Festival de Gramado – Noite latino-americana
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A quarta noite do 45º Festival de Gramado contou com dois substantivos longas-metragens hispano-americanos (“Los Niños”, da chilena Maite Alberdi, e “X500”, do colombiano Juan Andrés Arango), dois curtas brasileiros (os ótimos “O Quebra-Cabeça de Sara”, de Allan Ribeiro, e a animação “O Caminho dos Gigantes”, de Alois Di Leo) e com homenagem “in memoriam” a Paulo Autran, representado por sua companheira Karin Rodrigues, e de corpo presente ao casal Lucy e Luiz Carlos Barreto.
O chileno “Los Niños” nos lembra “Do Luto à Luta”, de Evaldo Mocarzel, e “Colegas”, de Marcelo Galvão. Afinal, seus protagonistas são portadores de Síndrome de Down. Eles passam seus dias numa escola que os prepara para o ofício de confeiteiro. São tratados como “crianças” (niños), apesar de serem todos quarentões. O filme se pergunta se os downianos podem ter relacionamentos amorosos-sexuais, contrair matrimônio, ter sua própria casa e o próprio dinheiro?
Para discutir tais temas, Maite Alberdi realiza um filme de base documental, mas que usa técnicas da ficção. Ou seja, constrói personagens. Há uma downiana comilona, que está de dieta, mas não resiste à matéria-prima dos confeitos que ajuda a fabricar (o chocolate). Há outra que só pensa em deixar a casa da mãe e contrair matrimônio com o namorado também downiano. E há o que trabalha em dois “empregos” (na escola-confeitaria e num abrigo de idosos) e sonha comprar com seus “salários” a sua própria casa. Só que seus proventos são simbólicos. Quando vai comprar um anel de noivado, o que conseguiu juntar equivale a cinco dólares e a joia custa 50 dólares. Ou seja, dez vezes mais. Onde conseguirá dinheiro suficiente para comprar uma casa? Outro downiano vai ao padre-confessor perguntar se pode casar-se com sua noiva. O religioso responde que a Igreja Católica só pode dar o sacramento matrimonial a quem, com mais de 18 anos, tem condições de discernir as responsabilidades conjugais (mesmo caso da lei civil chilena).
A realizadora, com passagens pelo Festival de Documentários de Amsterdã e por competições como o Goya e o Platino, não pôde vir a Gramado, o que frustrou o público que aplaudiu o filme e a esperava para o debate do dia seguinte.
Outro ausente foi o colombiano (radicado no Canadá) Juan Andrés Arango. Mas ele enviou um vídeo para exibição na tela do Palácio dos Festivais, justificando sua ausência e convocando o público a assistir ao adrenalinado “X500”. O longa é uma espécie de “Cidade de Deus” hispano-americano, ambientado em periferias violentas de uma cidade colombiana e outra mexicana, e numa grande cidade do Canadá de expressão francesa. Além de Arango, o ator black Jonathan Díaz Angulo, protagonista do violento episódio colombiano, saudou o público brasileiro e pediu atenção para o que se veria na telona.
“X500” é um filme da nova e vigorosa safra colombiana, que nos últimos cinco anos tem se destacado em festivais internacionais (inclusive em Cannes). As três histórias – uma protagonizada por negros colombianos, outra por jovens com traços indígenas mexicanos e outra por filipinas radicadas no Canadá – soma brutalismo (em doses potentes) e esperança (mesmo que tênue).
As estórias se entrelaçam com muita fluência. A filipina e jovem Maria chega a Montreal para encontrar-se com a avó, que trabalha duro para ganhar o sustento. A moça não entenderá o sacrifício da velha senhora e se aproximará de imigrantes que vivem em ambientes ligados ao perigo.
A mais forte das narrativas é a colombiana: Alex regressa de prisão nos EUA, país em que entrara como clandestino. Sonha em conseguir um motor para barco modesto e dedicar-se ao ofício de pescador. Assim, conseguirá tirar a tia e o irmão pequeno do mangue onde catam mariscos. Mas o menino, da mesma forma que os “caixa-baixa” mirins de “Cidade de Deus”, prefere o ambiente do crime. Alex tentará salvar (pelo menos) o mano. Afinal, o quer longe da “casa do picador” (lugar onde criminosos retalham corpos indesejados, antes de jogá-los nas águas de caudaloso rio). O episódio mexicano, também vigoroso, se desenvolve, como o similar colombiano, em bairros comandados por chefe e gangue armados até os dentes. Seus dois protagonistas fazem bico na construção civil e de noite extravasam suas pulsões em festas punk (ambos usam cabelos à moda moicano, um com pelos vermelhos e outro, azuis-esverdeados).
O filme de Arango seria mais um exemplar do “mundo cão”, que estigmatiza moradores pobres de grandes periferias urbanas e trabalhadores imigrantes, se fosse desprovido de esperança. Mas não é. As três narrativas se encerram com um filete de esperança, seja o gesto altruísta de Alex, seja a amizade entre os dois punks mexicanos, seja na insistência da avó em ajudar a neta rebelde.
Curtas-metragens
Há consenso, nas manhãs em que os filmes são debatidos no Hotel Serra Azul (por realizadores, jornalistas, críticos e público), que a safra de curtas está muito qualificada. Os seis filmes exibidos até agora foram muito elogiados. E os da noite de segunda-feira, mais ainda. O experiente Allan Ribeiro, cineasta e montador (com dois longas no currículo e muitos curtas, bastante premiados) está em Gramado na companhia da diarista carioca, Sara Neves. Ela protagoniza “O Quebra-Cabeça de Sara”, sintético documentário em preto-e-branco, de rara delicadeza.
