Nosmanteremosfirmes” (Diego Florentino), “A Canção do Asfalto” (Pedro Giongo), “A Cor do Silêncio” (Karize Kresteniuk), “A Rua Muda” (Eduardo Colgan), “O Mundo Estratifica o Corpo se Desloca” (Igor Urban), Órion” (Rodriane DL), “Sobejar” (Helena Volani) e “Você Ainda Não Está Morta” (Ana Johann).

Edward Yang

Na “Olhares Clássicos”, o Brasil comparece com filmes de Joaquim Pedro de Andrade (“Os Inconfidentes” e “Couro de Gato”), Andrea Tonacci (“Conversas do Maranhão”), Júlio Calasso (“Longo Caminho da Morte”) e Fernando Severo, prata da casa, com o curta “Visionários”. A eles somam-se o chinês insular Edward Yang (“História em Taipei”), realizador que partiu cedo, mas deixou obra das mais substantivas (vide “Yi Yi – As Coisas Simples da Vida”), os mestres Jean Renoir (“Boudu, Salvo das Águas”) e Norman McLaren (com 55 minutos de seus inventivos curtas e curtíssimos), Sarah Maldoror (Monangambé), Shirley Clarke (“Momento Assustador”), Jindrich Polák (“Viagem ao Fim do Mundo”) e Clemens Klopsfenstein (“História da Noite”).

A Mostra Foco vai jogar luzes sobre a tailandesa Anocha Suwichakornpong. Dela serão exibidos curtas, médias e dois longas-metragens (“História Mundana” e “Dao Khanong”). Para enriquecer o Foco, a diretora escolheu um cineasta de sua família espiritual, Apichatpong Weerasethakul, para integrar sua mostra. Dele será exibido o primeiro longa, “Objeto Misterioso ao Meio-Dia”, acompanhado do média “Fantasmas” (de Anocha, que estará presente em Curitiba).

No segmento “Sessões Especiais”, será exibido novo documentário (“O que me Motiva”) do chileno Ignacio Agüero, corroteirista do grande vencedor do Olhar de Cinema, ano passado (“O Vento Sabe que Voltarei à Casa”, de Torres Leiva), dois curtas e um longa (“Não Reconciliados”) de Jean-Marie Straub, “Modo de Produção”, da brasileira Dea Ferraz, e novos filmes do argentino Gustavo Fontán (“O Limoeiro Real”) e do sul-coreano Lu Zhang (“Um Sonho Tranquilo”).

Aurora do cinema

O “Olhar Retrospectivo”, dedicado a Murnau, vai concentrar-se na obra deste que é considerado, junto com Fritz Lang, o nome máximo da era muda germânica. Truffaut costumava dizer que ninguém podia definir-se como crítico de cinema, se desconhecesse “Aurora”.

A carreira de Friedrich Willem Murnau (1888-1931) durou pouco mais de dez anos, intensos e muito produtivos. Sua vida também foi breve (morreu aos 42 anos, num acidente de carro).

O legado do artista compõe-se com 21 filmes, quatro deles realizados nos EUA. Além de “A Última Gargalhada” (ou “O Últimos dos Homens”) e “Aurora”, suas obras-primas, o mundo reconhece como patrimônio universal filmes como “Nosferatu”, que mereceu bela recriação de Werner Herzog, e “Fausto”, baseado em Goethe.

A retrospectiva montada pelo Olhar de Cinema é das mais completas já realizadas no Brasil. Até porque muitos dos filmes do cineasta desapareceram (em especial os cinco primeiros realizados entre 1919 e 1922). A mostra curitibana traz dois títulos datados de 1921 (Murnau chegava a dirigir até quatro filmes num só ano): “A Caminhada Noite Adentro” e “O Castelo Vogelöd”, e outro de 1922, “Fantasma”. Neste mesmo ano, começa a fase áurea do realizador, com “Nosferatu”.

Rever o filme, que é uma adaptação não-autorizada do “Drácula”, de Bram Stoker, constitui experiência das mais enriquecedores. E mais, ainda, se acompanhada do filme “A Sombra do Vampiro”, espécie de “making of póstumo” de “Nosferatu”, realizado em 2000, pelo cineasta Edmund Elias Merhige. Embora o filme contemporâneo não esteja à altura de seus personagens – Murnau (John Malkovich) e o ator Max Scheck (Willem Dafoe), que incorporou o vampiro com obsessão stanislawskiana – ele merece ser visto. Afinal, “A Sombra do Vampiro” evoca, com muita liberdade, os loucos, inventivos e perturbadores bastidores “Nosferatu”, um dos primeiros clássicos do horror cinematográfico. O filme de Merhige foi lançado no circuito alternativo brasileiro, embora com baixa receptividade.

Depois de “Nosferatu”, Murnau faria mais quatro filmes (um deles, “Fantasma”, também de 1922, está na Retrospectiva) até chegar ao seu maior sucesso germânico: o drama social “A Última Gargalhada”. O mundo inteiro se encantou com a história do orgulhoso porteiro de hotel de luxo (magistralmente interpretado por Emil Jannings), que pela idade avançada, perde o posto (e a bela farda) e vai lavar latrinas. Produtores norte-americanos, fascinados pelo filme, ficaram de olho no talento de Murnau.

O diretor ainda fez mais dois filmes na Alemanha (“Tartufo”, de 1925, e “Fausto”, de 1926), até partir para os EUA, contratado pela poderosa Fox. E, de cara, em sua estreia norte-americana, realizaria “Aurora” (1927), drama amoroso-lírico de beleza arrebatadora, considerado um dos cem maiores filmes de todos os tempos.

Em Hollywood, faria mais dois filmes para a Fox, “Os Quatro Diabos” (1928) e “O Pão nosso de Cada Dia” (1930). Nenhum dos dois está na retrospectiva curitibana. Um deles é dado como desaparecido, embora haja quem acredite que seus negativos estejam guardados no acervo do estúdio.

A Fox infernizou a vida do cineasta, com tamanha intensidade, que ele se viu compelido a entregar a finalização de algumas das quatro versões de “O Pão nosso de Cada Dia” a um assistente. O gênio de Murnau bateu de frente com as draconianas exigências comerciais da poderosa indústria hollywoodiana.

O último filme do cineasta foi “Tabu”, fruto de tumultuada parceria com Flaherty, rodado nos mares do sul (Polinésia) e lançado, com sucesso, em 1931. Mas o realizador alemão, que bancara a produção com recursos próprios (e quase fora à falência) não pôde desfrutar do prestígio conquistado pelo filme. Morreria num misterioso acidente de carro, ao lado do namorado filipino, cinco dias antes da estreia de “Tabu, uma História nos Mares do Sul”.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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