CCBB comemora Dia Internacional da Mulher com retrospectiva de Helena Solberg

Nada melhor para comemorar o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, que uma série de debates e mostra retrospectiva completa da cineasta brasileira que mais dedicou-se ao nosso cinema no feminino: a paulistano-carioca Helena Solberg. Ela fará 80 anos em junho próximo. Mais de 50 deles dedicados ao audiovisual, em territórios que vão do Brasil aos EUA (onde viveu por 30 anos), passando pela América Hispânica.

Desta quarta-feira, 7, até 19 de março, serão exibidos, no CCBB-SP, quinze filmes de curta, média e longa-metragem de Helena. Dois são ficcionais: o curta “Meio-Dia” (1970), inspirado em “Zero de Conduta”, o clássico de Jean Vigo, e o cativante “Vida de Menina” (2004), recriação dos diários de Helena Morley. Este longa-metragem, protagonizado por Ludmila Dayer, sagrou-se o grande vencedor do Festival de Gramado pelo veredito do júri oficial e do popular. E serviu para mostrar que a realizadora de tantos documentários filmados no Brasil, EUA e países da América Hispânica, era craque tanto no trato com a realidade quanto no terreno da ficção.

O primeiro filme de Helena – o curta documental “A Entrevista” (1966) – foi definido pela professora da UFF e cineasta Karla Holanda como “marco fundante do cinema brasileiro moderno de autoria feminina”. Não há como discordar de Karla, uma das organizadoras do livro “Feminino e Plural – Mulheres no Cinema Brasileiro” (Papirus, 2017). Afinal, “A Entrevista” lembra um filme da Nouvelle Vague, com pegada feminina. Na banda sonora, ouvimos trechos de entrevistas de diversas mulheres de classe média alta do Rio de Janeiro. Elas falam de temas de suas vidas cotidianas. Casamento, em especial, mas também de sexo e política. Só uma das depoentes é vista em cena: a bela e jovem Glória Solberg, cunhada da cineasta. Como se fôsse personagem ficcional, ela nos envolve em dois rituais preparatórios. Um para ir à praia. O outro, mais complicado, para cerimônia de elaborado matrimônio burguês.

O encerramento de “A Entrevista” nos desconcerta e nos estimula a pensar. Afinal, vemos registros de passeata de mulheres (por Deus, pela Família e pela Propriedade com terços na mão) em apoio ao golpe militar de 1964.

Feminista de primeira hora, Helena sequenciaria, nos EUA, sua trajetória cinematográfica. Lá realizaria, com o coletivo International Women’s Film Project, “Trilogia da Mulher”, de grande valor. Primeiro, dirigiria “A Nova Mulher” (“The Emerging Woman”, 1974), panorama histórico da luta feminina por igualdade desde o século XIX. Todo construído com fotografias (e documentos de importantes arquivos dos EUA) de mulheres que lutaram contra a escravidão, ofereceram sua força de trabalho barata em ambientes fabris e lutaram pelo direito ao voto.

O segundo título da trilogia – “A Dupla Jornada” (“The Double Day”, 1975) – foi ainda mais importante e ousado. Como a ONU (Organização das Nações Unidas) estabelecera a década de 1970 (e, em especial, o ano de 1975) como tempo de conscientização dos Direitos da Mulher, Helena e seu coletivo saíram por países da América Latina (Argentina, Venezuela e Bolívia) em busca de testemunhos (e imagens vivas) de trabalhadoras que enfrentavam o batente em fábricas e campos e cumpriam, em casa, dupla jornada. Ou seja, cuidavam de maridos e filhos em estafante jornada doméstica.

O fecho da trilogia – “Simplesmente Jenny“ (1978) – registra vivências de três adolescentes internadas em reformatório boliviano.

Cinemanovista

Helena Solberg é considerada por sua biógrafa, a pesquisadora Mariana Tavares, “a única diretora a integrar o Cinema Novo”, movimento de renovação do cinema brasileiro, na década de 1960. Desempenharia, se buscarmos comparação com a França, junto aos varões cinemanovistas (Nélson, Glauber, Saraceni, Ruy Guerra, Joaquim Pedro, Leon, Diegues etc.) papel similar ao desempenhado por Agnes Varda, na Nouvelle Vague (de Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer e Rivette).