O filme, muito singelo do ponto de vista de sua produção (foi filmado na casa do cineasta, onde Sara fazia faxinas quinzenais), é complexo e avança muito no segmento dos filmes de temática homoafetiva. Afinal, o que é raríssimo, trata do assunto pelos olhos de uma evangélica heterossexual, que começa a estranhar as atitudes de uma de suas filhas. A moça, mãe de um menino, começa a andar com outra moça. A mãe (avó do menino) pergunta à filha o que está acontecendo. A jovem não se abre. Sara começa a somar pequenos indícios até descobrir que a filha assumiu-se como homoafetiva. Reage com preconceito e chega a dizer que preferia que a moça fosse prostituta a ser lésbica (mal consegue pronunciar este termo). Assume-se preconceituosa até com negros que cometem crimes, sendo ela negra.
Críticos e público ficaram fascinados com o filme de Allan, construído com imagens de Sara em sua faina diária (lavando, varrendo, cuidando dos gatos, conversando ao celular). Ela é vista, com a potência de sua voz, narrando sua tentativa de armar o quebra-cabeça e descobrir os novos rumos tomados pela filha e expondo seus preconceitos. É vista também em imagens delicadas, que contrastam com o vigor de seu discurso preconceituoso. Nunca vemos seu rosto. Vemos partes de seu corpo, seus gestos no trabalho e o imenso carinho no trato com os felinos. O conjunto é reflexivo e nos leva a pensar: até que ponto somos tolerantes com o diferente? Apenas quando ele está fora de nosso núcleo familiar? Allan traz vigorosa contribuição ao debate, pois dá voz a quem tem coragem de revelar o preconceito. Antes, nos filmes, ouvíamos os próprios gays narrando a rejeição que sofreram quando revelaram, aos pais, sua homoafetividade.
No debate, com grande participação do público, Sara Neves contou que está, junto com os outros filhos, “processando a aceitação da filha em sua nova opção”. Afinal, desde o primeiro instante – explicou – “eu fiz questão de colocar o assunto para toda minha família, para que o resolvêssemos juntos”.
O primeiro curta de animação da mostra competitiva – “Caminho dos Gigantes” – direção de peruano Alois Di Leo, radicado no Brasil há 17 anos, também causou encantamento. O filme, de menos de 12 minutos, conta a história de Oquirá, uma menina indígena de seis anos, que vive numa floresta de árvores gigantes. Uma destas árvores é cortada. Oquirá desafiará o destino até descobrir o ciclo da vida.
Para que o curta-metragem contasse com trilha sonora que evocasse o espírito da floresta, Alois realizou croundfunding e recolheu recursos que pudessem trazer, ao Brasil, o compositor peruano Tito la Rosa. Ele desembarcou em São Paulo com vários tipos de flautas e tambores andinos. Com estes instrumentos, compôs os misteriosos e profundos sons que embalam o filme. Somados ao belo desenho dos personagens e da Natureza, sons e imagens compõem exuberante resultado.
Homenagens
Para lembrar seus 45 anos e suas 45 edições, o Festival de Cinema de Gramado está homenageando personalidades com significativos serviços prestados ao festival e ao audiovisual brasileiro. Na noite desta segunda-feira, 21, os homenageados foram Paulo Autran, in memoriam, e os produtores Barretão e Lucy. À tarde, foi exibido o documentário de longa-metragem “Paulo Autran, o Senhor dos Palcos”, de Marcos Abujamra (com depoimentos de Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira, Ulisses Cruz, Beth Coelho, entre outros). À noite, a companheira do grande e saudoso ator, Karin Rodrigues, subiu ao palco para receber a homenagem. A atriz, que foi uma das protagonistas de “As Filhas do Fogo”, de Walter Hugo Khouri, integralmente rodado em Gramado, lembrou o amor que ela e Autran tinham pelo Rio Grande do Sul. “Adorávamos nossas temporadas teatrais gaúchas. O Teatro São Pedro é maravilho. Paulo amava atuar lá. E amávamos passar nossas tardes conversando com Mafalda Verissimo em sua casa portalegrense”.
Com elegância e alegria, a atriz ergueu a placa que registra a homenagem gramadense ao ator em inesquecível pose para os fotógrafos, tendo ao lado os produtores Barretão e Lucy. O agradecimento do casal também foi digno de nota. Lucy lembrou sua primeira vez em Gramado, com “A Estrela Sobe”, de Bruno Barreto, no início dos anos 1970, e o amor que a família tem pelo Rio Grande. Afinal, na Serra Gaúcha, eles filmaram “O Quatrilho”, de Fábio Barreto, que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1997.
Barretão, por sua vez, mostrou o poder inabalável de sua oratória. Oratória que ele vem exercitando há mais de seis décadas dedicadas ao cinema. O produtor, registre-se, gosta de apresentar-se como militante do PCB (Partido do Cinema Brasileiro). Barretão lembrou sua primeira vez em Gramado (com “A Estrela Sobe”). “Eu tinha 43 anos. Sigo com esta mesma idade (ele fará 90 em maio do próximo ano), pois os desafios do cinema brasileiro são imensos. Nós que passamos pela Ditadura e, por fase ainda pior, os Anos Collor, quando nossa indústria cinematográfica foi arrasada, não podemos abandonar este combate”. Os três homenageados foram muito aplaudidos.