“Emily Brontë” e “Corsage” mergulham na sexualidade de duas mulheres do século XIX

Por Maria do Rosário Caetano

Duas mulheres muito especiais – a escritora inglesa Emily Brontë e a imperatriz austríaca Elizabeth – têm suas vidas revistas por duas cineastas dispostas a destoar o coro dos contentes.

“Emily” (foto acima), de Frances O’Connor, já está disponível nos cinemas. “Corsage” (corpete ou espartilho, se o título for traduzido ao pé da letra), de Marie Kreutzer, estreia na próxima quinta-feira, 12 de janeiro.

A biografia da autora de “O Morro dos Ventos Uivantes”, romance gótico que tornou-se marco da literatura ocidental, ganhando múltiplas versões audiovisuais, é muito, mas muito, livre. Frances O’Connor, que é também atriz profissional, deu asas à imaginação e inventou uma vida erótico-amorosa para a austera Emile Brontë (1818-1848). Uma vida que não é confirmada por nenhum biógrafo.

“Corsage”, sobre Elizabeth Amalie Eugenie von Bayern (1837-1898), a Sissi da Baviera, está a anos luz da trilogia de filmes dirigidos, nos anos 1950, por Ernst Marischka, e protagonizados pela deusa Romy Schneider. A austríaca Marie Kreutzer desglamourizou a imperatriz da Áustria, que tornara-se, aos 16 anos, esposa do Imperador Francisco José (1830-1919).

A Sissi de Romy Schneider, uma das mulheres mais belas do mundo, criou o protótipo da “princesa” de contos de fada. Aquela que fazia sonhar homens (que a amavam-desejavam) e mulheres (que queriam uma vida de beleza e encantamento similares aos da nobre bávara). Já a ardilosa Sissi de Kreutzer vive apertada em espartilhos sufocantes, tem um filho atormentado, que não chegará herdar o trono, e uma filha menina, que ela levará para passeios à cavalo em noites gélidas).

Os dois filmes, o britânico e o austríaco, são bons. O de Sissi melhor ainda, pois mais desconcertante, ousado, com trilha transgressora (que inclui “As Tears Go By”, do Stones). “Corsage” foi premiado na mostra Un Certain Régard, em Cannes (melhor atriz para a vigorosa Vichy Krieps, que repetiu o feito no Prêmio Europeu de Cinema) e está na ‘short list’ do Oscar (como um dos 15 pré-candidatos a melhor filme internacional).

Elizabeth de Áustria viveu 60 anos e teve tempo para desfilar sua beleza em cortes europeias, lançar moda, passear por cidades glamurosas, ajudar na criação do Império Austro-Húngaro, paquerar o primo Ludwig da Baviera (como veremos em “Corsage” e no magistral filme de Visconti, ele era homoafetivo). Porém, Sissi conheceu intensos momentos de dor como a perda de dois filhos (uma menina, na infância, e o filho, em homicídio-suicídio, numa cabana de caça) e da irmã, Sofia da Baviera, num incêndio, em Paris. Ela mesma faleceria dez anos depois do filho, ferida mortalmente por um anarquista italiano, Luigi Lucheni.

À cineasta Marie Kretuzer interessou registrar a Sissi quarentona, já necessitando de espartilhos cada vez mais apertados para manter sua forma física. E criando estratagemas para enfrentar o fim da juventude da outrora mais linda imperatriz da Europa. Deliciosa a cena dos desmaios.

Endiabrada como ela só, Marie Kreutzer desenha personagem complexa, realista, longe do modelo “princesinha de conto de fada”. Sissi busca aventuras amorosas (e turísticas), cavalga em horas inesperadas, quebra protocolos. Faz sexo de vez em quando com o marido-imperador, nas preocupada com a possibilidade de engravidar. Considera-se, já na casa dos 40 anos, “velha” para gerar novos filhos. Lembremos que a emancipadores pílula anticoncepcional só chegaria ao mundo no século seguinte.

O filme austríaco se apega ao real. Ao verossímil. Transar em dia fértil, naquele tempo, implicava em contar com a arriscada conivência do parceiro, de forma que ele interrompesse o gozo na hora agá. Caso contrário, a gravidez seria fato consumado. Naquele tempo, famílias somavam dez, doze, quinze filhos. As famílias proletárias (prole) que o digam.

“Corsage”, de Marie Kreutzer

O tempo de vida de Emily Brontë foi curto (apenas 30 anos) e o mais desglamourizado do mundo. Criada numa charneca cortada por ventos uivantes, numa casa austera, sob o poder e vigilância draconianos do pai pastor (clérigo protestante), ela vivia com um irmão, que adorava, e com duas irmãs, ambas, como ela, escritoras. E uma delas, Charlotte, a mais velha (1816-1855), escreveria outro clássico da literatura inglesa, “Jane Eyre”. Annie, a caçula (1820-1849) também deixou obra digna de atenções.

Tudo indica que Emily Brontë morreu virgem, tamanho era o rigor moral que cercava o lar do clérigo que criou os quatro filhos, órfãos de mãe, com ajuda de uma velha senhora. Frances O’Connor não se dá por vencida. Introduz a sexualidade na vida de Emily (a ótima, embora bonita demais para o papel, Emma Mackey). Um jovem reverendo (Oliver-Jackson Cohen) vai auxiliar o titular nas prédicas da Igreja. E passa a residir na casa das irmãs reprimidas, mas ilustradas (falam francês, lêem muito, são estudiosas). A proximidade (e a missão de aperfeiçoar o francês de Emily) facilitarão o nascimento de paixão avassaladora.

Uma espécie de cabana será o cenário das tórridas cenas de sexo entre o sisudo reverendo e a jovem Brontë (muito bem filmadas). Os dois estão com os hormônios à flor pele. Ao contrário das austríacas Sissi e Maria Kreutzer, as britânicas Emily e Frances não dão a mínima para a tabelinha. O casal de amantes (ele pároco, ela filha de um velho pároco) ama como se não houvesse amanhã.

O filme inglês tem ótimos momentos, como a cena das máscaras, que resulta em verdadeiro psicodrama. É potente a química entre Emily e o amante perturbado pela culpa (como um pároco-assistente faz o que ele está fazendo com a filha do pároco-titular, de quem é hospede? E seus votos perante Deus, que tudo vê?). Mas o filme podia ser um pouco mais enxuto. 130 minutos caem bem em um épico de guerra.

Por que será que, em época de Oscar, todos os filmes acham que devem ter mais de duas horas de duração?

 

Emily
Inglaterra/EUA, 2h10′, 2022
Direção e roteiro: Frances O’Connor
Fotografia: Nanu Segal
Trilha sonora: Abel Korzeniowsk
Elenco: Emma Mackey, Oliver Jackson-Cohen, Alexandra Dowling, Amelia Gething, Fionn Whitehead, Adrian Dunbar, Gemma Jones, Sacha Parkinson e Gerard Lepkowski
Nos cinemas

Corsage
Áustria, França, Luxemburgo e Alemanha, 112 minutos, 2022
Direção e roteiro: Marie Kreutzer
Elenco: Vick Krieps, Colin Morgan, Finnegan Oldfield, Alma Dasun, Jeanne Werner, Alexander Pschill, Aaron Friesz, Ivana Urban
Fotografia: Judith Kaufman
Trilha original: Camille Dalmais
Estreia na próxima quinta-feira, 12 de janeiro

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