Na PUC-Rio, onde estudou, a jovem Helena, que queria ser cineasta, foi colega de Mário Carneiro, Cacá Diegues, David Neves e Arnaldo Jabor. Coube a Mário, poeta da imagem, assinar a bela fotografia de “A Entrevista”.

Quem for ao CCBB-SP no sábado, 17 de março, assistirá a aula magna ministrada por Helena. Ela vai falar de sua trajetória como diretora (de “A Entrevista” até o mais recente, o documentário “Meu Corpo minha Vida”, sobre o direito ao aborto, que realizou para o canal GNT). E, claro, de sua militância feminista.

Para dar densidade reflexiva à Mostra Retrospectiva Helena Solberg, que tem curadoria de Carla Italiano e Leonardo Amaral, quatro sessões serão comentadas por pesquisadores e especialistas na obra da realizadora e por ativistas da causa feminina. Todas as atividades são gratuitas.

Depois de sua “Trilogia da Mulher” (segundo definição de Mariana Tavares em “Helena Solberg – Do Cinema Novo ao Documentário Contemporâneo”, editado pela Festival É Tudo Verdade/2014), a cineasta brasileira realizou série de documentários de temática político-social, sem perder a oportunidade de abrir generosos espaços para mulheres, fossem elas guerrilheiras sandinistas, alfabetizadoras, lavradoras ou donas de casa.

Seu filme mais famoso desta época é “Das Cinzas – Nicarágua Hoje” (1982). Com belas imagens do ótimo fotógrafo Michael Anderson, ela acompanha a família Chavarría, em Manágua, capital nicaraguense, imersa no processo de reconstrução do país, depois da sangrenta guerra civil entre os guerrilheiros sandinistas e a (derrotada) Força Nacional somozista. Acompanha, também, a ida das jovens filhas do casal Chavarrí para o campo, mobilizadas pelas brigadas de alfabetização. Num dos melhores momentos do documentário, um militar sandinista, que fora preso político, discute com ex-integrantes da Força Nacional somozista, agora prisioneiros, as complicadas condições físicas do cárcere.

Os filmes deste período latino-americano (“Chile: pela Razão ou pela Força”, 1983; “A Conexão Brasileira: A Luta pela Democracia”, 1983; “Retrato de um Terrorista”, 1985, “Berço de Bravos”, 1986, e “A Terra Proibida”, 1990) receberam importantes prêmios nos festivais de Havana, Chicago, American Film Festival e o Emmy, o Oscar da TV (este para o festejado “Das Cinzas – Nicarágua Hoje”).

“A Terra Proibida”, filmado no Brasil, tem a Igreja da Libertação e a luta pela reforma agrária como temas principais. Polifônico, o filme dá voz a lavradores sem-terra, a bispos progressistas (como Dom Casaldáliga) ou não (Dom Lucas Neves, Dom José Falcão), a líderes da UDR-União Democrata Ruralista, como Ronaldo Caiado) e até a um pistoleiro, que, a soldo, assassinou um padre (Josimo). Mas, com imensa habilidade (e ótimas imagens colhidas por Mário Carneiro, Adrian Cooper e Gustavo Hadba), Helena constrói documentário orgânico, denso e afinado com as lutas populares.

O Brasil da era ditatorial não se interessou pelos filmes militantes da cineasta, cidadã do mundo. Por isto, quando Helena desembarcou no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1994, com o longa documental (com inserções ficcionais) “Carmen Miranda – Bananas is my Business”, muitos pensaram tratar-se de diretora estreante.

O sucesso do filme, que conquistou o Troféu Candango pelo voto do júri popular, marcou o regresso definitivo de Helena ao Brasil. Ela continuou próxima aos EUA, mas fincou aqui a base de todos os longas-metragens que faria a seguir: além do imperdível, por sua delicadeza e poesia, “Vida de Menina”, ela assinou os documentários “Palavra (En)Cantada” (sobre música popular brasileira e literatura, 2009), “A Alma da Gente” (sobre incursão artística do coreógrafo Ivaldo Bertazzo na favela da Maré, no Rio, 2013) e “Meu Corpo minha Vida” (2017, sobre o direito ao aborto).

A programação completa pode ser conferida no site www.bb.com.br/cultura.

Retrospectiva Helena Solberg
Data:
7 a 19 de março
Local: CCBB São Paulo (Rua Álvares Penteado, 112 – Centro), 70 lugares
Entrada franca para os filmes e debates.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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